A Ilusão de Contingência
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Vamos argumentar, contra Kripke, a favor da disponibilidade de uma explicação para a ilusão de contingência das identidades psicofísicas de tipos.
O materialismo identitativo tipo-tipo é a tese segundo a qual cada tipo de estado mental (como a dor) é numericamente idêntico a um certo tipo de estado físico (como a estimulação das fibras-C).
Suponha-se, para efeitos de argumentação, que o materialista identitativo tem razão ao alegar que identidades entre tipos mentais (como a dor) e tipos físicos (como a estimulação das fibras-C) são como identidades teóricas como "água = H2O". Uma explicação segundo a qual identidades teóricas como "água = H2O" apenas parecem ser contingentes consiste em dizer que se confundem erroneamente com identidades de facto contingentes como "o líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O", em que a identidade é entre propriedades contingentes (ser um líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho, etc.) e propriedades essenciais (ser H2O) da água, inferindo-se falaciosamente da contingência destas a contingência daquelas. Ora, uma explicação deste género não está, argumenta Kripke (Naming and Necessity, Terceira Leitura), disponível no caso das alegadas identidades psicofísicas tipo-tipo como "dor = estimulação das fibras-C". Não está disponível porque a identidade não é entre propriedades contingentes e propriedades essenciais da dor: ser uma dor não é uma propriedade contingente da dor, é uma propriedade essencial.
A propriedade de ser água é a propriedade de ser H2O, embora os conceitos de água e de H2O sejam conceitos distintos. Então, por analogia, identidades psicofísicas tipo-tipo como "dor = estimulação das fibras-C" apenas parecem ser contingentes porque "dor" e "estimulação das fibras-C" denotam a mesma propriedade mas expressam conceitos diferentes, inferindo-se falaciosamente de uma diferença entre conceitos uma diferença entre propriedades. A diferença entre o conceito de dor e o conceito de estimulação das fibras-C é erroneamente confundida com uma diferença entre a propriedade de ser uma dor e a propriedade de ser uma estimulação das fibras-C. Logo, está disponível uma explicação para a ilusão de contingência das identidades psicofísicas de tipos.
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A Ilusão de Contingência - Vitor Pereira
Índice
Introdução
Capítulo 1: O Argumento de Kripke
S1.1 Fenómenos mentais
S1.2 Epistemologia da mente
S1.3 Metafísica da mente
S1.4 O Argumento antimaterialista de Kripke: identidade de tipos
S1.5 O Argumento antimaterialista de Kripke: identidadede de exemplares
Capítulo 2: A Ilusão de Contingência e a sua explicação
S2.1 A nossa explicação da ilusão de contingência das identidades de tipos
S2.2 A explicação da ilusão de contingência de McGinn
S2.3 A explicação da ilusão de contingência de Nagel e Hill
S2.3.1 Dois tipos de imaginação
S2.3.2 Kripke e o descritivismo
S2.3.3 A essência da dor
S2.3.4 Uma revisão conceptual expansionista
Capítulo 3: Bealer contra Kripke
S3.1 As duas estratégias antimaterialistas
S3.2 Os erros da estratégia descritivista
S3.3 A réplica de Kripke aos erros da estratégia descritivista
S3.4 Estratégia descritivista e ter em mente algo descritivo
S3.5 Discussão informal da crítica de Bealer a Kripke
Sinopse dos Argumentos
Bibliografia
Agradecimentos
Agradeço ao Prof. Dr. João Branquinho por ter aceite orientar este estudo.
As suas sugestões, críticas e objeções foram sempre oportunas e esclarecedoras.
Sem elas, este estudo não teria sido possível.
A sua competência e rigor científicos foram de uma enorme valia, nomeadamente em relação aos aspetos metafísicos, epistemológicos, de filosofia da linguagem e da mente envolvidos neste estudo.
Pelos erros que permanecem, se alguns, sou o único e inteiro responsável.
Agradeço a todos os meus colegas, em particular aos de Pós-Graduação.
Agradeço aos serviços da Faculdade, em particular ao Departamento.
Agradeço a todos os que, no local em que exerço a minha atividade profissional e no local em que sou submetido a tratamentos de fisioterapia, de uma forma ou outra, me auxiliaram.
Agradeço a todos aqueles que, aparentemente, agora esqueço.
