Natureza Líquida: As Modelagens Marcárias e a Publicidade Verde
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Sobre este e-book
Com embasamento nas ideias de Deleuze, Guattari e Bauman, o percurso do livro é instigante e provocador e revela as nuances da liquefação da natureza e sua transformação em mercadoria e objeto de consumo no cenário contemporâneo.
O livro é destinado a alunos, professores e profissionais que se interessam pelos temas voltados ao consumo, à responsabilidade socioambiental e à comunicação publicitária, com importantes contribuições teóricas e empíricas no campo interdisciplinar.
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Natureza Líquida - Giselle Torres e Fred Tavares
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
O preço do silêncio
é pago na dura moeda corrente
do sofrimento humano.
Fazer as perguntas certas
constitui, afinal, toda a diferença
entre sina e destino,
entre andar à deriva e viajar.
Zygmunt Bauman
Eu sei que a natureza não tem nada de verde nem de cinza, que ela representa na verdade uma paleta infinita de cores.
Serge Moscovici
APRESENTAÇÃO
Na contemporaneidade são observadas significativas transformações, nos campos social, político, econômico e ambiental, que impactam o indivíduo e o meio que o cerca. Nessa nova lógica, emergem tensões que podem influenciar a forma como o sujeito produz a sua subjetividade e as suas relações sociais. Nesse contexto, o consumo tem um papel estratégico para se pensar os novos agenciamentos de produção. Dessa forma, a Sociedade de Consumo, que tem como pano de fundo a Modernidade Líquida, acentua a temática socioambiental como uma das formas desse agenciamento e revela que a questão inerente à natureza pode ser apropriada como ferramenta estratégica para amplificar a lógica mercadológica e expandir ainda mais a concepção do capital, no espaço liso e desterritorializado da liquefação do mercado.
A partir desse olhar, o presente trabalho investiga o consumo verde, sob o olhar psicossocial, para desvelar de que forma a publicidade contemporânea com apelo socioambiental reflete o processo de produção de novas subjetividades. A partir do prisma da sustentabilidade líquida
, indaga-se a formação de novos modos de ser, por meio de uma investigação interdisciplinar que se apoia nos conceitos de máquinas desejantes, consumo e pertencimento, identidades prêt-à-porter, kits de subjetividade, descartabilidade, Capitalismo Rizomático, Ecopropaganda, consumo verde, greenwashing, consumerismo, dentre outros.
A metodologia adotada neste estudo é a pesquisa exploratória, por meio das técnicas bibliográfica e documental e estudo qualitativo e quantitativo dos anúncios com apelo socioambiental publicados na revista Veja entre os anos de 2004 e 2014. A base para fundamentação teórica é construída a partir de conceitos propostos por autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Zygmunt Bauman e outros que com esses dialogam. A partir desse recorte, esta pesquisa se propõe a analisar o uso da publicidade verde
como forma de legitimar a natureza líquida
e retroalimentar a ideia da natureza produtilizada
, ética e/ou estética, apresentada como uma mercadoria/marca pronta para ser consumida de forma despolitizada. Ademais, o livro traz um olhar sobre como a publicidade verde
influencia na formação de novos modos de ser
ainda mais arraigados ao consumo e de que maneira essas novas modelagens marcárias são produzidas e reproduzidas no mercado como kits de subjetividade.
PREFÁCIO
Os últimos 40 anos da história da humanidade foram vertiginosamente movimentados do ponto de vista das concepções de mundo. Poucos períodos históricos apresentaram tantas variações na percepção humana sobre sua realidade social. Marcado pelo suposto final da história, e da possibilidade da existência das utopias, o período da chamada pós-modernidade é tipificado por muitos como aquele no qual o capitalismo em sua vertente financeira se afirma como única possibilidade de organização produtiva; e o consumo de bens passa a ser determinante para a formação das identidades, individuais ou coletivas.
Marx, em meados do século XIX, já alerta para as contradições desse tipo de capitalismo e como elas são "contraditórias não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos¹". Essas contradições da condição de existência em muito são a origem da aparente necessidade constante da transformação da identidade individual, duramente construída ao longo da modernidade, para seu plural, para as identidades líquidas e mutantes da chamada pós-modernidade.
Giselle Torres e Fred Tavares trabalham, em uma perspectiva fortemente influenciada por Zygmunt Bauman, questões primordiais de um dos nós górdios dessa reconstrução permanente: o denominado consumo verde. Discorrem no presente trabalho sobre questões como: capitalismo rizomático, subjetividade capitalística, liquefação da sustentabilidade, marketing verde, marketing ambiental, marketing sustentável, greewashing e outros temas pertinentes ao universo teórico que funde sociologia, publicidade, psicologia e política. Fusão necessária ao entendimento da sociedade contemporânea. Fusão nascida da natural interdisciplinaridade da área de origem dos dois autores: a comunicação social. Faceta fundamental para o entendimento das questões da formação e transformação da identidade humana, individual e coletiva, nos dias atuais.
