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A Sobrevivência das imagens
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E-book283 páginas3 horas

A Sobrevivência das imagens

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Sobre este e-book

As políticas de sobrevivência da imagem no cinema/audiovisual são o tema deste livro. Resultado de debates ocorridos durante o XVII Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), a obra reúne reflexões sobre a constituição e a preservação de acervos públicos e privados; a reutilização de imagens de arquivo – especialmente a forma ensaio –, o que permite que elas sejam ressignificadas; e a importância política que as imagens que sobrevivem trazem para o mundo contemporâneo.
Ressalta-se, assim, o modo particular como a imagem sobrevive em suas variadas formas e nos diversos cruzamentos de passado e presente, além do que nela resiste: povos, sujeitos, testemunhos da história, gestos e ruínas. A busca é pelo delicado equilíbrio: nem pedir demais da imagem ("diga-nos toda a verdade"), nem dela pedir de menos, relegando-a a simples simulacro. Ou, dito de outra forma, a imagem como o que sobrevive ao escuro profundo e ao luminoso espetáculo estultificante. - Papirus Editora
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de fev. de 2018
ISBN9788544902806
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    A Sobrevivência das imagens - Alessandra Soares Brandão

    Books.

    1POTÊNCIAS PLEBEIAS: IMAGENS DA ARTE E NOVAS FIGURAS DO TRABALHO E DO TRABALHADOR

    [3]

    Ana Amado

    Quando todo o restante caía aos pedaços, como diz a expressão, então podia ser normal ver os operários como uma tribo de seres excêntricos preocupados em cumprir seu horário, calibrar os tornos e consubstanciar-se com matérias-primas e prazos de produção. Délia pensava que nessa rotina, agora extravagante, estava a origem desesperada da confusão atual.

    Sergio Chejfec (2000)

    O foco é o trabalho, não cabe dúvida! A qual das modalidades de trabalho caberá assumir o protagonismo na década seguinte? Será preciso ver. Isso não é decidido por um texto; é a luta das pessoas que o decide.

    Álvaro García Linera[4]

    O interrogante de García Linera, atual vice-presidente da Bolívia, sobre as modalidades que o trabalho poderia assumir em um futuro próximo estende ao plano do real uma questão que ocupa de maneira simbólica o centro da novela de Sergio Chejfec sobre a crise de fim de século, na qual os operários apenas sobrevivem como uma tribo de seres excêntricos. A combinação entre um enunciado e outro, o da gestão política e o de uma ficção literária, resulta oportuna aqui para enfatizar o fato de que, nas últimas duas décadas, a figura do trabalhador – especialmente, a dos trabalhadores manuais que compõem as massas, para os quais o capitalismo neoliberal não garante o emprego – se tornou singularmente visível no panorama global, coincidentemente com o exílio forçoso de sua fonte laboral. Distintas linguagens artísticas imaginaram formas muito diversas, sempre sugestivas, de resistência crítica para sublinhar esse paradoxo gerado pelas receitas da globalização. Como um modo de indagar essa cena sombria e feroz que os governos neoliberais cimentaram no final do século XX, vou me deter em alguns exemplos que me parecem significativos para alinhavar algumas reflexões sobre as distintas formas inventadas e reinventadas pelas artes visuais para figurar a precariedade da situação do trabalho e dos trabalhadores na atualidade. Finalmente abordarei a obra do fotógrafo argentino Dani Yaco e a do documentarista alemão Michael Glawogger, que partilham a condição de formular uma demanda por justiça desde a estética,[5] com um recurso em comum ao documentarismo testemunhal – em sua vertente mimética e lírica – e ao realismo como procedimento. Esses elementos permitem abordar tanto os traços formais que sustentam tais experiências de uma arte comprometida como alguns correlatos conceituais que procuram questionar o destino desse ator central da modernidade, com argumentos formulados seja desde a ética, desde os parâmetros da biopolítica e desde os discursos sobre a emancipação social.

