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Brasil: Terra da Contrarrevolução – Revolução Brasileira e Classes Dominantes no Pensamento Político e Sociológico
Brasil: Terra da Contrarrevolução – Revolução Brasileira e Classes Dominantes no Pensamento Político e Sociológico
Brasil: Terra da Contrarrevolução – Revolução Brasileira e Classes Dominantes no Pensamento Político e Sociológico
E-book473 páginas6 horas

Brasil: Terra da Contrarrevolução – Revolução Brasileira e Classes Dominantes no Pensamento Político e Sociológico

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Sobre este e-book

O livro Brasil: terra da contrarrevolução – revolução brasileira e classes dominantes no pensamento político e sociológico rememora e apropria-se de uma linhagem de pensadores que se dedicou a refletir sobre a categoria e a problemática da revolução brasileira – uma reflexão com vistas à transformação irreversível do Brasil contemporâneo. O autor, Ricardo Ramos Shiota, desenterra um tesouro da nossa historiografia e mostra os diferentes usos, as continuidades e as transformações da categoria revolução brasileira ao longo do Brasil republicano, assim como as reflexões tecidas sobre as classes dominantes. A obra é de interesse daqueles que pretendem saber mais a respeito do País e transformá-lo à luz das ideias avançadas e críticas que o autor retira do esquecimento.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de dez. de 2018
ISBN9788547315528
Brasil: Terra da Contrarrevolução – Revolução Brasileira e Classes Dominantes no Pensamento Político e Sociológico

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    Brasil - Ricardo Ramos Shiota

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    A Paulo Kazumi Shiota (in memoriam).

    É necessário imolar os filhos de Brutus para consolidar a liberdade recém-conquistada.

    Nicolau Maquiavel - Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.

    Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la. [...]. O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

    Walter Benjamin – Sobre o conceito de história.

    Agradecimentos

    Agradeço à Ricarda, fizemos parte um da vida do outro durante um setenário, com ela compartilho os eventuais méritos desse trabalho; à Júlia e aos demais funcionários da biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, muito atenciosos e prestativos; ao Benê pelas cópias e simpatia; ao Beneti, sempre zeloso nas questões ligadas ao prédio do Instituto; aos funcionários e aos terceirizados, pouco visíveis, mas sempre presentes; aos colegas e amigos que fiz em Barão Geraldo; à Denaise que me ajudou na revisão do livro.

    Agradeço ao meu orientador Rubem Murilo Leão Rego. Sou grato ao professor Nildo Ouriques que me enviou seu, até então, desconhecido texto sobre Florestan Fernandes publicado no México em uma coletânea organizada por Ruy Mauro Marini sobre o pensamento latino-americano e ao professor Gilson Volpato por seus ensinamentos de redação científica.

    Agradeço aos alunos e às alunas dos cursos de graduação da Unicamp que participaram das disciplinas que ministrei – A sociologia de Florestan Fernandes, Estrutura e estratificação social e Formação da sociedade brasileira –, através do Programa de Estágio Docente por três semestres, de fevereiro de 2012 a agosto de 2013. Uma experiência muito construtiva e importante para minha formação.

    Sou intelectualmente grato aos professores da Unicamp: Josué Pereira da Silva, Jesus Ranieri, Sílvio Camargo, Fernando Lourenço, Élide Rugai Bastos, Mariana Chaguri; Mário Medeiros e Plínio de Sampaio Arruda Júnior. Também agradeço André Botelho, Aluísio Schumacher, Ângelo Del Vecchio e Ana Motta Ribeiro pelas sugestões.

    APRESENTAÇÃO

    Este livro narra a história dos diferentes usos da expressão revolução brasileira e as crenças em torno das classes dominantes que a reflexão sobre a categoria suscita. Demarca no plano das ideias e das formas a existência de continuidades, rotinizações, rupturas e instabilidade semântica nos diferentes usos dessa palavra-chave do vocabulário político. Coloca o leitor diante de uma linhagem de intelectuais com diferentes orientações ideológicas, teóricas e políticas, mediante a análise de livros do pensamento político e sociológico brasileiro publicados de 1889 a 1966.