Agradeço à minha família, muito em especial à minha Mãe, Maria Dulce (também pelos dias em que estudou tanto quanto eu).
Introdução
No primeiro capítulo, apresentamos o argumento de Kripke contra o materialismo identitativo nas suas duas versões, a de identidade psicofísica entre tipos e a de identidade psicofísica entre exemplares.
No segundo capítulo, discutimos o problema de saber se há aqui uma ilusão de contingência e se há uma explicação para ela. Começamos por apresentar a nossa explicação para a ilusão de contingência das identidades psicofísicas de tipos.
Apresentamos a explicação de Colin McGinn para a ilusão de contingência, mas esta só se aplica à teoria identitativa exemplar-exemplar. McGinn concorda com Saul Kripke que, no caso das identidades psicofísicas de tipos, uma tal explicação não está disponível; mas, contra Kripke, McGinn defende que está disponível uma explicação para a ilusão de contingência no caso das identidades psicofísicas de exemplares (a réplica de McGinn depende de modo crucial da distinção entre tipos e exemplares introduzida no primeiro capítulo).
Encerramos este segundo capítulo apresentando as duas explicações para a ilusão de contingência propostas por Thomas Nagel (a de Christopher Hill é, por assim dizer, nageliana). Uma destas explicações deixa-se caracterizar pela noção de dois tipos de imaginação distintos e independentes. A outra explicação deixa-se caracterizar por noções como as seguintes: a essência tripartida da dor e a noção de revisão conceptual expansionista.
No terceiro capítulo, fortalecemos o argumento de Kripke apresentado no primeiro capítulo. Apresentamos, em particular, o argumento antimaterialista de George BealerSee e a crítica deste ao de Kripke.
Antes de dizermos qual é o argumento geral da tese, uma vez que da parte dos materialistas identitativos há a presunção de que as identidades psicofísicas de tipos são análogas às identidades teóricas da física e da química (por exemplo, água = H2O
), convém introduzir de imediato algumas noções importantes para a compreensão da ideia de que há verdades necessárias a posteriori (como a de que a água é necessariamente H2O), para cujo esclarecimentoKripke, certamente entre outros (como Putnam e Plantinga), Kripke contribuiu.
Kripke aceita que algumas afirmações de identidade verdadeiras são contingentes. Por exemplo, O homem que inventou as bifocais é o primeiro Diretor-Geral dos Correios dos Estados Unidos da América
é uma afirmação de identidade verdadeira e contingente.
A este propósito, restringindo a nossa caracterização ao conhecimento proposicional, visto ser este o conhecimento que está em causa neste tipo de discussões, é útil distinguir entre o modo como uma proposição é conhecida: o seu caráter a priori ou a posteriori, respetivamente o de ser conhecida independentemente da experiência empírica ou de ser conhecida através da experiência empírica; e o modo de uma proposição ser verdadeira (ou falsa): o seu caráter necessário ou contingente, respetivamente o de ser verdadeira (ou falsa) em todos os mundos possíveis ou o de ser verdadeira em alguns mundos possíveis e falsa noutros. Por outras palavras, há que distinguir entre modalidades epistémicas (a priori, a posteriori) e modalidades aléticas (necessário, contingente).
As descrições definidas o homem que inventou as bifocais
e o primeiro Diretor-Geral dos Correios dos Estados Unidos da América
referem-se, ambas, a Benjamin Franklin; logo, aquela afirmação de identidade é verdadeira. Nomes próprios, como o nome Benjamin Franklin
, são designadores rígidos, mas descrições definidas como o primeiro Diretor-Geral dos Correios dos Estados Unidos da América
são designadores não-rígidos ou flácidos (é plausível supor, relativamente a um mundo em que Benjamin Franklin não tivesse nascido, que a descrição pudesse ser ainda assim satisfeita por outra pessoa). Benjamin Franklin podia não ter sido o inventor das bifocais ou podia não ter sido o primeiro Diretor-Geral dos Correios dos Estados Unidos da América; logo, aquela afirmação de identidade é contingentemente verdadeira, resultando a sua verdade de investigações históricas empíricas.
Mas, argumenta Kripke, daqui não se segue que qualquer afirmação de identidade empiricamente (a posteriori) verdadeira seja contingente. Por exemplo, a afirmação a água é H2O
é uma afirmação de identidade empiricamente (a posteriori) verdadeira, mas é necessária.