    As designações proliferam nessa questão. Ausência de trabalho, inoperabilidade (désœuvrement em francês, inoperosità em italiano) são termos-chave com os quais o jargão da finitude se refere a esse potencial não fazer que hoje se aplica a qualquer suspensão do obrar, de atuar. Porém, como assinala Bruno Bosteels (2015, s.r.), por trás de toda essa conversa é impossível deixar de escutar a estridência dessas vozes que anunciam uma dispensa filosófica do trabalho e do trabalhador como um referente-chave por dois séculos de política revolucionária.

    As dispensas concretas de suas fontes de trabalho de norte a sul da Argentina na última década do século passado deixaram na intempérie dezenas de milhares de pessoas que por anos utilizaram seus corpos como aríetes de obstrução do espaço público para denunciar a precariedade à qual biopolíticas excludentes as haviam condenado e dar visibilidade a ela. Mas a precariedade não deixa de ser uma categoria complicada dentro das novas gramáticas da emergência (Foster 2011, p. 93). Com ela, tende-se a adjetivar o proletário, ou o ex-proletário, contudo, ao mesmo tempo, indica-se o que se pode perder nessa mudança discursiva do proletariado ao precariado (ibid., p. 94).

    O tema não é novo em sua relação com a arte. Em meados do século passado inspirou um belo texto, centrado menos nas palavras do que no tipo de figura social que o cinema contribuiu para recriar. Em suas Mitologias, Barthes dedicou um de seus perfis a marcar a diferença entre pobres e proletários por meio do personagem de Charlie Chaplin. Carlitos sempre viu o proletário sob os traços do pobre diz, e considera que daí surge a força humana de suas representações, mas também sua ambiguidade política (Barthes 1980, p. 41). Definido principalmente pela força imediata de suas necessidades – um homem que sempre tem fome, como o personagem patético do extra de A ricota, de Pasolini[6] –, Carlitos parece a Barthes um proletário torpe: Ainda exterior à revolução porque isolado, ignorante, desamparado e, por isso mesmo, com uma enorme força representativa. Nesse sentido, Chaplin seria brechtiano, mostrando aos trabalhadores antes da revolução e tão expostos, que o público pode ver sua cegueira, ou seja, ao mesmo tempo, pode ver o cego e seu espetáculo. E termina com uma crítica tendenciosa às obras políticas povoadas de operários com maior consciência porque, como se sabe, a consciência, a boa consciência ligada ao ativismo comprometido, costuma apelar a um realismo sem fissuras. Um realismo no qual os operários falam da causa e do partido, e, por isso mesmo, dão conta de uma realidade política necessária, mas sem força estética (ibid., p. 42). Nessa última observação, Barthes abrevia os termos da tensão que sustentava a estética brechtiana entre vanguarda e realismo ao mesmo tempo que ressalta as alternativas que marcavam essa relação entre arte e política em meados dos anos 1950. Foram as coordenadas dessa relação que alimentaram a forte politização da intelectualidade – a argentina e além dela – das décadas de 1960 e 1970, quando as relações entre arte e sociedade, entre estética e política, entre cultura e revolução emolduravam o signo da revolução.

