O Que Está Por Trás do Que Comemos? O Mercado de Alimentos Sob a Ótica dos Direitos Humanos
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O Que Está Por Trás do Que Comemos? O Mercado de Alimentos Sob a Ótica dos Direitos Humanos - Ana Luiza da Gama e Souza
O que está por trás
do que comemos?
O mercado de alimentos sob a ótica
dos direitos humanos
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Ana Luiza da Gama e Souza
O que está por trás
do que comemos?
O mercado de alimentos sob a ótica
dos direitos humanos
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Faperj pelos recursos do Programa Jovem Cientista de Nosso Estado, que possibilitaram o financiamento deste livro, e ao CNPq pelos recursos da Chamada CNPq n.º 18/2021 – Universal, que me deram o suporte e infraestrutura necessárias à pesquisa.
Às minhas alunas e aos meus alunos, aos meus orientandos e às minhas orientandas, pelas dúvidas e questionamentos, sempre desafiadores.
À Letícia Veloso, que neste projeto foi minha orientadora e hoje é minha colega e amiga, por todo o conhecimento que me ofereceu generosamente e por ter me guiado ao encontro de meu próprio objeto de pesquisa. Agradeço à Letícia, ainda, por disponibilizar seu tempo para me presentear com a apresentação desta obra.
Aos meus colegas Rafael Iorio, Fernanda Duarte, Guilherme Calmon e Napoleão Miranda por toda a contribuição na finalização deste projeto. Ao professor John Wilkinson, por ter me introduzido na sociologia econômica, que me foi tão cara neste livro.
À minha esposa Lara, por todo o amor nessa vida e, ainda mais, como acadêmica, por todo o estímulo e a luz que lançou sobre este e sobre todos os outros projetos que ousei desenvolver ao longo desses 23 anos.
Aos meus pais, in memoriam, que vocês estejam orgulhosos deste livro, pois ele é o reflexo de todos os valores e do amor que sempre me dedicaram!
APRESENTAÇÃO
É com imensa satisfação que apresento ao público leitor esta obra, baseada na tese de doutorado da autora, que tive o prazer e a honra de orientar. Contribuição importante, o livro de Ana Luiza da Gama e Souza trata de uma questão absolutamente fundamental para todos nós: a alimentação. Ao tratar dessa questão, porém, a autora o faz não em termos daquilo que comemos ou dos modos de se alimentar, mas de como a maioria dos alimentos são hoje produzidos: por meio de sistemas produtivos complexos em que tecnologia e a indústria química se entrelaçam com a indústria agroalimentar. E ao tratar de tal entrelaçamento, que se materializa no uso indiscriminado e crescente de pesticidas na produção de nossa comida, ela enfatiza uma perspectiva radical: a dos direitos humanos. Uma vez que não é possível desconsiderar os prejuízos (possíveis, prováveis ou comprovados) do mercado de alimentos, estruturado em torno do uso generalizado de pesticidas, para a saúde humana, para o meio ambiente e até para a manutenção das desigualdades sociais, entre outras externalidades, a autora é enfática: logo no início do livro, nos informa que o uso indiscriminado de pesticidas, na produção de alimentos, é uma questão de direitos humanos. Como atualmente não existe produção de alimentos sem mercado e não existe mercado de alimentos sem pesticidas, ao longo de suas páginas, o livro desenrola a complicada trama de relações, mercados e escolhas políticas que geram o que Ana Luiza aptamente denomina de violações de direitos humanos.
Ao longo de suas páginas, então, o livro desenrola uma série de tramas e complexidades relacionadas às mudanças que ocorreram nas práticas de agricultura e na organização da economia nas últimas décadas, no Brasil e no mundo. Para a autora, essas mudanças descritas e analisadas em detalhe, capítulo por capítulo, constituíram as condições de possibilidade para a formação do que ela, criativamente, denomina de mercado bioquímico-tecnológico-alimentar
. Ao discutir tais mudanças e as tramas sócio-históricas, as escolhas políticas, os aspectos puramente tecnológicos e os processos sociais neles envolvidos, Ana Luiza mostra, em detalhe, como tais transformações, nas práticas da agricultura pelas novas biotecnologias, não existiram num vácuo. Pelo contrário, estiveram crescentemente inseridas num outro processo: o de uma reorganização profunda da economia e dos mercados — locais, nacionais e globais — por meio da crescente fragmentação e concentração.
Ampliando a análise ainda um pouco mais, Ana Luiza nos mostra como tais mudanças paralelas na organização geral da economia e nas dinâmicas do mercado de produção de alimentos têm sérias consequências para os direitos humanos, tanto em termos de deveres morais como de obrigações legais. Isso porque, nos diz ela, o direito à saúde, à alimentação adequada e a um meio ambiente igualmente saudável tem sido diretamente impactado por essas transformações.
