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Essa coisa brilhante que é a chuva
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E-book105 páginas2 horas

Essa coisa brilhante que é a chuva

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Sobre este e-book

Depois de lançar Por que sou gorda, mamãe?, um dos mais apreciados romances brasileiros em 2006, Cíntia Moscovich apresenta ao público Essa coisa brilhante que é a chuva, volume que reúne contos inéditos escritos ao longo de seis anos e que teve o patrocínio de Petrobras Cultural e do Ministério da Cultura. Com muita originalidade e impressionante sensibilidade, Cíntia Moscovich aborda temas corriqueiros e inevitáveis: o ciúme do filho pela mãe, a adoção de um cachorro abandonado, um jovem casal às voltas com uma reforma na casa. Valendo-se de muito humor ― e da tragédia sempre correspondente ―, a autora conseguiu uma reunião de contos tão coesos, e tão divertidos, que mais parecem uma só narrativa, tornando a leitura uma experiência única. Segundo Fabrício Carpinejar, que assina a orelha do volume, "Esse livro é um retrato antológico de Cíntia Moscovich. É quando a gente sabe com quem a gente está falando: estou conversando com o tempo. Estou conversando com o futuro. Estou conversando com o Manual de Literatura de meu neto. Estou conversando com um clássico."
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento16 de set. de 2020
ISBN9786555871326
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    Essa coisa brilhante que é a chuva - Cíntia Moscovich

    Agradeço

    Gatos adoram peixe, mas odeiam molhar as patas

    Embora fosse noite, e as luzes do letreiro na fachada já estivessem acesas fazia tempo, a ferragem Abramovich ainda estava aberta. Atrás do balcão, junto à caixa registradora, Saulzinho parecia absorto: limpava as unhas com a ponta de uma chave de fenda, os lábios armando e desarmando um biquinho magoado. Havia ainda o gato, enroscado numa almofada sobre o balcão, que ronronava o prazer do sono. Dono e bicho não podiam estar mais gordos.

    De repente, num gesto raivoso, o rapaz fincou a chave de fenda no balcão:

    — Não quero mais que me tratem como uma criança! — o gato acusou o impacto mexendo as orelhinhas. Saulzinho continuou: — Saulzinho, uma pinoia! — pronunciava o próprio nome com deboche. — Você está me ouvindo, Mishmash?

    Ao ouvir seu nome, o gato abriu um dos olhos. Saulzinho agigantava-se:

    — Meu nome é Saul! — bateu com a mão livre sobre o peito. — Saul, como o primeiro rei de Israel!

    Mishmash bateu o rabo. Saul investia, alteando o tom de voz:

    — Vida nova. Nunca mais o nhem-nhem-nhem da mamãe!

    Com o rosto muito vermelho e agitando as mãozinhas gorduchas, explicava ao gato que exigiria que o tratassem com a dignidade que um adulto merecia, nada de diminutivos, nada de infantilidades e, com relação à mãe, nada de ser tratado como um bebê. Também alugaria um apartamento, moraria sozinho, andaria de cuecas o tempo todo, se entupiria de salames e linguiças e encheria a cama de mulheres.

    — Vou ter um harém de goias!

    O gato bocejou. Saul abriu a gaveta do caixa e catou a féria do dia. Encheu o potinho de ração (o da água estava cheio) e se certificou de que o basculante permanecia aberto para que Mishmash pudesse sair. Os vidros enegrecidos da janela, pintados de cocô de mosca, causaram um certo asco.

    Apagou as luzes e baixou a cortina de ferro, não sem antes beijar a mezuzá e recomendar ao gato que cuidasse direitinho do negócio.

    — Amanhã, você não vai me reconhecer, Mishmash. Serei outra pessoa.

    Antes de seguir para casa, levantou o cós da calça, que teimava em se dobrar ao peso da barriga. Apesar disso, sentia-se um recém-ungido.

    Seguiu a rua com passo marcial e só perdeu a realeza na subida da lomba. Pouco antes de chegar a casa, cruzou com seu Natálio, aquele que tinha ficado maluco com a viuvez. O velho fez questão de cumprimentá-lo: Boa noite, Saulzinho. Saul ergueu o queixo e limpou o suor. Resmungou uma boa educação de protocolo, contendo o ímpeto de mostrar ao velho o que era bom para a tosse.

    — Saulzinho, uma ova — disse de si para si.

    Ao abrir a porta, depois de beijar a mezuzá, veio-lhe o cheiro de cânfora, alho e limão. Hesitou, mas só por um instante. Foi quando a mãe apareceu na porta da cozinha, os seios e a barriga estrangulados pelo avental. Ao ver o filho, dona Berta avançou em sua direção, desmanchando-se em ói-ói-óis:

    Mein kindale, mein sheiner ingale, onde você estava? — dizia, enquanto cobria o filho de beijos.