    Ao versar sobre a categoria e a problemática da revolução brasileira, esta obra questiona a passagem de uma sociedade monárquica, escravista, rural alicerçada na honra e na palavra, para uma sociedade republicana, urbana e industrial fundada no contrato, no indivíduo e no trabalho livre. O que a história com a luta de classes que lhe é imanente – conflito da sociedade consigo mesma, apreendido pelo prisma das diferentes tentativas de estabelecer significado à uma palavra e dela extrair um programa político de transformação substantiva da realidade –, nos legou?

    Resultado da tese de doutorado do autor, defendida em 31 de março de 2016, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, a adaptação em livro vem com algumas modificações: supressão de um capítulo, de tópicos; inclusão de citações para corroborar os argumentos e atualização de algumas informações.

    O autor

    PREFÁCIO

    A expressão Revolução Brasileira pode soar até estranha ao senso comum vigente hoje no País. Um senso comum remodelado pelos intelectuais das classes dominantes que foram capazes de promover uma mudança ideológica fortemente conservadora, mas com trucagem competente e colorida tal a se mostrar moderna e inovadora, capaz de estimular a liberdade individual. A operação mais importante foi a afirmação de que democracia não existe sem mercado e sem liberalismo (econômico e político). Ora, se alcançamos esse objetivo democrático não há mais qualquer razão para se falar em revolução (a não ser que seja tecnológica, já que esta cabe perfeitamente no discurso ideológico do mercado). O que não se disse e cuja explicação é difícil de oferecer é a forte tendência antipopular e antidemocrática dessa democracia!

    De fato, hoje, apenas uma fração das esquerdas, que mantém o referencial teórico e analítico na tradição cultural que em Marx teve a sua origem, é que insiste em dizer que a rota histórica para que a grande massa do povo brasileiro que vive do seu trabalho alcance a emancipação é a revolução socialista. Mas, mesmo nessa vertente, a expressão revolução brasileira parece superada, marcada pelo tempo, por circunstancias que não mais existem.

    Nos momentos de estertor da Ditadura Militar, no começo dos anos 80 do século XX, a palavra revolução (em geral) e revolução brasileira (em particular) perdiam ímpeto e substância para outras como transição e democracia, comumente acopladas como transição democrática, cuja inspiração encontra-se na farsa espanhola de passagem do fascismo à democracia. Houve, sem dúvida, uma rica produção científica que se empenhou para explicar a realidade do Brasil: qual a natureza da forma social e do poder político, do domínio de classe, da situação de dependência. O mais importante desses estudos, em particular o que remete ao problema da revolução brasileira, foi o A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes. Esse livro, mesmo que trazendo uma tese bastante polêmica, foi um marco importante por ter deixado claro que a Ditadura Militar, então reinante, era o ápice e a conclusão de um processo de revolução burguesa no Brasil e que se tratava dali por diante de pensar uma revolução democrática de natureza socialista.

    A expressão revolução brasileira foi muito difundida no léxico político brasileiro desde a rebelião da juventude militar, que cobriu o período 1922-1935. Uma esquerda militar de ideologia positivista e a nascente esquerda marxista falavam muito em revolução, em revolução brasileira. Era evidente que se tratava de uma revolução burguesa, mas não era essa a expressão mais usada. O período subsequente ao fim do Estado Novo é que assumiu a pauta da revolução brasileira. Além de comunistas e esquerda militar nacionalista, outras vertentes teóricas decidiram encarar o problema posto. O debate teórico e ideológico produziu uma bibliografia bastante significativa que se interrogava sobre o que poderia / deveria ser o Brasil. Até mesmo os golpistas de 1964 alardearam que ali se realizava a revolução brasileira, uma revolução democrática. Isso para se notar que além de marxistas e de positivistas, também liberais e autoritários tinham cada qual um entendimento do que seria revolução, do que seria democracia, do que seria nação brasileira. Isso implicou uma diversificação do universo categorial (conforme a inspiração teórica de cada autor) e uma conexão diferente, com outros pontos em discussão na pauta como eram o subdesenvolvimento e dependência, por exemplo.

