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O real Itamar: Uma biografia
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E-book494 páginas6 horas

O real Itamar: Uma biografia

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Sobre este e-book

Esta obra revela detalhes da vida e da intimidade de Itamar Franco, o político mineiro que assumiu os destinos da nação e proporcionou ao país uma nova era de amadurecimento político e de estabilidade econômica a partir da criação do real. Este livro resgata em texto e imagens não só o homem, como também o político que mudou a cara do país.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de nov. de 2011
ISBN9788582352236
O real Itamar: Uma biografia

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    O real Itamar - Ivanir Yazbeck

    Para

    Georgiana e Fabiana, filhas,

    e

    Stephen e Gabriela, netas,

    de

    Itamar Franco

    Agradecimentos

    Ao jornalista Geraldo Muanis, cujo empenho nas pesquisas injetou o gás necessário para que o desenvolvimento dessa obra se acelerasse, especialmente após o desfecho não previsto.

    Registre-se o meu grato reconhecimento pelo apoio, informações e incentivo fundamentais, às seguintes pessoas:

    Alberto Pinto, Arúkia Silva, Cesar Romero Giovanini Correa, Chico Caruso , Douglas Fazolatto, Fuad Gabriel Yazbeck, Gleydes Ladeira Franco de Melo, Heliane Casarin, Ismair Zaghetto, João Carlos Amaral, João Felício Fernandes Filho, José Fonseca Filho, José Renato Pereira, Leda Nagle, Leonardo José Onório, Lilian Andrade da Costa, Lilian Schuery, Lola Yazbeck, Louise Torga, Luiz Carlos Novaes Rosa, Lutero Motta Soares, Márcio Antônio Ibrahim Deotti, Rita Luz, Roberto Dilly, Neusa de Assis Mitterhoff, Olívia de Sousa, Roberto Nogueira Ferreira, Sagrado Lamir David, Ruth Hargreaves, Tadeu Cobucci, Tereza Cristina da Costa Neves.

    Prefácio

    A coragem e a honra

    Mauro Santayana

    Poucos dias antes do terrível diagnóstico que levaria Itamar Franco à morte, publiquei, no Jornal do Brasil, uma coluna sobre algumas declarações do ex-presidente Fernando Henrique que eu considerava equivocadas e arrogantes. E ponderei que, ao escolhê-lo seu sucessor, Itamar abandonara a boa cautela mineira. No mesmo dia, estando no Congresso, em companhia do embaixador Jerônimo Moscardo, que fora seu ministro da Cultura, fomos visitá-lo em seu gabinete. Itamar recebeu-me

    com um papel na mão.

    Para você ver como sou isento, estou pedindo à Mesa a transcrição do artigo em que você me critica. Com sorriso irônico, observou: Você diz que eu não fui mineiro. E, com suave malícia, completou: Mas, mesmo assim, achei interessante. Naquele encontro, que se espichou em uma visita ao gabinete do presidente José Sarney, Itamar se queixou da gripe – e do ar condicionado das dependências do Congresso. Isso é de matar qualquer um.

    Ele estava visivelmente satisfeito com o mandato, e empenhado em exercê-lo com a força de sua poderosa experiência política e sua invejável construção humana. Foi a última vez que o vi e que nos falamos. Não o visitei no hospital, mas fiquei informado das coisas, pelos nossos amigos comuns e por Neusa Mitterhoff, que, com sua fidelidade exemplar, o acompanhou em seus últimos dias. Sou, confesso, covarde diante dos amigos com enfermidades graves. Não o visitei, como não visitei, há 26 anos, o presidente Tancredo Neves, depois de hospitalizado. Temo, e isso pode parecer paranoia, levar vírus e bactérias ao enfermo. Só rompi esse medo ao visitar José Aparecido, que conhecia – de sempre – esse meu temor e convocou minha presença.

    Minha relação com Itamar, como também minha relação com Tancredo, se iniciou ditada por razões políticas, e só mais tarde se tornou afetuosa. Raul Belém e José Aparecido sugeriram que eu o procurasse na vice-presidência. Ponderei que, se Itamar quisesse falar comigo, bastava mandar sua secretária convocar-me. José Aparecido explicou-me que isso ele não faria: Itamar é muito especial, e teme receber um não, principalmente se ele vier de alguém como você. Pedi ao Lúcio Neves, seu assessor, com quem me encontrei fortuitamente no bar do restaurante Piantella, que marcasse a audiência.

