A mão invisível por trás do extremismo: por que o liberalismo econômico é, na prática, um instrumento de dominação, o que isso tem a ver com a ascensão do bolsonarismo, e seus impactos do ponto de vista da Economia Política Internacional
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Sobre este e-book
Além disso, propõe uma correlação entre a constante pressão liberalizante exercida pelos países centrais – em particular os Estados Unidos da América – sobre as nações periféricas e a Operação Lava Jato, que contribuiu para a queda do governo de Dilma Rousseff, abrindo caminho para a volta do neoliberalismo com Michel Temer e a chegada de Jair Messias Bolsonaro ao poder.
Por fim, descrevem-se os efeitos nocivos da aliança fascista-liberal sobre o país do ponto de vista da Economia Política Internacional (EPI).
Independentemente do resultado das eleições presidenciais de 2022 no Brasil, a pressão por abertura de mercados, privatizações, arrocho fiscal e reformas de cunho neoliberal continuará, ao mesmo tempo em que o bolsonarismo e o espectro fascista seguirão assombrando o país.
Combinando fundamentos teóricos, jornalismo e opinião, a obra procura levar ao grande público, para além do intramuros universitário, noções da EPI e da geopolítica que são essenciais para compreender nossas condições no sistema internacional, as mazelas que nos afligem e o que vem acontecendo na política e economia brasileiras.
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A mão invisível por trás do extremismo - João Montenegro
1. QUADRO TEÓRICO
1.1 LIBERAL-COSMOPOLITISMO VS. REALISMO INTERNACIONAL
A ideia de que vivemos em uma realidade onde é possível chegar a uma situação de igualdade de coragem e força
, como propôs Adam Smith no clássico A Riqueza das nações, de 1776, é, no mínimo, reconfortante. Afinal, dada essa premissa, todos – seja no plano individual ou das Relações Internacionais – contam com as mesmas condições de garantir sua sobrevivência e evoluir, desde que se esforcem e cumpram as regras do jogo social, econômico e geopolítico.
Mas essa lógica meritocrática tem suas limitações. Na prática, ocorre que as relações humanas e, consequentemente, as econômicas são atravessadas pelo poder e por componentes de ordem subjetiva e cultural, inexistindo, portanto, o pretenso ambiente regido pura e simplesmente pela livre concorrência (entre seres autocentrados e guiados pela razão) e demais leis do mercado em que se apoia o projeto smithiano. Desse modo, o discurso da meritocracia, embora válido até certo ponto, também vela injustiças e reforça o status quo.
A perspectiva analítica deste livro se enquadra no campo da Economia Política Internacional (EPI), que estuda as interações entre a política e a economia no âmbito das relações internacionais. Parte-se, aqui, do princípio de que política e economia são forças que não funcionam de forma independente e que os Estados e os mercados interagem para influenciar a distribuição de poder e riqueza nas relações internacionais, conforme explica Robert Gilpin (2002).
O mundo real (...) é um universo de lealdades excessivas, muitas vezes contrastantes e de fronteiras políticas em que a divisão do trabalho e a divisão dos seus frutos são determinados tanto pelo seu poder e sua sorte como pelas leis do mercado. (...) Todos os estados pretendem que seus ganhos sejam desproporcionalmente maiores do que a vantagem que o comércio lhes traz. Todos querem influenciar o processo decisório das regras do sistema monetário internacional (Gilpin, 2002, p. 40-42)
Ao ler a obra de Adam Smith, é importante contextualizá-la: o economista britânico, por brilhante que fosse, defendia os interesses de seu país, industrialmente mais avançado que seus pares e então dono da maior frota naval de guerra – esta, por sinal, constituída sobretudo graças ao Ato de Navegação, uma medida protecionista estabelecida durante o governo de Oliver Cromwell, em 1651. Assim, no século 19, os ingleses detinham óbvias vantagens comparativas em relação a seus concorrentes, de forma que lhes era interessante que outros países abrissem seus portos⁴.
A ameaça inglesa
foi percebida por Alexander Hamilton (1755-1804), um dos founding fathers dos EUA. Para reduzir a dependência da nação que ainda se formava em relação aos britânicos, Hamilton criou um programa de governo voltado à proteção da indústria americana nascente via tarifas alfandegárias e subsídios estatais, bem como à promoção de investimentos públicos em infraestrutura, educação, ciência e tecnologia.
Mas o mundo dá voltas
. Ao término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e já na condição de potência hegemônica ante uma Europa destruída, os EUA começaram a costurar uma nova ordem internacional, apoiada em instituições multilaterais como a ONU e o FMI e em um novo padrão monetário baseado na paridade entre o ouro e o dólar norte-americano. Essa ordem se assentaria em uma visão essencialmente cosmopolita: mediante uma relação de confiança e cooperação amparada por regimes supranacionais e sob a supervisão de um "hegemon benevolente"⁵, os interesses dos Estados Nacionais tendem a convergir a objetivos comuns, deixando de se limitar ao plano individual e reduzindo, assim, a propensão à guerra.
