Fisiologia da idade
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Sobre este e-book
Mas Ricardo Lísias sabe o que está em jogo na literatura moderna. Romances de formação ou epifanias já não são capazes de estabelecer verdades, histórias coerentes e sentidos. O suposto projeto de autobiografia derrapa assim para uma ficção fragmentada e tensa que, paradoxalmente, é mais próxima ao fluxo da memória do que as inocentes biografias ultra-empíricas.
Neste novo livro o autor de Divórcio entra ainda mais fundo na turbulenta fronteira entre ficção e realidade e acaba por fazer uma grande homenagem à literatura através de seu primo bastardo: os quadrinhos.
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Fisiologia da idade - Ricardo Lísias
Sumário
I
II – Minhas dívidas
III – Acerto de contas
Agradecimentos
Sobre o autor
I
Completei quarenta anos na semana passada. A crise que todo mundo conhece (e não resiste a falar) chegou-me, porém, há alguns meses. Resolvi controlá-la do jeito que mais me agrada. Fiz uma linha do tempo e repeti para mim mesmo, enquanto apontava o lápis, que dessa vez não vou escrever um conto. Não vou escrever um conto.
A obsessão por acordar todos os dias um pouco depois das seis horas da manhã para escrever marca a segunda metade da minha vida. Foi assim quando meu avô morreu e, do mesmo jeito, três meses depois, durante os dias seguintes ao nascimento do meu filho. O parto ocorreu às cinco e meia da tarde. Doze horas depois saí do hospital atrás de uma mesa isolada e uma xícara de café. Escrevi um trecho de um texto em que tento falar da relação do avô com os netos.
Não aproveitei nada. Mas o fato de ter mantido a minha rotina deve ter me deixado mais tranquilo. Coloquei na cabeça que o bebê tinha as bochechas do meu avô. Estava afoito, um pai, e ao mesmo tempo cheio de saudades. O Pedro acabou de nascer.
Pensar sobre a segunda metade da minha vida não me deixa menos melancólico. Os livros que escrevi nesses vinte anos não são exatamente o que eu planejava. Alguns chegam perto e. Não, dessa vez não me repito. Vou lidar com a crise de outra forma. Só saio daqui se de fato me recordar de alguma coisa: nos primeiros vinte anos da minha vida, tudo o que fiz foi ler e jogar xadrez.
Com oito anos, precisei engessar o pé esquerdo. A falta de movimento estava me deixando louco. Só meu avô percebeu. Minha mãe detestava jogos, acho que por causa da história do tio Said. Quando ela era nova. Não, prometi que faria diferente. Vou conseguir.
Meu avô apareceu com um jogo de xadrez. Junto, deixou um livro com as melhores partidas de Jose Raúl Capablanca. Fiquei fascinado com a possibilidade de ganhar do meu avô. No começo, acho que ele estava deixando. Quando, porém, retirei o gesso, percebi que ele jogou direito e. Foi nossa última partida.
Além de ter me distanciado do meu avô, o xadrez me trouxe outros prejuízos. Mais velho, comecei a andar com pessoas estranhas, eu progredia no jogo e minha empáfia só aumentava e quando não estava no clube preferia a solidão.
Perdi horas estudando as aberturas, todo tipo de recurso para melhorar a posição das peças e a maneira correta de proceder no final das partidas.