    Itamar recebeu-me com extrema cordialidade. As denúncias de corrupção do governo Collor eram já conhecidas. Eu lhe disse que se preparasse, porque ele iria, fatalmente, ocupar a presidência. O impeachment seria inevitável. Como ele não acreditasse na hipótese, disse-lhe que se tratava de uma saída necessária, e que, na defesa de sua própria sobrevivência, o Congresso tomaria essa iniciativa, mais dia, menos dia. A necessidade, lembrei-lhe, é uma legisladora implacável.

    Passamos então a nos encontrar regularmente. Foi Itamar quem primeiro me deu notícia do famoso empréstimo uruguaio, para explicar os gastos exagerados de Collor e de seu clã. Ele me disse que o embaixador Marcos Coimbra, cunhado do presidente, lhe mostrara cópias do documento. Disse-me que Collor estava fortalecido, e não haveria o impeachment. Não resisti. Perguntei-lhe, quase o provocando, se ele fizera a primeira comunhão, porque estava demonstrando comovedora inocência.

    No período que se seguiu ao licenciamento de Collor, durante o exercício interino da presidência, continuei prestando minha modesta assessoria a Itamar, de maneira informal, sobretudo na redação de seus pronunciamentos públicos e de documentos mais importantes de seu gabinete. Quando se efetivou na presidência, ele quis me localizar em sua equipe no Palácio, mas preferi ficar à distância. Não queria me envolver no dia a dia da administração nem me vincular à assessoria de imprensa, situação que nunca me atraiu. Decidimos então que eu iria para o cargo de assessor especial da presidência do Banco do Brasil, ocupada por Alcir Calliari. Era uma forma de dotar-me de estrutura de trabalho, longe do Palácio. Mas quase todos os dias ele me convocava, por intermédio de Mauro Durante, para conversar ou para almoçar com ele e o pequeno grupo que lhe era mais próximo.

    Entre os inúmeros episódios fortes de seu governo que pude testemunhar – e deles participar –, há o do déficit do Ministério da Saúde, que precisava ser coberto. O INSS não tinha como fazê-lo, porque o ministro da Previdência Antonio Britto, com razão, não aceitava prejudicar os aposentados e pensionistas. Foi então que me coube levar a Itamar a sugestão do economista Dércio Garcia Munhoz de usar os lucros excessivos do Banco Central. Ora, o Banco Central não é para dar lucros, mas se os tem, eles são do Governo Federal, da nação inteira. Mauro Durante, por ordem de Itamar, fez um aviso ministerial a Fernando Henrique, a fim de que ele, como chefe da equipe econômica, tomasse a providência. Foi assim que Jamil Haddad pôde contar com aqueles recursos emergenciais.

    Outro momento forte ocorreu quando Fernando Henrique decidiu pressionar Itamar a privatizar, em bloco, todo o sistema hidrelétrico. Itamar privatizara algumas empresas menores, entre elas uma do Espírito Santo, mas se recusava a entregar as maiores subsidiárias, espinha dorsal do sistema interligado da Eletrobrás. Houve uma reunião dos ministros envolvidos, e Fernando Henrique levou sua equipe. Itamar, pouco antes da reunião, advertiu-me de que eu deveria estar preparado para redigir uma nota da presidência aclarando que ele não privatizaria nenhuma empresa de energia antes que a nação discutisse, a fundo, o problema. Assisti à reunião, ao lado de outros assessores do presidente. Itamar começou dizendo que era avesso à privatização, e que, se ela fosse decidida, deveria ser mediante o pagamento do valor atual dos ativos, e não de valores históricos, porque a construção desse patrimônio custara o esforço, direto e indireto, de todos os trabalhadores brasileiros. Foi então que o Sr. Pérsio Arida objetou, afirmando que era preferível vender tais ativos perdendo do que continuar a custear os déficits operacionais de muitas empresas. E citou o exemplo de Buenos Aires, em que as linhas ferroviárias metropolitanas, por serem eletrificadas, pertenciam ao setor elétrico, e por cuja privatização o governo recebera valores simbólicos. Não me lembro bem das cifras, mas era alguma coisa irrisória, como cinco dólares por locomotiva, dois dólares por vagão, um dólar por quilômetro de trilhos – e assim por diante.