    A derrota das forças populares em 1964, seguida pela derrota da resistência armada e da obra da ditadura, que conseguiu conciliar por certo tempo desenvolvimento e dependência, mudou a pauta política e também das ciências sociais no Brasil. A revolução burguesa estava por se completar, mas a revolução democrática ainda estava por se fazer. Passados mais de quatro décadas, infelizmente, a lição de Florestan Fernandes é atual.

    ***

    Este livro de Ricardo Shiota oferece ao leitor um cuidadoso levantamento da literatura que enfrentou o desafio de decifrar o enigma da revolução brasileira, oferecendo conteúdos diferentes e programas diferentes. Um mérito imenso do autor por voltar a sua preocupação para um problema que teve o seu tempo e, teve a sua linguagem, teve o seu programa. Uma fase muito diferente da atual, quando a massa da intelectualidade perdeu o vezo crítico, se deixou colonizar. As obras e autores analisados por Ricardo Shiota contribuíram enormemente para que nos conhecêssemos como povo nação em formação. No entanto, ainda hoje as questões essenciais postas naquele debate persistem e o problema da transformação radical da realidade brasileira é atual. É preciso, de novo, elaborar uma análise da realidade que esteja vinculada às massas populares, que tenha um programa que leve o Brasil para uma nova direção: da democracia (de verdade) e de uma nova civilização socialista, como era o programa implícito na obra de Florestan Fernandes. Há muito por ser feito.

    Marcos Del Roio

    Professor titular de Ciências Políticas

    Unesp-FFC.

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    HISTÓRIA DO CONCEITO DE REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMINANTES NO PENSAMENTO POLÍTICO

    1.

    PROBLEMÁTICA E GENEALOGIA DO CONCEITO DE REVOLUÇÃO BRASILEIRA

    2.

    REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMINANTES: DA QUARTELADA À REVOLUÇÃO BURGUESA COM INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA, DEMOCRACIA E SOBERANIA NACIONAL

    2.1 Ruptura com o latifúndio e com o imperialismo 

    2.2 Ampliação do regime democrático e estatização

    da exploração de nossas riquezas 

    2.3 Processo global de mudanças estruturais e culturais 

    2.4 Consciência crítica e protagonismo das massas 

    2.5 Industrialização e internalização dos centros de decisão 

    2.6 Reforma política democrática e atitude parentética 

    2.7 Descolonização e sensibilidade para o concreto 

    3.

    A REVOLUÇÃO BRASILEIRA COMO REVOLUÇÃO SOCIALISTA CONTRA AS CLASSES DOMINANTES

    3.1 Via pacífica 

    3.1.1 Direito de revolução e liberdade de viver 

    3.1.2 Inimigos do povo 

    3.1.3 Protagonismo de operários e camponeses 

    3.2 Via do conflito armado 

    3.2.1 Luta armada e constituição de uma base territorial 

    3.2.2 Insurreição defensiva 

    PARTE II

    REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMINANTES NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

    4.

    RECUSA E SILÊNCIO: O CONCEITO DE REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO E CLASSES DOMINANTES

    4.1 Revolução-conservadora do patriarcado 

    4.2 Aniquilamento das raízes ibéricas 

    4.3 Os dois brasis e a revolução brasileira 

    4.4 Terra de contrastes: uma crítica aos dois brasis

    4.5 Resistências à mudança

    4.6 Empresariado industrial e desenvolvimento 

    5.