    Da fábrica ao museu

    As imagens do trabalho e/ou dos trabalhadores em sua aliança com a arte definiram momentos cruciais das vanguardas estéticas, configurando um problema que é, ao mesmo tempo, histórico, ético, e decisivamente político. Seu percurso abarca modelos narrativos – a vanguarda soviética inspirada na arte proletária fornece exemplos inquestionáveis –, modelos que, por sua vez, dependem de configurações espaciais, ao passo que os problemas envolvem lugares específicos de produção, de posições e, portanto, de hierarquias, de transmissões e de intercâmbios. As representações fundacionais da modernidade no século XIX e ainda no século XX condensaram seu valor em um espaço com duas variantes: a do interior da fábrica e outros espaços laborais – sejam produtivos ou de tipo extrativo, lugares onde o trabalho condensa seu sentido como um determinado modo de fazer –, e o da porta do lugar do trabalho como selo ou distintivo público de uma única possessão que confere identidade: o trabalho. Harun Farocki mostrou num vídeo e numa instalação que aqueles que cruzam as portas de uma fábrica, de qualquer fábrica, partilham uma imagem e uma identidade, a de trabalhadores, como algo fundamental. Seu ponto de partida é a cena inaugural do cinema, que estreou suas câmeras colocando-as na entrada de uma fábrica. Em 1895, os irmãos Lumière filmaram uma centena de operários de sua fábrica saindo pelos portões na hora do almoço de seu trabalho.[7] Captada em três ocasiões diferentes com a câmera na mesma posição, a cena dá a impressão de um fluxo ininterrupto de trabalhadores, até que se fecham os portões atrás do último deles. Assim, pode-se dizer que, desde o início, a força onisciente de uma câmera, buscando como exibi-los com o ritmo e a regularidade de uma verdadeira saída, transformou os operários em atores, em um exército de extras. Mas se supõe que ali houve antes uma ordem do trabalho que sincronizou operários e operárias – uma ordem imposta pelo patrão e diretor da cena, o próprio Lumière no caso –, uma porta de fábrica que os estruturou e dessa compressão surgiu logo a imagem de uma força laboral. Harun Farocki (2013, p. 197) diz que nessa cena inicial do cinema a imagem se acerca ao conceito e, por esse motivo, pôde se transformar em uma figura retórica, uma figura que dominou com poucas variantes o século XX, centralizando muitas vezes as imagens ficcionais e as documentais.

    O que mudou abruptamente na passagem para este século é a possibilidade de manter a porta daquela fábrica como uma linha de demarcação precisa entre trabalho e não trabalho. A maioria dos trabalhadores ou um número significativo deles simplesmente já não tem uma porta para atravessar, uma fila para furar, ou um espaço livre no qual se dispersar à saída, como ocorria no filme dos irmãos Lumière. Farocki recupera essas imagens fundacionais em um vídeo e numa instalação, nas quais aquelas convivem com outras, extraídas de ficções do cinema e de documentários, registradas em outras portas de fábricas fordistas no século XX, além dos materiais contemporâneos obtidos de câmeras de vigilância. Com A saída dos operários da fábrica (Arbeiter verlassen die Fabrik), Farocki ratifica sua comprovada maestria para potenciar as virtudes políticas do filme de arquivos (Didi-Huberman 2014, p. 153), ao estender o gesto inaugural dos irmãos Lumière com a montagem de 12 saídas da fábrica de distintas procedências e etapas históricas para sua projeção simultânea, cada uma em um monitor de TV.[8] Essa arqueologia da representação do trabalho[9] imaginada por Farocki assinala, no nível da forma, o transbordar da fábrica para o espaço artístico. Os operários e as operárias que saem da fábrica acabam em outra: o museu, resume com precisão Hito Steyerl (2014, pp. 68-69), adjudicando de passagem uma potência de fábrica a essa instituição.

    Um princípio museístico guiou também uma das peças da instalação do cineasta e artista visual argentino Andrés Denegri[10] na qual A saída dos operários da fábrica Lumière (1895) convive e se superpõe com outra imagem mítica: La bandera argentina (1897), de Eugenio Py, apontada como a primeira filmagem no território desse país (La Ferla 2013, p. 35). Esse filme extraviado é relembrado aqui com um registro apócrifo (ibid., p. 34) e integrado a um conjunto cujo título geral, Éramos esperados – em alusão à frase de Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história, acerca do laço entre gerações –, apresenta cinco versões: Super 8; 16 mm; Hierro y tierra; Plomo y palo e Sísifo. De acordo com o formato dos projetores e do material fílmico que incidem sobre telas pequenas ou maiores, as duas primeiras oferecem uma visão do nascimento histórico do cinema em geografias distantes, de certo modo harmônica, por meio de uma única imagem contínua, em que se superpõem e coexistem os trabalhadores e nosso símbolo pátrio. A visão da discórdia histórica entre ambos aparece em Éramos esperados (Hierro y tierra), conjunto no qual três projetores sobreimprimem numa mesma grande tela a mesma bandeira filmada por Eugenio Py, com o registro de marchas operárias, conflitos e protestos durante dois momentos históricos da política argentina do século passado marcados pela violência repressiva: o de El grito de Alcorta (rebelião de colonos agrários em 1912) e o da Semana trágica (sangrenta repressão de operários metalúrgicos ocorrida em 1919). Em Éramos esperados (Plomo y palo), o castigo dos protestos pelas forças militares ou policiais em décadas recentes parece duplicar e expandir o efeito de sua violência pelo mecanismo da repetição das imagens projetadas, sugerindo que as mobilizações e a repressão operária se impõem, qual destino de Sísifo, como uma constante histórica argentina ao longo do século que se inaugurava com a própria produção de imagens.[11]