    Itamar ponderou que, pelo que se noticiava, os pobres já não podiam pagar as contas de energia elétrica na capital argentina, criminosamente

    majoradas pelas empresas privadas, e que voltavam a iluminar-se com gás e querosene. E que não queria que os subúrbios e favelas brasileiras voltassem a se alumiar com lamparinas ou velas, como nos seus tempos de menino. Um dos membros da equipe, provavelmente o próprio Arida, já que era ele que estava tratando do problema, contestou, dizendo que só deviam ter direito aos benefícios da civilização os que pudessem pagar por eles.

    Itamar engoliu a seco a insolência e concluiu a discussão, dizendo que permanecia em sua opinião: só privatizaria empresas de energia elétrica depois de amplo debate nacional. Ele queria que todas as correntes de pensamento participassem, em igualdade de condições, das discussões. O presidente fez-me um sinal, aproximei-me, e deu-me a instrução de redigir a nota. Em uma sala ao lado, comecei a escrever, quando Fernando Henrique e Edmar Bacha se aproximaram. Delicadamente, o ministro me pediu que suavizasse os seus termos, e, também polidamente, me recusei: ia cumprir estritamente as instruções de Itamar. Como éramos amigos havia muitos anos, o ministro da Fazenda se permitiu, com bom humor, chamar-me de dinossauro, uma expressão que vinha do governo Collor para identificar nacionalistas intransigentes.

    O outro episódio ocorreu já com a escolha de Fernando Henrique como seu sucessor. Eu compreendia as razões de Itamar, mas não as fazia minhas. Já havia meses, contestava a política econômica do governo e publicava esses meus reparos nos jornais em que escrevia: Gazeta Mercantil, Jornal da Tarde e Diário Popular, de São Paulo. Iniciada a campanha, eu me encontrava no gabinete de Itamar, em companhia de Henrique Hargreaves, Mauro Durante, Djalma Morais, Ruth Hargreaves e José de Castro Ferreira. José de Castro, entusiasmado partidário de Fernando Henrique, cobrou-me: estivera no Comitê de Campanha e não me encontrara. Mais: soubera que eu nunca estivera ali. Respondi-lhe, tranquilamente, que não ia votar em Fernando Henrique e que, muito menos, o ajudaria. José de Castro me disse, em tom de reprimenda, que eu devia apoiar o candidato oficial, uma vez que estava no governo. Eu já pressentia essa situação, e esperava a deixa. Dirigi-me a Itamar, dizendo-lhe que aquela era uma boa oportunidade para deixar o governo e não criar constrangimentos ao presidente. Mauro Durante, visivelmente preocupado, ponderou se não seria melhor que eu pensasse um pouco, já que, se deixasse o governo, teria de deixar o Banco do Brasil. Respondi: É claro que estou me afastando do governo e do banco. Disse-lhe que não havia o que pensar, porque não ia renunciar ao dever de minha consciência. Itamar então perguntou pelas minhas razões, e falei com toda a franqueza: Itamar, eles vão entregar tudo aos estrangeiros. O presidente contestou que não teriam coragem. Retruquei que estava certo da vitória de Fernando Henrique, porque Itamar o fizera candidato, mas que ele, Itamar, ia ver o que fariam do país.

    A decisão de Itamar mostrou seu espírito altamente democrático. Disse-me que me queria a seu lado, até o último momento, e que eu continuasse a escrever meus artigos conforme minha consciência.

    Talvez eu conhecesse Fernando Henrique e seu grupo de economistas melhor que o próprio Itamar. Em seu círculo restrito, Pedro Simon e eu fomos os que tentamos mostrar a ele a inconveniência da candidatura. O senador pelo Rio Grande do Sul estava certo de que o paulista trairia o presidente na primeira oportunidade. Minhas razões eram de outra natureza. Eu sabia que, mais do que trair Itamar, o governo presidido por Fernando Henrique e constituído de deslumbrados acadêmicos do eixo Rio–São Paulo ia trair os interesses permanentes do país, na aceitação dos postulados de Washington, e que a avidez de poder, herdada de Collor, ia comprometer a democracia brasileira, como acabou ocorrendo, com a emenda da reeleição. Fica o registro da dignidade e do respeito de Itamar às opiniões alheias, ao negar-me o desligamento de seu governo.

    Do resto, destaco minha participação em seus movimentos posteriores, na luta contra as privatizações, sobretudo quando reuniu, em Juiz de Fora, um grupo de patriotas para o lançamento do manifesto contra a privatização da Vale, cuja redação final me coube. Infelizmente não conseguimos impedir o ato de ofensa aos mineiros. Estive presente em sua campanha para o governo de Minas, e de minha colaboração enquanto esteve no Palácio da Liberdade e em sua disputa para o Senado só tenho a me orgulhar. Logo no início de seu governo em Minas, além de enfrentar o governo federal, enfrentou os banqueiros nacionais, e os de Wall Street, ao decretar a inevitável moratória. E salvou o Brasil, ao impedir a privatização de Furnas e a entrega, já combinada, da Cemig aos norte-americanos.