As modalidades epistémicas (a priori, a posteriori) são relativas não só à estrutura cognitiva dos sujeitos em causa como aos contextos em que esses indivíduos se situam; as modalidades aléticas (necessidade, contingência), não: estas últimas são relativas às coisas elas mesmas. A afirmação água é H2O
é verdadeira em todos os mundos possíveis, mas o nosso conhecimento dela depende da experiência empírica.
A ideia de Kripke é a de há uma diferença entre referirmo-nos a uma coisa pela descrição das suas propriedades e referirmo-nos a essa mesma coisa nomeando-a diretamente. Por exemplo, a descrição definida o homem que inventou as bifocais
podia não ser verdadeira da mesma pessoa de que a descrição definida o primeiro Diretor-Geral dos Correios dos Estados Unidos da América
é verdadeira. A descrição das propriedades dessa pessoa é de propriedades contingentes da pessoa. Mas, argumenta Kripke, não é contingente, nem pode ser contingente que a pessoa descrita dessa maneira seja idêntica a si própria, seja a mesma pessoa que ela própria.
Se as descrições são de propriedades contingentes de um objeto a, então as identidades que as envolvem são contingentes. Mas se "a = b, em que
a e
b são nomes diferentes do mesmo objeto,
a = b é uma verdade necessária, verdadeira em todos os mundos possíveis. Por exemplo,
a figura plana desenhada com giz no quadro preto para o qual o professor de geometria aponta tem três lados não é uma verdade necessária. Esse professor podia apontar para um quadrado desenhado com lápis no papel, ou podia nem apontar para nenhuma figura plana desenhada: é perfeitamente concebível este mundo descrito desta maneira, da maneira como acabamos de o descrever. Mas a afirmação
este triângulo tem três lados" é uma afirmação verdadeira em todos os mundos possíveis, porque ter três lados faz parte da essência de um triângulo, daquilo que faz uma figura plana ser um triângulo. Independentemente de como o mundo mude, não há um mundo possível em que, por assim dizer, triângulos tenham quatro lados.
Um designador rígido (um nome próprio, um termo para um tipo natural) é uma expressão que identifica um objeto em termos da sua essência (por exemplo, a expressão triângulo
), mas uma descrição definida (designador flácido) é em geral uma expressão que identifica um objeto em termos das suas propriedades contingentes (por exemplo, a expressão a figura plana desenhada com giz no quadro preto para a qual o professor de geometria aponta
).
O referente de um nome próprio não é determinado por meio de um ou vários conteúdos descritivos que os utentes da linguagem calhem associar ao nome; mas, ao contrário de um nome próprio, uma descrição definida (própria) identifica um certo referente em função do seu conteúdo descritivo ou modo de apresentação do objeto referido (é esse conteúdo descritivo que determina qual é o objeto que a descrição refere).
Um designador rígido identifica o mesmo objeto em todos os mundos possíveis. Logo, se "a e
b são designadores rígidos de um certo objeto, então
a = b" é uma afirmação de identidade necessária, verdadeira em todos os mundos possíveis.
Também há descrições rígidas. Mas estas, para Kripke, distinguem-se dos nomes em que estes são rígidos de jure e aquelas rígidas de facto. Se um designador for rígido por estipulação (e o exemplo de Kripke é o de um procedimento batismal), é rígido de jure. Se um designador for rígido pela circunstância de ele ter um mesmo objeto como referente em todos os mundos (em que tem um referente) e esta circunstância resultar de ele conter um predicado que calha ser verdadeiro desse objeto em todos os mundos, é rígido de facto. Por exemplo, a descrição definida o menor número par positivo
é um designador rígido de facto, porque o seu conteúdo descritivo determina o mesmo referente em todos os mundos possíveis.
Ora, dada a introdução destas noções, o que da consideração destas resulta para a discussão do materialismo identitativo é o que vamos dizer de seguida.
Os teóricos da identidade, assume Kripke, argumentam que, tal como, por exemplo, a identidade calor = movimento médio das moléculas
é contingente, a identidade entre estados mentais conscientes (como uma dor) e estados ou processos físicos do cérebro (como um disparar de certos neurónios) é também contingente.