Tal perspectiva fora, décadas antes, defendida por Woodrow Wilson – presidente dos EUA entre 1913 e 1921 – como espécie de paradigma de pacificação ao final da Primeira Guerra Mundial. O dirigente repudiava o modelo europeu do equilíbrio de poder
, cujo objetivo era evitar que qualquer Estado adquirisse força desproporcional em relação aos demais, colocando o sistema em risco, tendo em vista que cada nação tende a perseguir objetivos egoístas, ou seja, uma visão realista das relações internacionais. Para ele, o caminho para a paz era a democracia e a institucionalização do conceito de segurança coletiva.
A ideia de ordem mundial de Wilson derivava da crença dos americanos na natureza essencialmente pacífica do homem e na harmonia subjacente do mundo. Assim, nações democráticas eram, por definição, pacíficas; pessoas com autodeterminação não teriam mais razões para ir à guerra ou oprimir umas às outras. Uma vez que todos os povos do mundo houvessem provado o gosto das bênçãos da paz e democracia, certamente levantar-se-iam como um só povo para defender seus ganhos (...) A diplomacia europeia não era predicada por uma natureza pacífica dos Estados, mas por sua propensão à guerra, o que precisava ser desencorajado ou balanceado. Alianças eram formadas na busca de objetivos específicos e definíveis, não em função da defesa de uma paz abstrata (Kissinger, 1994, p. 221-222, tradução nossa)
Embora não tenha vingado
, a Liga das Nações serviu como embrião para a ordem liberal internacional fundada pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial, quando os norte-americanos assumem o lugar de potência hegemônica, ante uma Europa destruída pelo conflito. É nesse momento que são criados regimes e instituições supranacionais, como o sistema de Bretton Woods, que estabeleceu a paridade entre o ouro e o dólar americano, a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, entre outros.
O pensamento wilsoniano/ liberal-cosmopolita atua como colchão teórico para legitimar a nova ordem, que tem como seu grande trunfo a democracia, único sistema que seria verdadeiramente capaz de expressar a vontade da maioria. Pois, mesmo aqueles que inicialmente não se sintam contemplados, tendem a vê-la como expressão de uma vontade própria, coletiva, abrindo caminho para o efetivo estabelecimento de uma harmonia de interesses.
Baseada na razão, a vontade da maioria sempre visará à paz, uma vez que a guerra interrompe fluxos comerciais, prejudicando os países. Como consequência, o liberalismo levaria inevitavelmente à paz universal, com o apoio de instituições capazes de administrar as relações interestatais e países cooperando entre si. Trata-se, em última análise, de uma adaptação da política à norma ética, conforme propôs Woodrow Wilson. No fim, somente aos ditadores e irracionais interessará a guerra, segundo a visão liberal-cosmopolita.
Autores como Robert Keohane e Joseph Nye (1984) sustentam que, ainda que não estejam livres de interesses políticos – aspecto este que será explorado pela crítica realista –, os regimes e instituições internacionais deixarão, com o tempo, de ser influenciados pelas relações de poder, na medida em que ganham autonomia e contribuem para que os interesses gerais se sobreponham a objetivos particulares, em uma situação de cooperação internacional.
Para Barry Buzan (1991), o arrefecimento da disputa pela hegemonia leva à pacificação mundial, reforçada pela formação de uma comunidade de segurança e pela solidificação de uma relação de dependência mútua entre os Estados Nacionais nos campos da economia e da segurança⁶. E, com menos rivalidades entre as superpotências, tende a diminuir a projeção de conflitos para a periferia, viabilizando-se ganhos de autonomia para potências regionais.
Buzan combina, desse modo, a visão realista – conforme será visto logo adiante –, em termos de segurança, com a ideologia liberal (cosmopolitismo, cooperação internacional, diálogo para construção de regras e instituições internacionais), formatando a ideia de uma sociedade internacional, com regras comuns em um mundo onde o capitalismo triunfou. Não obstante, ele deixa claro que há uma hierarquia vigente, com os países do Norte (centro) assumindo a responsabilidade pela segurança internacional – o que inclui, por exemplo, a gestão de recursos naturais no Sul (periferia).
Com o argumento de que os países centrais devem ter políticas voltadas à periferia – tratando, portanto, a questão ambiental como um tema de impacto global –, Buzan abre caminho para uma agenda de segurança liberal e construtivista, com foco na segurança global e individual (seguridade humana).
Por outro lado, autores realistas como Edward Carr (2001), Robert Gilpin (2001) e Susan Strange (1987) apresentam uma visão crítica ao postulado liberal-cosmopolita, enxergando nele um cobertor
a velar jogos de poder. Para eles, as instituições e regimes internacionais criados pelo hegemon e outros Estados centrais podem ser explorados para perpetuar relações assimétricas de poder e legitimar a dominação das nações mais fortes, combinando visões e interesses dominantes e poder militar. Grupos dominantes usariam, portanto, a ideia de democracia e livre comércio a fim de exercer e fazer valer seu poder e não lutar militarmente por isso. Assim, a criação de instituições supranacionais esconderia interesses brutos baseados em ideias utópicas – caras à opinião pública, como a busca pela paz – para manter sua posição privilegiada de poder e riqueza.