    Trabalhei com um homem honrado, que me homenageou com sua confiança e que foi, até o fim, um grande homem de Minas, um grande homem do Brasil.

    O livro de Ivanir Yazbeck é, sem dúvida, o melhor depoimento – entre outros de boa qualidade – que conheço sobre a vida de Itamar Franco.

    Ele usou o recurso dos bons historiadores, o de situar o biografado em suas circunstâncias históricas. Vale repetir, em sua inteireza, a frase de Ortega y Gasset, em seu belo e clássico Meditaciones del Quijote, quase sempre reproduzida pela metade: Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo.

    Itamar Franco foi a sua circunstância, mas soube a ela se entregar, na ação política solidária, desde muito cedo, como engenheiro sanitarista,

    prefeito, senador, presidente da República, governador de Minas. E, assim, na linguagem emblemática do filósofo espanhol, ao procurar salvar a sua circunstância, salvou-se ele, ficando na história como um homem inflexível na defesa dos trabalhadores e da soberania brasileira, e, no exercício da política e do poder, com as mãos imaculadamente limpas. E isso, que parece tão simples, tem sido raro em nossos tempos estranhos.

    Brasília, 8 de outubro de 2011

    Apresentação

    Na leitura de artigos, editoriais, colunas políticas em que o presidente da República Itamar Franco era citado na imprensa, vez ou outra me deparava com um estranho adjetivo: mercurial. Por 35 anos batalhando nas redações de Jornal do Brasil, O Globo, O Dia e Extra, jamais o vira atribuído a outro figurão político, como Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Magalhães Pinto, João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, por exemplo, num retroagir aos tempos iniciais de minha carreira profissional. Estes receberam adjetivações comuns, compreensíveis, contra ou a favor, para definir seus perfis – exceto mercurial. E, mais à frente – ultrapassemos os sombrios 20 anos em que os generais se revezaram no poder –, Tancredo Neves, José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, da mesma forma, jamais fizeram por merecer o epíteto. É como se Itamar Franco tivesse adquirido a sua exclusividade, vedado o seu emprego a qualquer outro político – do vereador ao presidente da República.

    Eis dois exemplos assinados por conceituados jornalistas, em artigos/epitáfios sobre Itamar Franco:

    "Um homem de temperamento mercurial, mas, em compensação, de conduta vertical." (Dora Kramer/O Estado de S. Paulo – 5/7/2011).

    "Várias vezes o mercurial Itamar renunciou ao cargo durante a campanha [de Fernando Collor]." (Merval Pereira/O Globo – 14/7/2011).

    De minha mãe ouvi pela primeira vez o adágio popular: para quem sabe ler um pingo é letra. É a imagem dela que me ocorre sempre que a minha retina se depara com o tal mercurial: vejo-a conferindo no termômetro, uma pequena haste de vidro tracejado, o nível do mercúrio indicando a quantas anda a febre do seu pequerrucho acamado por uma gripe qualquer. Em seguida, ela o sacode para abaixar o elemento químico, líquido, prateado, que se elevará novamente na próxima tomada da temperatura do meu corpo.

    Eis que chegamos, finalmente, ao entendimento sobre o emprego do mercurial que servirá aos jornalistas acima e outros tantos, a maioria da imprensa paulista, para classificar o temperamento do presidente Itamar Franco, que variava do afável, cordial, educado, diplomático ao contido e irritadiço, de acordo com o calor dos debates ou diante dos momentos de graves decisões.

    Mas, ora bolas, o sobe e desce do humor mercurial não ocorria ou ocorre também com todos os políticos acima citados diante da excitação natural no enfrentamento com adversários ou na leitura de editoriais jornalísticos recheados de críticas infundadas, pejorativas e mal-intencionadas? Será que Fernando Henrique Cardoso – fiquemos apenas com o exemplo de FHC, que se aliou a Itamar Franco para compor a dupla que mudou a História do Brasil para melhor – conseguia manter o seu humor, linearmente, diante de todas as crises e acusações por que seu governo passou sem alterar o nível mercurial de suas emoções?

