Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Século XXI: A era do corpo ativo
Século XXI: A era do corpo ativo
Século XXI: A era do corpo ativo
E-book361 páginas9 horas

Século XXI: A era do corpo ativo

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O século XX trouxe à luz várias teorias que mostravam a importância da alteração do paradigma mecanicista, hegemônico ainda hoje, no trato das temáticas relativas ao corpo. Merleau-Ponty, Foucault, Capra, Morin, Maturana e Varela, entre outros, afirmaram a necessidade de se entender o corpo como unidade sensível, que se auto-organiza e se relaciona consigo mesmo, com os outros e o universo, superando os excessos da racionalidade positivista.
Essa obra busca identificar os fatores que influem no entendimento do corpo, reunindo representantes de várias áreas, como filosofia, antropologia, psicologia, saúde, teologia e educação, com trabalhos que investigam a interação entre esporte, corporeidade, meio ambiente, mídia, virtualidade e formação profissional. Com uma abordagem polissêmica, o livro oferece um pannorama – rigoroso, mas não dogmático – sobre o tema. - Papirus Editora
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jun. de 2015
ISBN9788544901076
Século XXI: A era do corpo ativo

Leia mais títulos de Wagner Wey Moreira

Relacionado a Século XXI

Ebooks relacionados

Bem-estar para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Século XXI

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Século XXI - Wagner Wey Moreira

    CRÉDITOS

    PARTE 1

    CORPO ATIVO E CIÊNCIAS ESTRUTURADAS

    1

    CORPO ATIVO E A FILOSOFIA

    Sílvio Gallo

    O corpo

    Meu corpo tem 50 braços

    E ninguém vê porque só usa dois olhos

    Meu corpo é um grande grito

    E ninguém ouve porque não dá ouvidos

    Meu corpo sabe que não é dele

    Tudo aquilo que não pode tocar

    Mas meu corpo quer ser igual àquele

    Que por sua vez também já está cansado de não mudar

    Meu corpo vai quebrar as formas

    Se libertar dos muros da prisão

    Meu corpo vai queimar as normas

    E flutuar no espaço sem razão

    Meu corpo vive e depois morre

    E tudo isso é culpa de um coração

    Mas meu corpo não pode mais ser assim

    Do jeito que ficou após sua educação

    Paulinho Moska

    (CD Pensar é fazer música, 1995)

    Qual o sentido de falarmos, hoje, em corpo ativo? Que significa atividade corporal numa época em que muitas academias de ginástica são localizadas em shopping centers, em que muitas outras são literalmente vitrines, nas quais os transeuntes, na rua, podem assistir à malhação dos malucos por terem um corpo sarado?

    Concordo com o filósofo francês Gilles Lipovetsky quando afirma que vivemos hoje os tempos hipermodernos, nos quais tudo é mercadoria, tudo é aceleração. E, claro, a vivência do corpo não fica alheia a isso. Como falar então em corpo ativo, sem com isso fazer o jogo do mercado, o jogo do capitalismo, transformando o corpo em mais uma mercadoria, instituindo uma mais-valia do corpo, pela qual devemos ceder à ginástica constante, às dietas constantes, ao constante controle do corpo, como um hipercontrole de si mesmo?

    A caracterização de Lipovetsky do momento presente é interessante:

    (...) Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renunciar a nada; as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufórico. (2004, p. 61)

    E seu impacto sobre nossa vida e cultura:

    (...) No universo da pressa, dizem, o vínculo humano é substituído pela rapidez; a qualidade de vida, pela eficiência; a fruição livre de normas e de cobranças, pelo frenesi. Foram-se a ociosidade, a contemplação, o relaxamento voluptuoso: o que importa é a auto-superação, a vida em fluxo nervoso, os prazeres abstratos da onipotência proporcionados pelas intensidades aceleradas. Enquanto as relações reais de proximidade cedem lugar aos intercâmbios virtuais, organiza-se uma cultura de hiperatividade caracterizada pela busca de mais desempenho, sem concretude e sem sensorialidade, pouco a pouco dando cabo dos fins hedonistas. (Idem, pp. 80-81)

    O presente capítulo consiste num esforço de, por meio da filosofia, contribuir para pensar o conceito de corpo ativo como uma forma de resistência a esse estado de coisas. Para tal, voltaremos aos gregos antigos para compreender seu pensamento sobre o corpo e sua atividade, para depois reencontrarmos nosso tempo e nossas possibilidades de pensamento sobre o corpo.