Não obstante, boa parte dos realistas parece consentir que a atuação de uma potência hegemônica é necessária para a estabilidade global, convergindo – ainda que em diferentes medidas – para a Teoria da Estabilidade Hegemônica (TEH), idealizada por Charles Kindleberger e defendida por Robert Gilpin, Stephen Krasner e Robert Keohane , segundo a qual uma economia liberal mundial necessita de um estabilizador e um só país estabilizador
(apud FIORI, 2004, p. 11)⁷.
A TEH pressupõe a necessidade de ao menos um líder no cenário internacional (o hegemon) para viabilizar a colaboração entre os países. Nesse sentido, uma potência hegemônica benevolente cumpriria o papel de fazer valer regimes e instituições internacionais na busca pela paz e riqueza globais. Com a confiança e cooperação, os interesses dos Estados convergirão a objetivos comuns, deixando de se limitar ao plano individual e adquirindo caráter cosmopolita.
Se é para limitar as discordâncias e evitar conflitos severos, as políticas dos governos devem ser ajustadas umas às outras. Ou seja, é preciso cooperar. Uma forma de alcançar tal política de mútuo ajuste é por meio das atividades de uma potência hegemônica, seja via medidas ad hoc ou pelo estabelecimento e manutenção de regimes internacionais que servem a seus próprios interesses ao mesmo tempo em que conseguem ser suficientemente compatíveis com os interesses dos demais para serem amplamente aceitáveis. (KEOHANE. 1984:243, tradução nossa).
Contudo, a TEH tem pontos fracos e não se provou correta na prática, como se verá na próxima sessão.
1.2 A TEORIA DO PODER GLOBAL
Assinado em 1648 – ao final da Guerra dos 30 Anos, na Europa –, o Tratado de Westfália marcou a inauguração do sistema internacional moderno: um conjunto de Estados Nacionais com poderes limitados uns pelos outros para que nenhum pudesse dominar os demais. Assim, no encerramento do conflito, consolidaram-se conceitos como os de soberania estatal e não-intervenção.
Mas a Paz de Westfália – como também ficou conhecido o acordo assinado na região da atual Alemanha –, não evitou que novas guerras ocorressem na Europa e em outras partes do mundo. Afinal, como arbitrar um conflito em que todos se consideram inocentes?
O teólogo e jurista holandês Hugo Grotius (1583-1645) previu que o novo sistema de poder europeu, que ainda se desenhava à época, não eliminaria tal dilema diante de múltiplas inocências
de Estados soberanos com interesses opostos (FIORI, 2018, p. 82). Seu contemporâneo inglês, Thomas Hobbes (1588-1679), notou que, no novo sistema, os Estados seriam eternos rivais preparando-se para a guerra.
Trata-se, com efeito, de um dilema do qual é difícil escapar, já que sempre caberá a alguém dar a palavra final sobre determinado assunto. Além do mais, é preciso considerar que, mesmo em um mundo pretensamente democrático, as relações (assimétricas) de poder moldam o que é certo ou errado. O igualitarismo não é produzido pela ausência de hierarquias, como normalmente se supõe. O igualitarismo envolve um tipo muito especial de hierarquia, baseado em sentimentos anti-hierárquicos
⁸.
Mais de um século antes de Westfália, Nicolau Maquiavel (1469-1527) já problematizava a questão: Não se elimina a guerra, nem se escapa dela, se adia para a vantagem de outros
, uma vez que a guerra é justa para aqueles aos quais é necessária, e as armas são santas quando nelas unicamente reside a esperança
⁹.
Figuras consagradas como Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) e Friedrich Hegel (1770-1831) viam a guerra como expressão de racionalidade e momento de reconhecimento da verdadeira virtude, na medida em que se coloca a vida em risco em nome de um ideal.
A visão dos filósofos grego e alemão lhes rendeu acusações por supostamente defenderem a guerra em detrimento da diplomacia. Aristóteles, porém, afirma que a finalidade da guerra é a paz, pois somente aí pode ocorrer o bem humano, por meio da atividade teórica e política. Já Hegel acreditava que a guerra é a forma, em última instância, de resolver disputas, dado que cada Estado possui elementos da verdade humana, mas adota uma visão tendenciosa quando acredita deter toda a verdade¹⁰.
São visões que destoam da perspectiva liberal, segundo a qual a obtenção da paz passa pelo livre comércio e o estabelecimento de uma moral internacional, os quais dirigiriam o mundo a um estado de harmonia de interesses. Isso apesar de um dos expoentes do liberalismo, o britânico John Stuart Mill (1806-1873), ter pregado que a ordem liberal deveria ser fiscalizada pelos europeus e que o imperialismo provocaria um efeito civilizador nas regiões subdesenvolvidas, elevando sua moral e harmonizando o mundo. Ou seja, o árbitro do jogo seria, no