    Assim sendo, conclui-se que todos os seres humanos, políticos ou não, são mercuriais – mas só no caso de Itamar Franco a adjetivação foi empregada, em tom pejorativo, acusatório, mas que o tempo se encarregou de revelá-la como sinônimo de ranço e preconceito.

    * * *

    No dia em que recebi a missão/desafio de Marcello Lignani Siqueira e Djalma Morais, com o aval do próprio Itamar Franco, de ser o autor de sua biografia, confesso que a encomenda fez explodir o meu ego profissional, mas relutei e fiz-lhes ver que essa era uma tarefa de grandeza acima de minhas possibilidades, modestamente.

    Estávamos em junho de 2009, e a intenção era que o livro fosse lançado ao mesmo tempo que se realizariam as convenções partidárias, em maio de 2010, quando Itamar Franco seria oficializado candidato do PPS a uma das duas cadeiras no Senado Federal por Minas Gerais. Ao deparar-me com os milhares de documentos colocados à minha disposição para começar as pesquisas, percebi estar diante de uma missão impossível – afinal, somente para realizar a pauta dos trabalhos foram mais de 30 dias. E nela não constava o capítulo que encerra este livro. Os três se renderam aos meus argumentos e liberaram-me dos compromissos com prazos rigorosos – assim como me habituara na redação dos jornais, ouvindo sempre o alerta, que deixava editores, redatores, secretários, diagramadores com os cabelos em pé a cada brado: Olha a hora!.

    O encontro foi realizado na sala do ex-presidente, em um dos ambientes dos dois andares que abrigavam o Instituto Itamar Augusto Franco (IIAF). Algumas dezenas de anos antes, eu o frequentava, um jovem engravatado entre centenas de pessoas ocupando um espaço em comemorações sob diversas motivações (bailes de formaturas, de carnaval, de debutantes, comemorações estudantis, shows de bossa-nova, etc.), nos ambientes elegantes, charmosos do tradicional Clube Juiz de Fora. A modernização dos tempos se encarregou de torná-los inadequados, economicamente inviáveis, e acabaram adquiridos por empresa privada.

    Os amplos espaços, de onde se descortinava uma agradável vista panorâmica de Juiz de Fora, abrigavam, agora, o acervo que registrava a história de Itamar Franco, desde os seus tempos colegiais até a sua gloriosa aventura como 33º presidente da República do Brasil.

    Presidente, é uma honra, mas... – dei início às minhas razões para a recusa, mas logo fui interrompido pela figura esguia, elegante, em calça jeans, camisa social-esportiva, sem nenhum excesso de gordura seja na face ou no restante do corpo. O cabelo grisalho era aquele que tanto furor causava aos que o caricaturavam ou o descreviam – uma mecha em forma de topete renitente insistindo em apontar para o alto –, o traço característico de um homem de 78 anos, que aparentava uma disposição invejável para alguém em sua idade.

    Itamar, por favor, Itamar... – corrigiu-me, impondo desde aquele momento um tratamento que muitas vezes deixava-me pouco à vontade. Mas esse era o seu estilo, não só comigo, logo percebi, mas com todos que dele se aproximavam para dois dedos de prosa ou para longas entrevistas ou tomadas de depoimentos cercadas de formalidades.

    Nos intervalos dos frequentes compromissos que o afastavam de Juiz de Fora, ocorriam as sessões de entrevistas, com durações que variavam de duas até cinco horas. Era quando, olhos nos olhos, tive o privilégio de conhecer o protagonista de um capítulo extraordinário da História do Brasil e extrair-lhe, nos momentos mais excitantes, confidências pessoais inéditas. A algumas delas se seguiram recomendações para deixá-las de lado, não as registrar nas páginas que se seguem, por receio de trazer à tona episódios que pudessem constranger personagens ou despertar ressentimentos adormecidos. Respeitei-as, por entender que as confissões lhe escapavam como se estivesse em uma sessão de análise – quem diria, logo eu, servindo de psicanalista a quem foi classificado pela revista semanal britânica The Economist (1,5 milhão de exemplares) como o maquinista que colocou o Brasil nos trilhos.

    E assim se passaram pouco mais de dois anos, quando mergulhei de corpo e alma no enredo em que se conta a vida de Itamar Franco, cujo início tem algo de épico/cinematográfico, e cujo epílogo, insisto com pesar, não constava do roteiro original. A este se seguiram depoimentos recheados de todas as adjetivações possíveis de exaltação, estampados na cobertura da imprensa sobre o acontecimento, que reduzem o tal mercurial à sua dimensão e função exata, que é a de medir a temperatura ambiente ou febril de um corpo – e jamais a de dimensionar o caráter do homem da grandeza ética e moral, perspicácia política e competência administrativa, movida sobretudo pela preocupação social, chamado Itamar Augusto Cautiero Franco.