    FLORESTAN FERNANDES: MUDANÇAS SOCIAIS E CRÍTICA ÀS CLASSES DOMINANTES

    5.1 Conceito de mudança social 

    5.2 Teoria da mudança social

    5.3 A emergência do povo na história 

    5.4 Persistência do passado 

    5.5 Revolução burguesa e marginalização 

    5.6 Democracia e (des) racialização da economia-política 

    5.7 Filhos de Brutus 

    5.8 Carruagem da reação 

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Os homens [...] estão condenados a garantir o seu destino unicamente pelo poder.

    Nicolau Maquiavel - Comentários sobre a primeira década

    de Tito Lívio.

    A República romana (509-390 a. C.) é a forma política mais perfeita já criada no ocidente, assevera Maquiavel¹. Antes do pensador florentino, a historiografia acreditava no ideal político cristão de paz e defesa e não reconhecia a grandeza daquela República, pois as divergências e os conflitos eram concebidos como processos cujos efeitos são perniciosos para a vida política das cidades. Contrário a essa concepção cristã, Maquiavel defende que a perfeição da República romana resultou do conflito entre a plebe e o Senado:

    Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o que aconteceu em Roma [...]. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma República que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens que quase todos condenam irrefletidamente².

    Como argumenta Maquiavel, Roma foi capaz de resistir aos desígnios da fortuna pela via exclusivamente política, pela virtù, nesse caso pela criação de um modelo misto e democrático de governo, fundado no conflito entre nobres e a plebeus e na expansão externa. Esse modelo contribuiu para que a República romana se perpetuasse no tempo, para que a virtù estivesse presente nas instituições, no ordenamento republicano e nas ações dos cidadãos. Roma canalizou o conflito para o bem comum, conteve os apetites individuais por meio de boas leis para promover o bem coletivo. Com isso, as desordens contribuíram para criar regulamentos favoráveis à liberdade de todos, e a presença e participação da plebe nos assuntos do Estado serviu como contrapeso à vontade dos nobres.

    Para elucidar o significado da distinção entre monarquia e república, em contexto no qual a burguesia disputou o poder de Estado contra a nobreza e o clero, convém lembrar com Montesquieu³ a distinção, pautada na história romana, dos princípios políticos monárquico e republicano. O princípio monárquico fundamenta-se na desigualdade, pois cria distinções, preeminências, hierarquias sociais, uma nobreza de origem apegada à honra, que significa preferências, privilégios e distinções. Já o princípio político republicano, afirma Montesquieu, é lastreado na igualdade e no compromisso com o público, baseia-se na virtude política dos cidadãos, que está relacionada às virtudes morais ou religiosas. O princípio republicano dá origem a duas formas: democrática ou autocrática – uma na qual o povo em seu conjunto possui o poder soberano; e outra na qual apenas uma parte do povo usufrui o poder de Estado. Apesar das formas distintas assumidas pelo princípio republicano, este é muito distinto do princípio político monárquico. Mas, na sociedade brasileira, essa distinção torna-se problemática nas ações concretas dos agentes, uma vez que a burguesia, ao invés de voltar-se contra, descende e, quando não, luta por distinções nobiliárquicas e os privilégios correspondentes.

    O historiador Tito Lívio⁴ narra as dificuldades ligadas à fundação da República romana, ocorrida em meio a pelo menos três tragédias – eventos que, séculos mais tarde, despertaram a argúcia e tornaram-se objeto de cogitação de Maquiavel. Em razão de que partimos de uma reflexão de Maquiavel acerca dos filhos de Brutus para interpelar o pensamento político e sociológico e questionar a história política brasileira, é oportuno conhecer mais de perto a narrativa de Tito Lívio sobre tais eventos.

    Na história de Roma, o fim da monarquia, como narra Tito Lívio⁵, deveu-se a três tragédias: a tragédia de Lucrécia, a tragédia ligada aos filhos de Brutus, Tito e Tibério, e a tragédia do próprio Lucius Junius Brutus – exemplo de homem virtuoso, do ponto de vista do princípio republicano tal como defende Maquiavel⁶. A monarquia romana durou de 753 a 509 a.C. O fim da monarquia foi ocasionado pela tragédia de Lucrécia, que provocou a queda do rei Tarquínio, o Soberbo, seguida pela eleição dos primeiros cônsules, Lucio Junios Brutus e Lucio Tarquínio Colatino.