A chave interpretativa principal do livro, por um lado, gira em torno do tratamento da economia como uma prática social, bem como do uso do conceito de campo
trabalhado por Pierre Bourdieu; ambos os entendimentos a autora retira da chamada nova sociologia econômica
, subdisciplina sobre a qual aprendemos muito durante a leitura deste livro. Por outro lado, a economia como prática é observada pela lente do, como dito anteriormente, mercado bioquímico-tecnológico-alimentar
, conceito inventado
aqui para dar conta do imbricamento entre dimensões que supostamente estariam distantes uma da outra: a bioquímica, a tecnologia, os alimentos.
Em resumo, diz Ana Luiza, o que temos diante de nós, na produção de alimentos para consumo humano, é um círculo vicioso: o campo agroalimentar foi redefinido pela tecnologia, e foram estabelecidas trocas entre o campo da indústria de alimentos, o campo das indústrias químicas e o campo das indústrias da informação. Em paralelo, o Estado também participa de trocas com o campo econômico. As empresas no campo disputam para ter o controle sobre o poder do Estado, principalmente o poder de regulamentação e direitos de propriedade. Isso porque o campo econômico é local — e também global — e, por isso, dependente das estruturas do Estado, seja para incentivar a pesquisa e o desenvolvimento, seja para criar ou deixar de criar condições que possam contribuir para as estratégias de dominação no campo, favoráveis às empresas dominantes ou às dominadas. Tanta complexidade, aprendemos, é hoje inerente às cadeias globais de produção de alimentos que promovem tanto integração como concentração de poder e dificultam estratégias de responsabilização para garantir os direitos humanos. Mesmo assim, ao final do livro, somos brindados com uma discussão interessante sobre algumas boas práticas
de promoção e direitos humanos parte de grandes corporações atuantes nesse mercado: essas, nos diz a autora, são um sinal de mudança potencialmente positiva.
Fevereiro de 2022
Leticia Veloso
Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em
Sistemas de Gestão Sustentáveis (PPSIG/UFF)
LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS
Sumário
Introdução
Capítulo 1
Mudanças nas práticas de agricultura: da domesticação ao mercado bioquímico-tecnológico alimentar
1.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA DA PESQUISA: ECONOMIA COMO PRÁTICA SOCIAL
1.2 O CAMPO ECONÔMICO
1.2.1 Mercado enquanto política
1.3 AGRICULTURA – A PRÁTICA DE DOMESTICAÇÃO DE SEMENTES
1.4 HIBRIDIZAÇÃO: O INÍCIO DA TRANSFORMAÇÃO
1.4.1 Biotecnologia e as mudanças nas práticas no mercado agrícola: indústria de sementes e indústrias químicas
1.5 AS INDÚSTRIAS QUÍMICAS E DE SEMENTES
1.6 AS DINÂMICAS NO MERCADO DE ALIMENTOS: SEMENTES, QUÍMICA E BIOTECNOLOGIA
CAPÍTULO 2
ECONOMIA GLOBAL E FRAGMENTAÇÃO DOS MERCADOS: NOVA CONFIGURAÇÃO DO MERCADO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR
2.1 TRANSFORMAÇÕES NA ECONOMIA NO SÉCULO XX: FRAGMENTAÇÃO DO MERCADO
2.2. AS CADEIAS GLOBAIS DE PRODUÇÃO COMO FERRAMENTA DE ANÁLISE
2.3 CONCEITO DE FILEIRA E A TEORIA DOS REGIMES DE HERRIET FRIEDMANN
2.4 CADEIAS DE PRODUÇÃO NO MERCADO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR E O PROBLEMA DA RASTREABILIDADE DOS NÓS
CAPÍTULO 3
AS MEGAFUSÕES NO CAMPO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR COMO DINÂMICA GLOBAL DE PODER
3.1 O CAMPO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR
3.2 OS PROCESSOS DE CONCENTRAÇÃO
3.3 A ONDA DE FUSÕES 1990-2000 E A CONSOLIDAÇÃO DO MERCADO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR
3.4 AS MEGAFUSÕES DE 2015
CAPÍTULO 4
MERCADO AGRO-BIOQUÍMICO-TECNOLÓGICO ALIMENTAR E DIREITOS HUMANOS
4.1 CONTAMINAÇÃO POR PESTICIDAS NO BRASIL: GENOCÍDIO SILENCIOSO
4.2 SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS PARA PROTEÇÃO AGRÍCOLA – PESTICIDAS E DIREITOS HUMANOS
4.3 O DESAFIO DA REGULAÇÃO GLOBAL DAS ATIVIDADES DAS EMPRESAS GLOBAIS NO ABQTA
4.3.1 Iniciativas voluntárias em direitos humanos e empresas
4.3.2 Responsabilidade das empresas com os direitos humanos
4.3.2.1 Estrutura normativa para direitos humanos e empresas: os princípios de Ruggie
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Introdução
O uso indiscriminado de pesticidas, na agricultura no Brasil, é questão de direitos humanos. Dados apontam que o uso vem aumentando, nas últimas décadas, causando um número considerável de doenças e mesmo a morte das pessoas, além da contaminação persistente do meio ambiente brasileiro. Essa realidade foi a motivação para desenvolver esta pesquisa de doutorado, que busca compreender as práticas por detrás das graves violações aos direitos humanos no Brasil, em especial ao direito à saúde, à alimentação e à sustentabilidade ambiental, que decorrem da utilização de pesticidas na agricultura.