    Ivanir Yazbeck

    Sob os céus do litoral da Bahia

    Era uma temeridade aquela mulher de porte altivo e elegante, trajando preto de um luto recente, no início do nono mês de gravidez, embarcar num Ita da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, que ligava o Brasil de norte a sul, servindo como navio de transporte de carga e de passageiros. Aportado em Salvador, a partida seria ao alvorecer do dia seguinte, 26 de junho de 1930, com destino ao Rio de Janeiro. A viagem estava prevista para durar uma semana, se o tempo ajudasse, com escala de 48 horas em Vitória-ES. Caso o mar se tornasse revolto por causa de mau tempo, a chegada poderia ser retardada em mais um ou dois dias.

    Apesar das recomendações contrárias, Itália América Liria Cautiero Franco, 31 anos, estava decidida a correr o risco. Ela queria que o quarto filho viesse a nascer na sua residência, em Juiz de Fora-MG, distante 220 quilômetros do Rio, por via férrea, o que significava mais um dia de viagem cansativa, entre o desembarque no cais do porto, na Praça Mauá, o deslocamento até a gare da Central do Brasil, no Centro, e cerca de dez horas num sacolejante vagão, até a Praça da Estação, e mais uns 15 minutos em carro de praça, até finalmente chegar em casa, na Rua Sampaio, 398, onde poderia aguardar o parto, cercada de conforto e segurança.

    Pelos seus cálculos, o parto ocorreria somente de 20 a 25 dias após a partida do Ita. Com a experiência adquirida no nascimento dos três filhos anteriores, ela acreditava que haveria tempo suficiente, embora apertado, para que o seu desejo se realizasse. E, para reforçar o otimismo e a segurança à sua determinação e expectativa, coincidência ou não (segundo o cronista Nelson Rodrigues, qualquer coincidência tem o dedo de Deus), o médico de bordo, membro da tripulação, era Ernesto Pedreira de Castro, primo de Dona Itália por afinidade.

    Viúva há pouco mais de dois meses, vira seu marido, Augusto Cesar Stiebler Franco, ser contagiado por malária e sucumbir à doença em pouco tempo, deixando-a atônita diante da rapidez com que a tragédia se desenrolou e se abateu sobre ela e os filhos, Mathilde, cinco anos, Maria de Lourdes, três, e Augusto, dois. O quarto estava a caminho, grávida de oito para nove meses.

    A convite do governo baiano, e incentivado por um primo, Arthur Pedreira Franco, engenheiro, servidor público, o Dr. Augusto, engenheiro civil e eletrotécnico, aceitara o desafio de recomeçar a vida naquela terra distante e desconhecida. As condições salariais eram excelentes, e o contrato previa que estaria sob a sua responsabilidade a reforma do sistema elétrico do palácio do governo em Salvador e a execução de projetos de estradas e construção de pontes no Recôncavo Baiano. Um longo e promissor futuro o aguardava. Rapidamente sua fama de profissional competente logo se espalhara e chegara aos ouvidos dos empresários Walfrides Ferreira e Altamirando Requião, que o contrataram para cuidar das instalações dos novos transmissores da Rádio Sociedade da Bahia, fundada em 1924, adquirida por eles, cinco anos depois. Mas a vida do Dr. Augusto se encerraria, abruptamente, no dia 24 de abril de 1930 – três dias após ter completado 32 anos de idade –, vítima de uma doença endêmica, relacionada com águas não tratadas e más condições de higiene.

    Formado em 1918, na turma dos seis primeiros diplomados pela Escola de Engenharia de Juiz de Fora, criada em 1914, em pouco tempo os novos engenheiros – reconhecidos também, nos registros históricos, como fundadores da Escola – se impunham em sua cidade natal, que crescia graças à instalação de modernas e grandes fábricas, especialmente na área têxtil, que lhe valeria o epíteto Manchester Mineira, comparando-a

    à metrópole inglesa famosa pelo aglomerado industrial diverso mais desenvolvido da Grã-Bretanha.