A parceria autoral entre Giselle Torres e Fred Tavares une entusiasmo e experiência e conjuga duas visões geracionais na abordagem de uma temática que exige um enfoque múltiplo para sua melhor compreensão. Certamente este é o resultado de um trabalho de pesquisa que congrega muitas outras qualidades, todas direcionadas para desvendamento de aspectos e detalhes de uma área vital ao desenvolvimento da compreensão da sociedade de consumo em nosso país, e no momento crucial que vivemos do nosso desenvolvimento histórico.
Prof. Dr. Amaury Fernandes
Diretor da Escola de Comunicação / UFRJ
Sumário
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: ALGUMAS PISTAS SOBRE O CONSUMO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE LÍQUIDA
1.1 Inquietações sobre Modernidade Líquida como pano de fundo da Sociedade de Consumo
1.2 Desejos líquidos
na Sociedade de Consumo
1.3 Consumo: do Capitalismo Mundial Integrado ao Capitalismo Rizomático
2
PSICOSSOCIOLOGIA E SUBJETIVIDADE: UM OLHAR INTERDISCIPLINAR DO PROCESSO DE CONSUMO
2.1 Alguns contornos do consumo sob a perspectiva psicossocial
2.2 Consumir para pertencer: outras reflexões
2.3 O consumo na Modernidade Líquida: consumir para viver ou viver para consumir?
2.4 Subjetividade capitalística
: uma investigação sobre a produção de modos de ser
, "kits de subjetividade" e identidades prêt-à-porter
3
CONSUMO VERDE E SUSTENTABILIDADE LÍQUIDA: IDENTIDADES VERDES
NO CONTEXTO DA MODERNIDADE LÍQUIDA
3.1 Consumo verde: olhares e percursos
3.2 Liquefação da sustentabilidade
: a desmaterialização da natureza a partir do olhar mercadológico
3.3 Consumerismo: pistas e provocações
4
ECOPROPAGANDA, MARKETING VERDE, GREENWASHING E MARKETING 3.0: COMO SE CONSOLIDA O APELO AMBIENTAL SOB A ÉGIDE DA MODERNIDADE LÍQUIDA
4.1 Os caminhos da Ecopropaganda no Brasil: breves considerações
4.2 Marketing verde, marketing ambiental, marketing sustentável: reflexões sobre a natureza e o capital
4.3 Greenwashing: maquiando a publicidade
4.4 Marketing 3.0 e a natureza produtilizada
5
INTERPRETANDO AS MODELAGENS MARCÁRIAS NO CONTEXTO DA NATUREZA LÍQUIDA
5.1 Critérios de coleta de dados e de seleção
5.2 Análise quantitativa
5.3 Categorização: análise qualitativa
5.3.1 Natureza-objeto
5.3.2 Discurso (in)sustentável
5.3.3 Carimbo-verde
5.3.4 Consumerismo
5.4 Categorização: análises quantitativas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No final do século XX, o avanço do desenvolvimento da tecnologia, em paralelo à crescente limitação dos recursos naturais disponíveis, resultou em grandes choques negativos no cenário social e mercadológico mundial. A iminente necessidade de desenvolvimento de novos valores e modelos socioeconômicos voltados à redução dos impactos socioambientais reposiciona a natureza como tema de grande relevância nos debates de distintos segmentos do mercado e da sociedade. O interesse nas questões inerentes à sustentabilidade passa a permear distintos campos de saber e setores do mercado. A sociedade − mais politizada e intimidada pelas consequências do aquecimento global, da destruição da biodiversidade e da redução dos recursos energéticos – passa a pressionar para que os assuntos que permeiam o social e a natureza saiam da concepção de prática politicamente correta para ação emergencial nos mais variados segmentos da economia e do mercado². No que tange a essa nova lógica mercadológica, Giddens³ afirma que, com a eclosão de um turbilhão de novos acontecimentos na era moderna, os indivíduos passam a ser mais reflexivos, conferindo a si mesmos a reprodução de novos modos de ser
⁴.
Inserida em um novo contexto socioambiental, a sociedade tem um incremento na percepção do agravo dos desastres ecológicos e das consequências a que está sujeita. O imediatismo da necessidade de mudança no modelo desenvolvimentista apresentou-se iminente em várias camadas da sociedade. A temática verde
, à vista disso, integra-se finalmente às pautas de discussão do meio empresarial e governamental⁵. O consumo sustentável
torna-se um dos tópicos fundamentais no contexto da contemporaneidade, realidade que estimula as corporações a voltar seus esforços publicitários para o argumento modelado a partir do apelo verde.