Tais práticas são tomadas neste trabalho no sentido de ações e estratégias dos atores, independentemente de suas razões políticas, de modo que não haja nenhum tipo de reificação dessas práticas da economia que possa agregar a elas algum sentido ideológico. Por um lado, conceitos, como o de capitalismo
, entre outros, são utilizados no sentido atribuído pelos autores referenciados para aludir aos arranjos econômicos pós-industrialização. Por outro lado, apresenta-se um juízo minimamente crítico a respeito de algumas dessas práticas ou de um conjunto delas, de viés moral e ético, que estão refletidas no capítulo 4.
Toma-se, portanto, a economia e suas instituições como produto da construção social e as práticas econômicas como práticas sociais absolutamente conectadas com a realidade, e não um conjunto de formulações e teorias abstratas, como propõe a ortodoxia econômica. Se as relações econômicas são relações sociais, em toda a sua multidimensionalidade, partimos do conceito sociológico de campo econômico para compreender as mudanças nas práticas de agricultura e as dinâmicas de poder intrincadas e imbricadas dos atores no mercado de alimentos que possibilitaram o entrelaçamento de alimentos com as biotecnologias e a química.
Nesse mercado — que denomino agro-bioquímico-tecnológico alimentar —, as empresas de sementes e as empresas químicas, aliadas às de tecnologia para agricultura, formam os principais vetores das dinâmicas transformadoras. Alguns estados são também protagonistas dessas mudanças, principalmente os EUA, cujo papel na desregulamentação desse mercado, na pesquisa, no desenvolvimento e na proteção dos direitos de propriedade das inovações biotecnológicas das empresas, foi fundamental para a integração de sementes com as novas tecnologias bioquímicas.
A compreensão das mudanças, no mercado de alimentos, se dará a partir da análise de três aspectos, que serão objeto dos três primeiros capítulos: as mudanças nas práticas agrícolas provocadas pelas novas tecnologias (capítulo 1); o processo de fragmentação (capítulo 2) e de concentração da economia (capítulo 3); todas são dinâmicas fundamentais na configuração do mercado agro-bioquímico-tecnológico alimentar, que ocorrem em âmbito global e no local.
No capítulo 1, compreenderemos como se deram as práticas agrícolas, desde a domesticação de sementes até a hibridização, essa última como o processo de aprimoramento genético de plantas em geral para torná-las melhores
, com mais sabor, mais cores e mais resistentes as pragas, e é nesse ponto que a química entra em campo. Mostraremos que a tecnologia de modificação genética pela inserção da bactéria Bt, nas sementes de plantas, foi uma inovação da biotecnologia fundamental para a integração, em nível mais profundo, entre sementes e química, por permitir que a planta seja geneticamente resistente a pesticidas, como o glifosato. Se não fosse pela modificação genética da semente por Bt, a utilização do glifosato mataria todo o cultivo.
Nesse capítulo ainda apresento autores que compreenderam o mercado sociologicamente a partir de suas dinâmicas internas e o modo como o processo, na agricultura de domesticação e hibridização tecnológica, impactou a área de alimentos. Tal impacto se fez ver via biotecnologia e na produção de agentes químicos que possuem impactos contundentes na saúde humana. Por fim, o capítulo mostra a ofensiva da Monsanto, via insumos químicos, as novas estratégias de negócios da Basf e da Bayer e o agravamento da insegurança alimentar a partir da concentração nesse mercado.
No capítulo dois, examinam-se as transformações econômicas, ainda no século XX, que possibilitaram a emergência das multinacionais, via globalização, a fragmentação dos mercados e sua nova configuração, que se espalha mundialmente em redes de produção que dificultam a exigência de responsabilização e governança. A partir daí, analisam-se as cadeias globais de produção e seu imbricamento na criação de padrões específicos de mercado ligados à tecnologia, via estruturas descentralizadas globais, no sentido econômico, mas que operam localmente em sentido centralizado. Tal configuração tem sido característica dos mercados globais, em especial dos alimentos. Dessa forma, ainda nesse capítulo, mostra-se que, embora a responsabilidade social corporativa seja um horizonte ético de governança nas cadeias globais, a pouca rastreabilidade dos nós das cadeias globais impossibilita/dificulta a prestação de contas sobre danos que advenham de suas atividades.
No capítulo três, examina-se o processo de concentração do campo-mercado, ou campo econômico, e as consequências da concentração como estratégia de poder no ambiente e na vida humana. Em paralelo, a concentração de poder nesse campo possibilita o aumento de influência política, em âmbitos nacionais e internacionais, assim como as tomadas de decisão em âmbito local, como o afrouxamento de padrões restritivos