    No início dos anos 1920, Juiz de Fora vivia um desenvolvimento urbano e econômico acima de outras cidades brasileiras de porte médio. Ostentava orgulhosamente o privilégio de ter sido a primeira cidade da América do Sul a dispor de luz elétrica, desde 8 de setembro de 1889 – 67 dias antes da Proclamação da República –, com a inauguração da Usina dos Marmelos, pela Companhia Mineira de Eletricidade, dirigida pelo industrial Bernardo Mascarenhas. Produzia energia suficiente para abastecer pouco mais de mil residências.

    Desde 1906, a cidade adquirira o charme e a agilidade dos bondes elétricos, que circulavam pela extensa Avenida Barão do Rio Branco que a cortava de norte a sul. Na descrição do historiador Wilson de Lima Bastos, é possível se vislumbrar a Juiz de Fora dos tempos em que os jovens Augusto Franco e Itália Cautiero se conheceram e iniciaram namoro:

    Aos domingos, o movimento era maior e, então, às tardes havia um verdadeiro corso de norte a sul da avenida. Os velhos e majestosos casarões com pessoas às janelas, os canteiros floridos, bondes subindo e descendo e os carros conversíveis de diversos tipos e cores no constante vaivém. Era a distração da alta burguesia, que passava as horas de lazer desfrutando das delícias de umas voltas contemplando as lindas vivendas que davam a Juiz de Fora a marca de seu brilhante passado de fidalguia.

    Terá sido, possivelmente, num desses passeios de bonde que Augusto e Itália cruzaram os primeiros olhares e deram início às apresentações: ela era natural de Tarú-Assú (céu grande, no idioma dos purus e coroados, tribos indígenas que habitavam a Zona da Mata mineira), distrito de São João Nepomuceno. Seus pais, Raphaela Di Lucca e Paschoal Cautiero, aqui aportaram vindos do Reino da Itália, com a primogênita Luccia, ainda bebê. O país de origem permanecerá para sempre em suas memórias e devoção, a partir do nome da segunda filha, nascida em 15 de setembro de 1898, registrada no Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Notas de Tarú-Assú (posteriormente Taruaçu), como América Liria Cautiero, e na certidão de batismo como Itália Liria Cautiero. Diante das hesitações entre os dois registros, optou-se pela junção dos dois primeiros nomes, Itália América, surgindo assim a dupla homenagem à pátria dos pais e ao novo continente que os acolheu. Ao longo dos tempos, entretanto, será Itália o nome que prevalecerá isoladamente. No ano seguinte, em 2 de outubro, nascia a terceira filha do casal, Liria Letivia Ida Cautiero. Tarú-Assú possuía, então, cerca de 5,5 mil habitantes – projeção baseada no censo realizado em 1915, que indicava 6 mil moradores. Seus casarios e sobrados em estilo colonial eram muito semelhantes aos de Ouro Preto. E a casa de Paschoal Cautiero era grande o suficiente para abrigar a família, mais as empregadas domésticas, e ainda, nos fundos do terreno, uma fábrica de selas e artigos de couros em geral, de consertos de calçados, das botas rústicas aos femininos mais sofisticados, com uma dezena de operários. Um incêndio provocado por uma lamparina noturna reduziu a fábrica a cinzas e apressou o sonho de Raphaela de se mudar para Juiz de Fora, onde as filhas teriam à disposição colégios de mais gabarito para aprimorar os estudos. Itália e Liria tinham, então, dez e nove anos, respectivamente, quando foram matriculadas no austero Colégio Santa Catarina, dirigido por freiras católicas.

    A história de Augusto, por sua vez, se assemelhava à de Itália na origem estrangeira dos ascendentes – a diferença é que o sangue que carregava nas veias viera dos alemães Stiebler, por parte da mãe. Mas não havia entre os Stiebler nenhum vínculo com a leva de imigrantes germânicos que começaram a chegar antes e depois de a Villa de Santo Antônio do Parahybuna, até então pertencente ao município de Barbacena, ser elevada à categoria de cidade, em 31 de maio de 1850. Atraíra-os o fato de à frente das perspectivas de nova e promissora vida em um novo mundo estar o engenheiro alemão Heinrich Willelm Ferdinand Halfeld, (traduzido nos anais históricos para Henrique Guilherme Fernando Halfeld), nascido em Klausthal Zellerfeld, Reino de Hanover, em 1797.