Seguindo essa lógica, as mídias, aliadas na formação de opiniões e indução de novos comportamentos, podem estar contribuindo para agenciar e acompanhar a formação de novos indivíduos cuja "identidade é plural, mutável, fragmentária e flâneur"⁶. A partir dessa ideia, as empresas podem incitar a produção e reprodução de novas identidades no mercado consumidor por meio do direcionamento de seus esforços publicitários para a construção de uma imagem pró-ambientalista, estratégia que visa diferenciar e agregar valor à marca num cenário de extrema competitividade. Nesse sentido, o olhar psicossocial auxilia no entendimento do processo de escolha de marcas comerciais como estratégia de pertencimento, através de identidades revogáveis, temporárias e flutuantes
⁷.
Com objetivo de reflexão dos processos de subjetivação inerentes ao consumo, esta pesquisa apoia-se na análise da Sociedade de Consumo⁸, que tem como pano de fundo a Modernidade Líquida⁹ sob a lógica do Capitalismo Mundial Integrado¹⁰, que se desdobra em Capitalismo Rizomático¹¹. A partir dessas diretrizes macro, são analisadas a teoria e a sua aplicação ao caso prático, para entender a produção de novos modos de ser
¹² nas peças publicitárias a partir dos conceitos de desejos transmutados em necessidades ou máquinas desejantes
, com base em Deleuze e Guattari¹³; da formação de "kits de subjetividade", com base em Tavares e Irving¹⁴; da formação de "identidades prêt-à-porter, com base em Sibilia¹⁵; da concepção de
sustentabilidade líquida", com base em Tavares, do incentivo à descartabilidade; da ideia de consumo e pertencimento; da prática de greenwashing; da Ecopropaganda; e da resistência à lógica instalada a partir do movimento do Consumerismo. O recorte proposto aqui permite o diálogo com outros autores de forma a problematizar o tema. Ademais, são correlacionados conceitos de formação de identidades plurais e mutáveis a partir das relações de consumo que permeiam a contemporaneidade.
Bauman¹⁶ afirma que o consumidor não busca a satisfação das necessidades (sólidas, inflexíveis e finitas), mas se volta aos desejos: muito mais voláteis, fluídos, efêmeros e infinitos. Para o autor, consumir torna-se uma compulsão, um vício na pós-modernidade¹⁷. Sendo assim, o consumo é, na perspectiva psicossocial, um modo de ser
fluido, mutável, que pode apresentar-se sob esse mesmo modelo quando observado sob a ótica do consumo de produtos e serviços verdes
.
Já as corporações brasileiras, inseridas nesse contexto psicossocial fluido, passam a concentrar seus esforços em ações de marketing que expõem e ratificam o engajamento a favor das práticas verdes
. E, ao se associarem com questões sociais e ambientais, buscam agregar valor aos seus negócios por meio da construção do fator credibilidade junto aos stakeholders¹⁸. É a partir desse momento que surge o marketing verde¹⁹, também chamado de ecológico ou marketing sustentável²⁰.
Nesse sentido:
[...] as relações entre natureza e sociedade ganham novos contornos e dimensões [...] a temática ambiental vem se tornando uma questão estratégica de mercado e, ao mesmo tempo, foco de preocupação por parte de diferentes segmentos da sociedade.²¹
Diante dessa nova conjuntura socioeconômica, Old Grajew²² − presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social − acrescenta que a gestão com responsabilidade social também pode trazer uma série de benefícios para a empresa, como a valorização da imagem institucional e da marca, maior lealdade de seu público e sobrevivência da organização. Grajew enfatiza que a comunidade deposita maior importância em empresas que assumem uma postura social comprometida.
Indo ao encontro dessa ideia e tendo como base exploratória o consumo brasileiro, a pesquisa Rumo à Sociedade do Bem-Estar
, realizada em 2012, pelo Instituto Akatu, revela que aumentou significativamente, de 2010 para 2012, o contingente de brasileiros que ouviram falar
no termo sustentabilidade (44% para 60%). O interesse em buscar informações sobre o tema também aumentou, passando de 14% para 24%.
Nessa nova dinâmica mercadológica, muitas empresas passam a se apropriar das questões ambientais para associar seus produtos e serviços ao argumento verde e, consequentemente, engrenar lucros. A problemática da questão ambiental torna-se, então, parte de empresas que desejam crescer e sustentar-se em longo prazo