    O tema do corpo tem sido uma constante na filosofia desde suas origens. Já entre os gregos o corpo era tematizado filosoficamente, e se eles tinham concepções diferentes e uma relação com o corpo distinta da nossa, também foram eles que criaram o matiz de pensamento que viria a embasar nossas visões contemporâneas sobre o corpo e nossas formas de vivê-lo.

    Sabemos da importância do corpo na cultura grega antiga. Nos tempos heróicos, de formação da própria cultura helênica, cantados pelos poetas Homero e Hesíodo, a virilidade do guerreiro era uma das principais virtudes. O guerreiro deveria ser forte, belo, ágil e astuto no combate. A cultura guerreira dos gregos – seu gosto pela disputa, seu gosto pela virilidade, a admiração pelos belos corpos – acabaria por ensejar os jogos olímpicos. E a filosofia, que também nasceu e desenvolveu-se em virtude desse espírito agonístico (os gregos chamavam de agon a disputa), não ficou alheia ao problema do corpo.

    Em princípio, os gregos consideravam o corpo de forma bastante abrangente. Soma (corpo) seria uma certa quantidade de matéria, e psique (alma), o pneuma (sopro) que animaria, que daria vida a essa quantidade definida de matéria. De forma geral, soma e psique, corpo e alma, não eram tomados como realidades separadas, excludentes, mas, ao contrário, como realidades que se complementavam. Vale lembrar que a noção de soma era bastante ampla, abrangendo inclusive as posses de um indivíduo, conforme identifica Foucault: Assim, a palavra soma, que designa o corpo, refere-se também às riquezas e aos bens; daí a possibilidade da equivalência entre a ‘posse’ de um corpo e a posse de riquezas (1985, p. 34).

    O filósofo Aristóteles, um dos mais importantes do período clássico grego, criou a teoria do hilemorfismo, que afirmava que forma e conteúdo não poderiam ser tomados separadamente, pois um fazia parte do outro. Para ele, o corpo era uma extensão, uma realidade física limitada por uma superfície. Mas o corpo não seria puramente matéria ou puramente potência; Aristóteles afirmava que o corpo possuía uma forma, que ele estava informado. E, portanto, substância física e forma não poderiam ser separadas. Soma e psique seriam dois aspectos distintos, mas inseparáveis, de uma mesma realidade.

    Não deixa de ser curioso para nossa visão contemporânea que, para Aristóteles e para os gregos antigos de forma geral, todo ser vivo (animado) possui alma, dos vegetais aos animais mais simples e aos seres humanos. O filósofo fala em almas, no plural, identificando várias faculdades, das mais simples às mais complexas. Assim, qualquer ser vivo possui uma alma vegetativa, que tem a função de conservar e reproduzir a vida, através das faculdades da nutrição e da reprodução. Já os animais, mesmo os mais simples, além dessas faculdades, possuem também a faculdade sensitiva, que se desdobra progressivamente pelos sentidos, passando pelo tato (o mais simples), pelo paladar, pelo olfato, pela audição e pela visão (o mais complexo). Essa alma possui ainda a função de sentir dor e prazer. As demais funções anímicas, que apenas cito, para não nos alongarmos demais, seriam: a locomotora-apetitiva e a intelectiva, essa última sendo a mais complexa delas e presente apenas nos seres humanos.

    Assim, as faculdades anímicas – nutrição, reprodução, sensação, imaginação, memória, apetite/desejo, pensamento – são os movimentos que tornam a vida dinâmica. Percebe-se que todas e cada uma dessas faculdades só são possíveis na relação da alma com o corpo. Para Aristóteles, não faz sentido falar em pensamento senão como uma atividade que coordena corpo e alma, assim como a nutrição, isto é, o ato de alimentar-se. Corpo e alma são, portanto, inseparáveis, como ele escreveu em Sobre a alma (De anima): "É necessário que a alma seja substância e forma de um corpo físico que tem a vida em potência; mas a substância como forma é ato [entelequia] e a alma, portanto, é o ato [entelequia] de um corpo que tem a vida em potência" (apud Chaui 2002, p. 419).