    Aos 28 anos, Halfeld mudara-se para o Brasil, contratado como engenheiro-chefe pela província de Minas Gerais para remodelar o Caminho Novo entre Ouro Preto e o Rio de Janeiro. Ao estudar as terras por onde as carruagens e tropas se deslocavam, entre vales e montanhas, muitas montanhas, encantou-se com a região, e nela se instalou, casou-se três vezes, teve 16 filhos, e da sua prancheta nasceu a primeira cidade planejada no Império do Brasil, que adquiriu o nome de Juiz de Fora. O estranho nome era uma referência à fazenda onde se hospedava o magistrado nomeado pela Corte para atuar em localidades onde não houvesse juiz de Direito.

    Entre outras epopeias vividas por Halfeld em terras brasileiras, inclui-se a de ter sido o primeiro a mapear o Rio São Francisco, da nascente, em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, na direção dos estados Bahia, Pernambuco, Sergipe até desaguar no Atlântico, em território de Alagoas, ao longo de 2.830 quilômetros. Nada demais, hoje em dia, se todo o tracejado do mapa não fosse feito a lápis, e em embarcações a remo ou sobre lombo de animais, margeando o curso d’água.

    (Os Halfeld cresceram e se multiplicaram. No dia 27 de fevereiro de 1997, numa festa, em Juiz de Fora, para saudar o bicentenário de Henrique Halfeld, se reuniram 32 personalidades de destaque em suas especialidades profissionais, e mais uma centena de descendentes e agregados. O reconhecimento do município ao seu fundador está perpetuado nas placas que identificam dois cartões-postais da cidade: a Rua Halfeld e o Parque Halfeld.)

    Para tornar realidade o sonho do magnata empresário Mariano Procópio Ferreira Lage de encurtar a viagem até a capital Rio de Janeiro, foi Halfeld quem planejou a Estrada União e Indústria, entre Juiz de Fora e Petrópolis, cuja administração estava a cargo da Companhia União e Indústria, dirigida por outro alemão, H. F. Eschel. Mariano Procópio era um homem rico, dinâmico e polido. Visitava frequentemente a Corte, para adular D. Pedro II. Graças a essa intimidade, conseguiu a autorização para a construção da União e Indústria, assim como o direito de explorá-la por 50 anos. A estrada seria toda macadamizada, um sistema de pavimentação por meio de brita e saibro, desenvolvido pelo escocês John Loudon MacAdam – comum na Europa, mas inédito no Brasil. As obras começaram em 1853 e foram concluídas em 1861. A mão de obra provinha dos escravos locais; e da Prússia, Áustria e Tirol vieram 1.193 trabalhadores germânicos, profissionais especializados – fundidores, ferreiros, ferradores, carpinteiros e marceneiros, seleiros, pintores, oleiros. Por dois mil réis por dia – um belo salário à época – lhes era também permitido trazer esposas e filhos, um incentivo a mais à aventura e uma grande contribuição ao crescimento demográfico do novo município e arredores.

    Entre eles, entretanto, não se incluíam os muitos Stiebler, que vieram por conta própria, atraídos pelas possibilidades de negócios diversos numa terra nova, de clima temperado, distante dos rigores dos terríveis e sombrios invernos europeus. Um exemplo desse arrojo, reflexo da herança cultural e conhecimentos industriais adquiridos nas regiões da Bavária alemã, foram as cervejarias Stiebler, instalada em São João Nepomuceno, e a Weiss, em Juiz de Fora, que não só faziam as delícias dos consumidores das duas cidades como eram encomenda obrigatória aos visitantes das duas cidades.

    Augusto nascera em Juiz de Fora, em 21 de abril de 1898, o que o tornava apenas cinco meses mais velho do que Itália. Seus pais eram o professor Archimedes Pedreira Franco, que lecionava na Escola Normal de Juiz de Fora, mantida pelo município, e Mathilde Stiebler Franco. Um tio-avô, Augusto Cesar Pedreira Franco, fora juiz de Direito, presidente da Corte de Apelação do Estado de Minas Gerais; o bisavô, Atabalipa Franco, médico, que se encontra enterrado em Ouro Preto, frequentava a Corte de D. Pedro II, nos saraus exclusivos aos súditos mais íntimos do imperador. Outro tio de seu pai, Joaquim Pedreira Franco, engenheiro, mudou-se cedo para Londres, onde morou até o fim da vida. Dessa forma, na apresentação, a linhagem dos Pedreira Franco soava aos ouvidos de Itália com nobre sonoridade.

    Desde o primário, Augusto estudara na Academia de Comércio, referência de estabelecimento educacional em todo o Brasil, a partir da sua fundação, em 1894, pelo empresário Francisco Baptista de Oliveira, inspirado nos moldes da Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris com o

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