A identidade do calor com o movimento médio das moléculas é alegadamente, para os teóricos da identidade, uma identidade contingente, porque precisamos de investigação científica empírica para o descobrir. E, analogamente, as identidades psicofísicas são contingentes, porque, dizem eles, precisamos igualmente de investigação científica empírica para as descobrir; quanto mais não seja precisamos da investigação que vier a ser desenvolvida no futuro na área da ciência relevante.
Mas, replica Kripke, o teórico da identidade psicofísica está enganado. O teórico da identidade psicofísica confunde o modo como uma proposição é conhecida e o modo de uma proposição ser verdadeira (ou falsa). Do facto de uma proposição ser conhecida a posteriori, de precisarmos de investigação científica empírica para descobrir a identidade do calor com o movimento médio das moléculas, não se segue que esta identidade seja contingente. Por outras palavras, o teórico da identidade psicofísica confunde modalidades epistémicas (a priori, a posteriori) e modalidades aléticas (necessário, contingente).
Primeiro, a identidade calor = movimento médio das moléculas
, se verdadeira, é necessariamente verdadeira, verdadeira em todos os mundos possíveis, porque calor
e movimento médio das moléculas
são ambos designadores rígidos. A essência do calor é ser movimento médio das moléculas. Se, da nossa parte, para a descobrir, precisamos de investigação científica empírica, este facto em nada altera aquilo que o calor é: não pode haver calor sem movimento médio das moléculas (e vice-versa). Pode haver movimento médio das moléculas sem sensação de calor. Se esse movimento causa tal sensação em animais de um certa espécie, e não noutra, não é o provocar dessa sensação que faz parte da essência daquilo que é calor.
Segundo, tal como calor
e movimento médio das moléculas
, os termos dor
e disparar de certos neurónios
são designadores rígidos. Mas, contrariamente ao caso do calor, no caso da dor, a sensação faz parte da essência da dor: é impossível uma dor não ser sentida como dor e é impossível algo que é de facto sentido como dor não ser uma dor. O que é característico da dor é a sua sensação. A dor é a própria sensação. Em qualquer mundo possível, há apenas uma maneira de identificar alguma coisa como dor, nomeadamente pela sensação: nada na essência da dor requer que o cérebro esteja num estado particular e nada na essência de um certo estado físico do cérebro requer qualquer referência a sensações de dor.
Estamos agora em condições de apresentar o seguinte argumento geral da tese.
Kripke argumenta contra o teórico da identidadede de tipos que este não tem maneira de explicar porque é que as alegadas identidades psicofísicas apenas parecem ser contingentes. E argumenta contra a identidade de episódios específicos de dor, a, e de estimulação das fibras-C, b, que, se é possível a ocorrer sem b (e vice-versa), então é possível a b e, logo, a b.
A diferença que há entre os dois tipos de tese identitativa é a diferença que há entre uma identidade de propriedades e uma identidade dos exemplos dessas propriedades. McGinn defende que no primeiro caso não há maneira de explicar a aparência de contingência, mas que no segundo caso há. É de facto possível a b?, pergunta McGinn. Não. Parece que é possível que a b, mas não é possível. O que é de facto possível é, argumenta McGinn, uma contraparte epistémica de a, um episódio de dor c (diferente de a, mas muito similar a este), em relação à qual estamos numa situação epistémica qualitativamente idêntica, não exemplificar a identidade de ser uma estimulação das fibras-C e ser b.
Nagel (e Hill), por sua vez, defendem que há duas maneiras de explicar a aparência de contingência em ambos os casos.
A primeira destas consiste no seguinte. Parece que podemos imaginar o estado mental sem um certo estado físico do cérebro, mas da distinção entre as duas maneiras de imaginar uma mesma situação, uma empaticamente e outra perceptualmente, não se segue que estados mentais não sejam idênticos a certos estados físicos do cérebro. Os tipos de imaginação são distintos, mas daqui não se segue que tipos mentais, como a identidade de ser uma dor, sejam distintos dos tipos físicos do cérebro associados, como a propriedade de ser uma estimulação das fibras-C.
A segunda maneira de explicar a aparência de contingência em ambos os casos consiste no seguinte. A qualidade fenomenológica imediata, o papel funcional e a base fisiológica da dor são propriedades essenciais da dor; estados mentais conscientes têm uma essência tripartida: fenomenológica, funcional e fisiológica. As