    A visão de Aristóteles pode ser chamada de orgânica; a alma é aquilo que anima o corpo, mas está plenamente integrada a ele. O movimento, qualquer movimento físico, é feito pelo corpo, mas possibilitado pela ação da alma; da mesma maneira, o pensamento é faculdade da alma, mas só pensamos porque somos corpóreos. Parece-me ficar claro, assim, que, para Aristóteles (representando o espírito da cultura grega da época), corpo ativo não seria um conceito estranho, posto que o corpo é necessariamente lugar de atividade, garantindo o dinamismo da vida.

    Corroborando essa visão, na obra A política, quando trata da questão da geração das crianças e de sua educação, Aristóteles recomenda o que segue:

    (...) há dois tipos de hábitos, uns apaixonados, ou provindos da sensibilidade, outros intelectuais. E, assim como o corpo é gerado antes da alma, a parte carente de razão o é, igualmente, antes da razoável. Isto se observa pelos rasgos de cólera, pelos desejos e pelas vontades mostradas pelas crianças tão logo nascem. Mas o raciocínio e a inteligência só lhes vêm naturalmente com a idade. Convém, portanto, dar as primeiras atenções ao corpo, as segundas aos instintos da alma, recorrendo-se, todavia, ao intelecto ao tratar dos apetites e à alma, ao tratar do corpo. (1991, p. 50)

    Partindo de tal princípio, o filósofo faz uma série de considerações sobre o cuidado com as crianças, desde recomendações de que as mulheres, durante a gravidez, não devem ficar na ociosidade, mas se alimentar bem e exercitar o corpo, mantendo o espírito tranquilo, até prescrições sobre o que deve e não deve ser ensinado às crianças. Sobre os exercícios físicos na infância, Aristóteles faz duras críticas ao sistema espartano que, preocupado em formar guerreiros, enche as crianças de ginástica desde pequenas. Mas tampouco abdica de sua importância:

    Hoje, os Estados que parecem preocupar-se mais com a educação dos jovens procuram proporcionar-lhes o regime dos atletas, o que deforma a pessoa e a impede de crescer, ou como os lacedemônios, não cometem esse erro, mas brutalizam-nos pelo excesso de fadiga, como se esse fosse um meio de proporcionar coragem.

    (...)

    Que seja preciso algo de ginástica, e como, estamos de acordo. Mas até a puberdade só se praticarão exercícios leves, sem sujeitar os corpos aos excessos da alimentação, nem aos trabalhos violentos, por temor de que isso impeça o crescimento. A prova do efeito funesto deste regime forçado é que entre os que venceram nos jogos olímpicos em sua juventude dificilmente se encontrarão dois ou três que também venceram numa idade mais avançada. Por que isto? Porque a violência dos exercícios a que se tinham submetido desde a infância esgotara sua força e seu vigor. (Idem, pp. 69-71)

    Para Aristóteles, portanto, é importante que o corpo esteja ativo e para isso devemos ser educados desde a infância. Porém, os excessos devem ser evitados; em outras palavras, talvez pudéssemos dizer que a atividade corporal deve ser consciente e não feita de forma automática, irrefletida, o que poderia incorrer em problemas, inclusive em danos físicos.

    Vejamos agora o caso do mestre de Aristóteles, Platão, cujo pensamento sobre o corpo era bastante distinto e exerceu enorme influência sobre a cultura ocidental.

    A figura de Platão é bastante conhecida, inclusive fora dos círculos filosóficos, e dispensa maiores comentários; chamo apenas a atenção para o fato de que ele era um atleta, que cultivava o corpo (e daí veio seu apelido, com o qual ficou conhecido na história). Mas Platão, influenciado por Sócrates, lançaria a matriz de um pensamento que contribuiria decisivamente para separar as noções de corpo e de alma.

    O filósofo grego desenvolveu uma visão de mundo baseada numa partição do real: uma realidade sensível, captada pelos sentidos, composta de matéria, e uma realidade ideal, captada apenas pelo intelecto, que seria a verdade última de todas as coisas. O mundo das ideias é perfeito e eterno; nele não há transformação, movimento, pois as coisas são como sempre foram e sempre serão. O mundo material, por sua vez, por ser composto de matéria, é dado à corrupção. Os objetos sensíveis são produzidos como cópias das ideias perfeitas, mas nunca alcançam a perfeição. A matéria é corroída pela ação do tempo e tudo o que existe no mundo sensível está fadado ao desaparecimento.

    Não seria exato falar em dualismo no pensamento de Platão, uma vez que o mundo sensível só existe pelo mundo inteligível, estando ambos, portanto, interligados. Mas, em última instância, o mundo inteligível é independente do mundo sensível, e o determina.