    Antes desse acontecimento, narra Tito Lívio, Lucius Junius Brutus, filho de Tarquínia, a irmã do rei, ao saber que seu tio materno, o rei Tarquínio, o Soberbo, mandou matar os principais cidadãos, entre eles seu irmão, Brutus fez-se de ingênuo para não despertar o temor de seu tio. A população de Roma, miserável, já se voltava contra o soberano em razão de ser empregada durante muito tempo em tarefas manuais, consideradas na época trabalho de escravos. Os súditos também se rebelavam em razão das atitudes de arrogância e intolerância do monarca.

    Tito Lívio conta que Sexto Tarquínio, filho do rei e primo de Brutus, ao passar uma noite como hóspede na casa de Lucrécia, a estupra sob ameaças de morte. Lucrécia, abatida pelo ocorrido, escreve para seu pai, Tricipitino, e seu marido, Espúrio Lucrécio, solicita que voltem com urgência à Roma, acompanhados de seus amigos mais fiéis. Retornam com Públio Valério e Lucius Junus Brutus. Depois de contar-lhes o ocorrido, em nome da própria honra, Lucrécia empunha uma faca que guardava escondida na vestimenta e a crava no coração, em meio aos gritos de seu marido e de seu pai. Brutus retira o punhal do corpo de Lucrécia e promete vingança contra seu primo e contra toda a realeza com a intenção de libertar Roma para sempre da tirania.

    O crime comove a população romana, que se volta contra o rei, de acordo com Tito Lívio. Jovens plebeus e nobres se armam, liderados por Brutus, marcham sobre Roma para vingar-se de Sexto Tarquínio, que é morto pelo Exército republicano. O rei Tarquínio, o Soberbo é desterrado para o Campo de Marte com a mulher e os filhos. Lucius Junius Brutus e Lucio Tarquínio Colatino se tornam os cônsules da República romana. No entanto, a reação dos que foram deslocados do poder estava por vir.

    Os Tarquínios, narra Tito Lívio, eram a antiga nobreza, habituados a reinar, a desfrutar de privilégios, não aceitavam viver como simples cidadãos. O cônsul Tarquínio Colatino era um perigo para a liberdade recém-instituída. Brutus declara em público que não toleraria quaisquer atos de restauração da monarquia. Solicita a Lucio Tarquínio Colatino que adira à República e renuncie a seu sobrenome, como ele Brutus fizera. Todavia, a nova situação igualitária imposta pela República não agradava à antiga nobreza, acostumada a viver de privilégios. Os nobres se queixavam da liberdade do povo que os convertiam de senhores a escravos. Caso o rei atendesse aos apelos da plebe, a lei republicana era denunciada pela nobreza como inexorável e surda força, vantajosa apenas para a plebe.

    Assim, em meio à insatisfação geral da nobreza, os primeiros anos da República romana foram conturbados. Após a derrocada da família real, ocorre uma conspiração para restaurar a monarquia e o despotismo anterior, contra a liberdade e as leis republicanas recém-instauradas. Os emissários enviados da família real, que estava no exílio, ao mesmo tempo em que reclamavam os bens daquela ao Senado, conspiravam a restauração por meio de agitação política violenta, tumulto, insurreição, conjuração, rebelião, levante e distúrbio, com o apoio dos jovens nobres guerreiros.

    Os Tarquínios levam adiante seus propósitos de restauração da monarquia em Roma. Contam com o apoio dos filhos de Brutus, Tito e Tibério, os quais aderem à conspiração contra o próprio pai. Entretanto, a trama dos antigos beneficiários do poder foi descoberta por um escravo, o qual denunciou os intentos restauradores dos Tarquínios. Mais tarde, o escravo foi recompensado com a liberdade, com dinheiro do tesouro público e com a cidadania romana. Tornou-se o primeiro escravo alforriado de que se tem notícia.