    Saulzinho bem que odiava ser chamado de criança linda e bem que tentava se desvencilhar da beijação, mas temia qualquer gesto mais brusco. Passava-lhe pela cabeça parte do discurso que ensaiara na ferragem, que ele não era mais a criança da mamãe, muito menos o menino mais bonito do mundo, longe disso, estava com quarenta e oito anos, cento e quarenta e nove quilos, que tinha direito a tratamento de gente adulta. A mãe não parecia escutar, só fazia abraçá-lo e beijá-lo, mein kind, mein ingale. Quando a mãe finalmente o largou do abraço e ordenou que ele fosse lavar as mãos para a janta, Saulzinho conseguiu dizer:

    — Mamãe, a senhora tem que compreender, não quero mais ser tratado como criança. Vou embora de casa.

    Dona Berta fez um muxoxo ofendido e deu um tapinha com a mão no ar:

    Nu? Chega tarde e ainda quer morar sozinho? Agora é rebelde? Se quer ir, vai, vai — apontava a porta de casa com desprezo. — Mas vamos jantar antes. Fiz guefiltefish.

    Guefiltefish. E não era dia de festa nem nada. Guefiltefish, os bolinhos de peixe redondos, perfeitos, um pedaço do paraíso. Saulzinho sentiu a vontade de independência minguar feito uma passa de uva. Era um infeliz prisioneiro, mas também ninguém podia ser livre de barriga vazia. Dona Berta encerrou a cena:

    — É mais fácil enfrentar a desgraça bem alimentado do que com fome.

    Dona Berta serviu a mesa com guefiltefish, chrein, batatas coradas na manteiga, tomates recheados, galinha ensopada e arroz branco. Sentaram-se à mesa. Durante todo o jantar, a mãe falou e falou, como sempre falava e falava. Que as coisas do mercado estavam cada vez mais caras, ela não sabia onde arranjar dinheiro, ainda bem que o falecido pai de Saulzinho tinha deixado a ferragem — e jogava as mãos e o olhar para o alto —, deviam agradecer aos céus, ela andava muito sozinha, falando em solidão, seu Natálio tinha aparecido para tomar chá. Saul quase não escutava, tinha que corrigir, ia mesmo morar sozinho, receber mulheres, aquilo não era só ameaça, Saul, seu nome era Saul. Mas se ouviu batendo na mesa e dizendo:

    — Seu Natálio, aquele maluco, esteve aqui? — a louça tremia ao baque.

    A mãe fez que sim com a cabeça e repreendeu-o, dali a pouco ele iria arrebentar a mesa com aquelas batidas, que mishigás, que loucura, além do mais seu Natálio, aliás, Natálio sem o seu, não era maluco. Era um homem bom, mensh.

    Mensh, homem bom. Saulzinho tomou um copão de água, apagando um fogo que azedava o estômago. Amanhã, decidiu e falou para a mãe, amanhã falariam com mais calma. A mãe parou de tirar a louça da mesa e tapou-o de beijos e mais beijos, ria-se, arrulhava em torno do rebento, seu Saulzinho, vejam só, falando grosso, já estava mesmo ficando um homenzinho.

    Saulzinho ficou emburrado e disse que iria deitar. Subiu para o quarto.

    Nem bem meia hora que Saulzinho tinha deitado, a mãe, como em todas as outras noites, entrou no quarto, puxou-lhe as cobertas, deu-lhe um beijo e apagou a luz do quarto. Antes de sair, disse uns agrados em iídiche, convocando a proteção divina para o sono do filhinho. Ele adormeceu e sonhou que reinava sobre todo Israel.

    O dia seguinte passou entre clientes, devoluções e pedidos de buchas e pregos para a fábrica. O almoço de Saulzinho foi a vianda da padaria. A mãe não apareceu para ajudar no caixa. Telefonou avisando que ia ao cabeleireiro.

    No final do expediente, outra vez: embora as luzes do letreiro na fachada já estivessem acesas fazia tempo, a ferragem Abramovich continuava aberta. Dessa vez, Saulzinho não estava atrás do balcão; dessa vez, Mishmash não dormia, acompanhando com os olhos o vaivém do dono dentro da loja:

    — É o que eu lhe digo, Mishmash, minha mãe é capaz de enlouquecer um ser humano — e levava as mãos à cabeça. — Mas hoje não, de hoje não passa.

    O gato pulou do balcão para o piso. O barulho do pouso foi o de um pacote balofo. Saulzinho pegou a féria do dia e logo fechou a ferragem, beijando com ardor a mezuzá do umbral. Caminhava para casa com passo marcial e ar solene.

    Ao abrir a porta, ia mais decidido que nunca; veio-lhe, no entanto, o cheiro de cânfora, alho e limão de

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