    Em termos antropológicos, Platão afirmava que o ser humano é composto por um corpo, porção de matéria, habitante do mundo sensível e, portanto, corruptível, tendendo à morte; e por uma alma, esta pertencente ao mundo ideal e, portanto, perfeita e eterna, imortal. Atentemos para o fato de que, para Platão, o homem não é somente corpo físico nem somente alma imortal; ele é, necessariamente, a junção dessas duas realidades distintas. No entanto, ao afirmar essa dupla realidade humana, o filósofo daria ensejo a uma concepção que seria depois conhecida como dualismo psicofísico, que, essa sim, defenderia a independência dessas duas realidades. Mas vejamos brevemente como Platão tratou a questão.

    Segundo ele, todo ser humano possui três almas distintas: duas de natureza inferior, absolutamente ligadas ao corpo e tão imperfeitas e mortais quanto ele; e uma de natureza superior, essa sim ligada ao mundo ideal e, portanto, imortal e perfeita. As almas inferiores seriam a alma concupiscível, responsável por nossos desejos e localizada na região do baixo ventre; e a alma irascível, responsável por nossas emoções e paixões e localizada no peito. A alma superior seria a alma racional, responsável por nossos pensamentos e localizada na cabeça. A condição ideal, segundo o filósofo, seria aquela em que a alma superior comandasse as duas almas inferiores, isto é, aquela em que a razão dominasse as paixões e os desejos. Dizendo com outras palavras, a melhor condição, para Platão, é quando a alma racional – imortal e perfeita – comanda o corpo, sede de nossos desejos e paixões. Mas o próprio filósofo reconhecia que tal situação, embora desejável, não era assim tão comum.

    Essa psicologia (teoria da alma) desenvolvida por Platão levou-o a afirmar que existem três temperamentos (ou tipos de caráter) básicos, nos quais cada ser humano se enquadra: um caráter concupiscível, quando essa alma é dominante, que faz com que a pessoa tome suas decisões com base nos desejos; um caráter irascível, quando predomina essa outra alma inferior, que marca as pessoas que decidem com base nas emoções; e, por fim, um caráter racional, quando a alma superior predomina, que caracteriza as pessoas que decidem fazendo uso da razão.

    Como conhecer o caráter de cada indivíduo? Em sua obra A República, Platão desenvolveu todo um sistema de educação que permitiria identificar o caráter predominante de cada um, direcionando-o para seu lugar na sociedade, que seria formada por três classes: a dos artesãos (seriam os indivíduos concupiscíveis), a dos guerreiros, guardiões da cidade (os indivíduos irascíveis), e a dos filósofos magistrados e governantes da cidade (por sua vez, os indivíduos de caráter racional). O interessante é que todos deveriam passar pelo mesmo processo educacional, e o mais importante para nosso assunto é que todo esse processo educativo principiava com a educação do corpo.

    Platão inicia uma tradição segundo a qual educar um ser humano é cuidar dele; portanto, o processo educativo começa antes mesmo do nascimento, com os cuidados pré-natais, e após o nascimento o primeiro ato educativo é a nutrição do bebê. O cuidado com o corpo, portanto, está na origem de toda a educação. Quando as crianças já estão maiores, começam a conhecer seu corpo por meio da ginástica. A primeira educação é sobretudo física. A ginástica, portanto, teria a dupla função de fortalecer o corpo e garantir seu conhecimento. À ginástica, soma-se a música, esta com a função de ensinar a harmonia, estando voltada para a alma. E juntando-se ginástica e música, teríamos a dança, garantindo, já nos primeiros momentos da educação, a integração corpo-alma.

    Essa primeira fase da educação seria comum a todas as crianças. Na puberdade, seriam identificadas as crianças com a alma concupiscível mais desenvolvida. Essas deixariam os estudos para ser integradas à cidade, como artesãs. As demais continuariam estudando e, além da ginástica, da música e da dança, passariam também a aprender aritmética, geometria e astronomia. Por volta dos 30 anos, seriam identificados aqueles indivíduos de caráter irascível, que seriam incorporados à cidade como soldados. Apenas os restantes, aqueles de personalidade racional, continuariam estudando, agora voltados para a filosofia e as artes da dialética. Após os 50 anos seriam os juízes e governantes da cidade.