    Brutus detém a conspiração de seus filhos antes que fosse desencadeada. O Senado rejeita a restituição dos bens da família real e os entrega ao povo, que saqueia as propriedades da nobreza. Os conspiradores tornaram-se inimigos da República e foram julgados. Coube a Brutus, o cônsul, presidir o julgamento de seus filhos. Em nome do princípio político republicano, Brutus ordenou o castigo de todos os envolvidos, inclusive de seus próprios filhos⁷, jovens da mais alta nobreza, que foram imolados na frente do pai. Conforme o relato de Tito Lívio⁸:

    Despem os culpados, os castigam com varas e os ferem até a morte com machadadas: durante todo esse tempo os olhos do público contemplam o semblante do pai, sua expressão, de onde despontavam os sentimentos paternais em meio à função pública de justiça⁹.

    Depois desse episódio, ocorre a terceira tragédia ligada à implantação da República romana. Segundo Tito Lívio, os Tarquínios declaram guerra contra Roma e iniciam as hostilidades. Ao lutar contra o Exército inimigo, Lucius Junius Brutus morre durante uma batalha, na qual comandava a cavalaria contra a monarquia. Naquela época, os generais agiam motivados pela honra, participavam pessoalmente na linha de frente das batalhas. Brutus morre defendendo a República.

    Séculos mais tarde, Maquiavel¹⁰, ao contrário da tradição cristã, identifica virtude nas ações de Brutus, no sentido do ideal antigo do bem-viver, qualitativamente distinto do simples fato do viver-junto – pois, a virtù está em oposição à sorte na medida em que é ação refletida com vistas a assegurar o interesse coletivo dos agentes. A trajetória de Brutus, considerado o fundador da liberdade em Roma, revela bem isso. Conforme Maquiavel, Brutus, ao se fingir de louco e ingênuo, ensina que, antes de agir, de lutar ou declarar guerra contra o inimigo, é necessário pesar bem as próprias forças políticas. Ademais, a reflexão mais profunda que Maquiavel extrai das ações políticas de Brutus em defesa da República e nos interessa, consiste na seguinte:

    Os que estudaram com cuidado a história da antiguidade estarão convencidos de uma coisa: quando há uma revolução (a transformação de uma república em tirania, ou de uma tirania em república), faz-se necessário algum exemplo que atemorize os inimigos das novas instituições. Quem se apodera da tirania e deixa Brutus vivo é logo derrubado, como também quem funda um Estado livre e não imola os filhos de Brutus¹¹.

    Por conseguinte, nos processos de grandes transformações políticas de uma sociedade, na transição de uma organização monárquica do Estado para uma organização republicana, para salvaguardar a liberdade recém-conquistada, segundo o pensador florentino, é necessária a severidade demonstrada por Brutus contra aqueles que se beneficiavam do antigo regime. Para além de juízos morais ou religiosos, esse ato faz parte da política, uma dimensão particular das relações humanas que, segundo Maquiavel¹², consiste na tomada, manutenção do poder político e conquista da glória por meio de grandes feitos em benefício do bem-viver dos agentes.

    Lastreado nessa reflexão, questiono os intérpretes do Brasil e aqueles que versaram sobre a revolução brasileira. Como se dá, no plano das ações e relações sociais, a transição da forma de organização política monárquica do Estado para a forma republicana? Ocorre de forma súbita, rápida, linear, tranquila, sem dificuldades, sem conflitos e sem resistências? O que é fundamental nessa transição? Como, no âmbito dessa problemática, as contendas e os conflitos nela inscritos estão refletidos no e são cogitados pelo pensamento político e sociológico ao lidar com a categoria revolução brasileira? Na transição da Monarquia para a República, durante os principais episódios da República, quem tem sido imolado: os filhos de Brutus, os quais representam os beneficiários da antiga ordem monárquica, ou Brutus, que simboliza as promessas republicanas não realizadas?