    Fiz esse relato bastante simplificado de como Platão concebia a educação em A República apenas para percebermos a importância dada ao corpo. Ressalte-se que a ginástica continuava sendo praticada durante todo o processo, mesmo por aqueles que já estavam se dedicando à dialética, ao trato com as ideias. Isso se devia ao fato de que, segundo o filósofo, não é possível nos livrarmos do corpo para sermos apenas alma, e se o corpo é limitado e imperfeito, é necessário exercitá-lo, torná-lo o melhor possível, conhecê-lo bem, para que também possamos dominar as artes da alma racional. Em momento algum, portanto, Platão defendeu um desprezo pelo corpo.

    A República é uma obra da juventude de Platão. Sua última obra, que ficou incompleta com sua morte e recebeu o título de As leis, retomaria o tema da organização política. Muita coisa foi revista em relação às suas reflexões de juventude, como a busca de uma ordem social perfeita, que é substituída por uma busca de leis que garantam que a sociedade, em lugar de perfeita, seja o melhor possível. Mas Platão continua dando muita importância à educação no processo de construção social, e, nessa educação, o cuidado com o corpo permanece como algo central. Vejamos, apenas a título de ilustração, algumas rápidas passagens que corroboram essa afirmação:

    Quando dissemos que a nutrição correta tem que ser decididamente capaz de tornar tanto corpos quanto almas em todos os aspectos os mais belos e melhores possíveis falamos, presumo, imbuídos de verdade? (...) E suponho que, tomando o mais elementar dos aspectos, os corpos mais belos devem já da mais tenra infância se desenvolverem com a maior normalidade possível? (...) Mas nós sabemos, não é mesmo, que quando o crescimento ocorre rapidamente desacompanhado de muito exercício adequado produz no corpo males incontáveis? (...) E que corpos que recebem o máximo de alimento requerem o máximo de exercício? (Platão 1999, pp. 275-276)

    Como afirmei anteriormente, Platão desenvolveu uma concepção dualista, tomando corpo e alma como realidades absolutamente distintas, embora necessariamente relacionadas. Se o corpo é imperfeito e mortal, enquanto a alma participa da perfeição das formas e das ideias, cumpre então que exercitemos a alma, de modo a nos aproximarmos cada vez mais dessa perfeição que está para além do físico. Mas o filósofo chama a atenção para o fato de que isso não pode ser feito pelo desprezo ao corpo, uma vez que não podemos abrir mão dele. Trata-se, então, de exercitar o corpo, antes mesmo da alma, de modo que esta possa exercer controle racional sobre ele.

    Isso fica claro quando vemos como Platão desenvolve a questão do amor. Segundo ele, o objeto do amor é sempre a Beleza, como ideal. Mas nós não somos capazes de contemplar a Beleza (forma, ideia) com os olhos do corpo, apenas com a faculdade racional da alma. Portanto, precisamos exercitar a contemplação dos belos corpos, como forma de prepararmos o corpo e a alma para sermos capazes de contemplação racional da Beleza imaterial. Aquilo a que Platão chamou de disciplina erótica passaria por três estágios: primeiro, nos apaixonamos pela beleza de um corpo belo (é a ação do desejo, da concupiscência); depois, podemos nos apaixonar pela beleza dos corpos belos de forma geral, ou pela beleza de cada corpo em particular (é a ação da alma irascível); por fim, chegaríamos ao estágio em que, através da alma racional, contemplamos a Beleza imaterial. Mas notem: não é possível contemplar a Beleza, sem passar pelos estágios anteriores. Portanto, é necessário sempre partir da vivência corpórea, se se quer chegar à vivência da alma racional.

    Também em Platão temos, portanto, uma concepção de corpo ativo, fundamental para o próprio exercício da filosofia e de uma vida digna de ser vivida.

    Notamos, com essa exposição sumária das concepções diferenciadas de Platão e de Aristóteles sobre o ser humano, que, embora o foco da filosofia fosse a alma, por ambos compreendida como a sede do pensamento, o corpo não era desprezado. Ao contrário, ambos, por vias distintas, afirmavam a importância da saúde do corpo para o bom pensamento.

    Finalizando esse rápido percurso pela filosofia grega antiga, quero chamar a atenção para o fato de que, no tocante ao discurso sobre o corpo, havia um forte paralelismo entre a filosofia e a medicina nascente. Afirmando a importância do corpo, os filósofos não se limitavam a pensá-lo conceitualmente, mas se dedicavam a discutir quais as melhores ações para sua saúde, como regimes alimentícios e exercícios ginásticos.

    Michel Foucault, ao pesquisar na cultura clássica como era vivida a sexualidade (portanto muito atento aos conceitos e às práticas do corpo), depara com essa realidade e a destaca, como podemos ver a seguir:

    A medicina não era, a esse título, simplesmente concebida como uma técnica de intervenção que, em caso de doença, empregaria remédios e operações. Ela também devia, sob a forma de um corpus de saber e de regras, definir uma maneira de viver, um modo de relação refletida consigo, com o próprio corpo, com o alimento, com a vigília e com o sono, com as diferentes atividades e com o meio. A medicina teria a propor, sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta. (1985, p. 106)

    E mais adiante, destaca a relação do bem-cuidar do corpo com a vida racional:

    Uma existência racional não pode desenrolar-se sem uma prática de saúdehugieine pragmateia ou techne – que constitui, de certa forma, a armadura permanente da vida cotidiana, permitindo a cada instante saber o que e como fazer. Ela implica uma percepção, de certa forma médica, do mundo, ou, pelo menos, do espaço e das circunstâncias em que se vive. Os elementos do meio são percebidos como portadores de efeitos positivos ou negativos para a saúde; entre o indivíduo e o que o envolve, supõe-se toda uma trama de interferências que fazem que tal disposição, tal acontecimento, tal mudança nas coisas irão induzir efeitos mórbidos no corpo; e que, inversamente, tal constituição frágil do corpo será favorecida ou desfavorecida por tal circunstância. Problematização constante e detalhada do meio; valorização diferencial desse circundante em relação ao corpo e fragilização do corpo em relação àquilo que o circunda. (Idem, p. 107)

    O cuidado do corpo, que se traduzia na prescrição de dietas alimentares, atividade física, uma espécie de medicina preventiva, estava articulado com aquilo que Foucault identificou como o cuidado de si, uma forma de articular e gerir sua própria vida. Em termos filosóficos, uma ética, uma ciência da condução da própria vida que, antes de qualquer coisa, se preocupava com a saúde e a atividade corporal.

    No entanto, a visão que prevaleceria na história do Ocidente seria não esta, mas sim aquela que desprivilegia o corpo. O dualismo psicofísico que, como vimos, em Platão não significava o desprezo pelo corpo acabou por ser identificado dessa forma por outras vertentes de pensamento da época e mesmo por alguns de seus discípulos e também pelo neoplatonismo, séculos depois. E com o surgimento do cristianismo, difundiu-se a noção do corpo como sede do pecado, prisão da alma, realidade a ser superada.

    Durante todo o período medieval, com a cultura voltada para os temas religiosos, sob a inflexão do cristianismo dominante, essa concepção prevaleceu. O corpo era tomado como lugar de pecado e, portanto, quanto menos ativo melhor. Algumas posturas teológicas diferenciavam-se um pouco, mas apenas quando buscavam aproximar o corpo da realidade espiritual.

    Alguns Padres da Igreja estabeleceram uma distinção, pelo menos no que se refere ao ser humano, entre corpo e matéria. Os mais influenciados pela tradição platônica e neoplatônica viram na matéria uma espécie de mal, muito afastado, se não infinitamente afastado, do Ser. O corpo humano, em contrapartida, pode ser transformado e, no limite, transfigurado. São Paulo falara (1 Cor. 15, 44) do corpo espiritual, não submetido à matéria. Essa noção de corpo espiritual foi objeto de especulação por parte de muitos teólogos cristãos.

    A maioria dos escolásticos concebeu o corpo como uma matéria formada, ou in-formada. O corpo é união de matéria e forma. Alguns falaram da corporeitas – corporeidade – como uma forma, ainda que uma forma acidental. (Ferrater Mora 2000, p. 584)

    Vemos, assim, que o tema da corporeidade já foi colocado por filósofos e teólogos medievais, embora não seja demasiado afirmar que estivessem muito distantes de uma noção de corpo ativo.

    Na época moderna, predominou a visão cartesiana de dualismo psicofísico, que leva essa posição ao extremo. Para Descartes, o ser humano é composto por duas substâncias distintas: o corpo, uma substância ou coisa extensa (res extensa é a expressão que ele usa em latim), de natureza material, e a alma, uma substância ou coisa pensante (res cogitans). Assim esse filósofo definiu o corpo:

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1