    Na historiografia da esquerda brasileira, muitos trabalhos foram dedicados a refletir sobre as razões da derrota política sofrida em razão do golpe empresarial-militar de 1964¹³, interpretado pelos protagonistas e pela apologética como revolução, a revolução brasileira¹⁴. Nesses livros, contextualizam-se os movimentos e partidos de esquerda com a época que dava sentido às suas ações e ideias¹⁵. Marco Aurélio Garcia faz um balanço historiográfico em torno do conceito e aponta o paradoxo de pensar a revolução em um país onde nunca houve uma revolução, onde ela é muito mais um conceito, construído de modo canhestro, do que uma experiência histórica vivida¹⁶. Pondera e conclui que a visão economicista e catastrófica da história, que deduz as possibilidades da revolução da crise geral do capitalismo, estabelece uma relação causal entre ambos que exclui a possibilidade de triunfo da contrarrevolução. Ademais, questiona a disjunção entre reforma e revolução, presente em algumas concepções da revolução brasileira no pensamento político – seriam concepções datadas. Porém, se alargarmos o conceito de esquerda, veremos que tais concepções não eram dominantes. Além disso, este livro mostra que o conceito de revolução não foi construído de forma inábil pelas esquerdas, como afirma Garcia¹⁷.

    Compartilho a seguinte afirmação:

    [...] enquanto a historiografia de esquerda não assumir a tradição trabalhista como uma vertente de esquerda, ela estará decisivamente empobrecendo a reflexão sobre a esquerda brasileira, ela estará mutilando a história da esquerda brasileira¹⁸.

    Ademais, em concordância com um conhecido prefácio de Antônio Cândido, é inegável o fato de essa literatura, neste caso, sobre a revolução brasileira ser um galho secundário ou até terciário da literatura escrita alhures no contexto das revoluções burguesas clássicas e das revoluções socialistas.

    Comparada às grandes, a nossa literatura [sobre a revolução] é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso e incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam, – dos quais se formaram os nossos¹⁹.

    As revoluções estão entre os fenômenos sociais mais extraordinários, assegura Robert Blackey²⁰. Elas interpretam, marcam o passado e criam promessas ao futuro. O sonho da revolução envolve o desejo de as pessoas poderem controlar seus próprios destinos e construírem uma vida, comunidade, Estado, nação ou República extremamente melhorada, ou desconstruída e renovada totalmente. A ideia moderna de revolução significou a possibilidade de criação de uma nova ordem e de um novo homem – o início de uma história renovada. Regularmente, revoluções tendem a envolver mais de um país e problemas internacionais. Como os golpes e rebeliões tendem a ser endêmicos, eles são geralmente previsíveis, frequentes e distintos em certa área geográfica. As revoluções, pelo contrário, são epidêmicas; sua ocorrência é pouco usual e geralmente inesperada. No Cone Sul, por exemplo, golpes e rebeliões têm sido endêmicos, enquanto revoluções genuínas seriam raras.

    A literatura sobre a revolução brasileira escrita antes do golpe empresarial-militar de 1964 pelos intelectuais brasileiros – com vistas a transformar o país – ainda fornece um conjunto de argumentos para interpelar a sociedade nacional. Contém promessas a serem recobradas. Meu objetivo, neste livro, consiste em criar um quadro geral de referência no qual possam ser situados os textos que versam sobre a categoria e a problemática da revolução brasileira, com destaque para os livros de interpretação do Brasil de Florestan Fernandes escritos antes de 1964. Elaboro um léxico sobre a categoria revolução brasileira; faço uma história dos diferentes usos e das crenças, relativas às classes dominantes, pressupostas pela categoria no pensamento político e sociológico no Brasil republicano entre 1945 e 1964. Tento destacar Florestan Fernandes no interior de uma linhagem de pensadores, mas de modo a considerar continuidades, rotinização de ideias, descontinuidades e desafetos.

    Na primeira parte são analisados e comentados os livros produzidos do pensamento político brasileiro que contém no título a categoria revolução brasileira. O levantamento dos livros ocorreu mediante pesquisa nos catálogos das bibliotecas Octávio Ianni (IFCH/Unicamp), Florestan Fernandes (FFLCH/USP) e Biblioteca Nacional. Nesta pesquisa foram identificados 20 livros²¹. Além deles, foram utilizados como fonte livros de Álvaro Vieira Pinto²², Theotonio dos Santos²³ e Bolívar Costa²⁴, autores que usaram o conceito de revolução brasileira.

    Na segunda parte são analisados livros do pensamento sociológico brasileiro²⁵ – livros e textos que discutem a questão da transformação social e da revolução, mas sem qualificá-la como brasileira, pois fazem silêncio ou rechaçam a categoria revolução brasileira. Não obstante, discutem o processo de emergência do capitalismo industrial e a ascensão da burguesia industrial e financeira – problemática que implica a reflexão sobre as classes dominantes, como ensina Ianni²⁶. Nela, tento mostrar que Florestan Fernandes, ao interpretar o Brasil nos textos escritos entre 1944 a 1965, tece uma teoria crítica da sociedade brasileira e contribui para a reflexão crítica da revolução brasileira, muito antes de publicar um de seus livros mais importantes A revolução burguesa no Brasil.

    Desse modo, orientei-me pelos seguintes problemas e questionamentos: o que esses diferentes escritores dizem sobre o conceito de revolução brasileira e acerca das classes dominantes? Quais critérios adotam para pensar o conceito? O que pretendiam dizer ao usá-lo? Quais comprometimentos esses intelectuais tinham? Quais autores a usam? Quais autores se opõem? Aqueles que usaram o conceito endereçaram suas formulações para quais grupos sociais? Em que contexto histórico? Quais processos sociais, problemas políticos e problemas sociais iluminam seus diferentes usos contextuais? O que desejavam legitimar?

    Ademais, por que um conjunto de sociólogos não usou o conceito de revolução brasileira, apesar de alguns tratarem de modo explícito essa problemática? Por que esses intelectuais negam ou manifestam oposição ou silenciam em relação a esse conceito? O que eles dizem sobre as classes dominantes? Quais eram suas crenças e teses em relação ao processo de transformação da sociedade?

    Por fim, qual é a particularidade de Florestan Fernandes em relação aos demais intelectuais? Para quem escrevia seus livros? Que tipo de comprometimento tinha? Quais eram suas crenças e teses em relação ao processo de transformação da sociedade? Qual era o diagnóstico do tempo de Florestan Fernandes antes de 1964? O que afirma sobre o conceito de revolução brasileira? Por que critica os usuários desse conceito? Por que, embora não desqualifique, Fernandes não usou o conceito de revolução brasileira, mas de revolução social e revolução burguesa? Quais critérios ele adota para pensar esses conceitos? O que pretendia dizer ao usá-los? Como Florestan Fernandes pensou a revolução burguesa antes de publicar seu livro A revolução burguesa no Brasil, escrito entre 1966 e 1974? O que afirma sobre as classes dominantes?

    Para responder a essas questões e atingir o objetivo proposto, a forma de análise da documentação se inspira na história dos conceitos convencionalista de Quentin Skinner²⁷ e no conceito de crença proposto por Mark Bevir²⁸, no âmbito da história das ideias e no procedimento de crítica imanente. Skinner²⁹ sustenta que os fatos dependem da linguagem, por isso, as ideias devem ser julgadas em relação a um conjunto de crenças e convenções e não de fatos objetivos, em relação aos contextos intelectuais e não às determinações sociais imediatas. O uso dos conceitos depende do critério de aplicação, das intenções e atos de fala presentes na enunciação, para além das variações semânticas.

    Não há uma história dos

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