    Trechos ficcionais ou documentais das obras mencionadas até aqui parecem organizados para sublinhar que o trabalho, sempre associado ao capitalismo e a seus excessos iniciais, liga suas consequências no presente com termos como pobreza ou precariedade, que citamos no começo. Mas, se a precariedade era a regra e, ao mesmo tempo, a promessa fordista de uma relativa segurança no emprego, a precarização é um produto da economia pós-fordista. O curta-metragem Detroit’s Rivera. Fordism and the labors of art (A Detroit de Rivera. O fordismo e os trabalhos de arte), realizado pelo crítico e ensaísta Julio Ramos, reúne materiais que convertem essa afirmação em um axioma. Em seu filme, exibido na capital argentina por ocasião de sua conferência no Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (Malba),[12] Ramos alterna arquivo com o registro do presente para ensamblar tempo histórico, condição operária e uma geografia, a da cidade de Detroit, como emblema do nascimento do fordismo e de sua radical decadência contemporânea. O resultado, de grande potência documental, inscreve o movimento anacrônico de um duplo trabalho da arte: por um lado, o que reúne as alternativas do formidável trabalho de Diego Rivera nas paredes do Instituto de Arte de Detroit, contratado por Henri Ford na década de 1930 para estampar em um gigantesco mural os pormenores da produção automotriz de suas fábricas, com o movimento febril da produção de máquinas e centenas de operários das fábricas de Ford e de outras instaladas em Detroit. Simultaneamente, Ramos mescla com maestria aquelas imagens de arquivo e as de seu próprio registro dos detalhes da obra de Rivera. Desprovida do acompanhamento verbal com que o documentarismo ancora seus sentidos, essa iconografia é fortemente expressiva em sua capacidade de sugerir, com pura potência visual, as relações entre arte e história, imperialismo e América Latina, muralismo e modelo de produção fordista.[13]

    Formas éticas na figuração do precário

    Descolocados, deslocalizados hoje os trabalhadores em relação a um determinado espaço produtivo, as vias das artes visuais, literárias e performáticas/teatrais realizam experimentações com a forma política a fim de acercar-se a reconstruir com alguma verdade os gestos e as tensões que sobressaem daquela relação no cenário atual, no qual o trabalho se converteu no centro das reflexões e representações em que prevalece o mimetismo. Hal Foster se ocupa da obra de Thomas Hirschhorn, que consiste basicamente em instalações ou performances, às quais considera um manual artístico para um mundo precário (Foster 2011, p. 94). Nesse manual se destacam os monumentos improvisados em lugares públicos, as denúncias das injustiças mais flagrantes em cartazes confeccionados com materiais correntes, entre outras numerosas ações e gestos cotidianos recuperados pela arte e destinados a fazer aflorar os excessos do capitalismo tardio. Foster destaca que, como parte das escolhas éticas e ao mesmo tempo ideológicas de Hirschhorn, ele evita a indignidade de falar pelos outros; assim, não fala pelo precarizado, mas com frequência põe algumas ferramentas da arte a sua disposição, sem neutralizá-lo. Não vou abordar especialmente aqui os projetos que esse autor desenvolve destinados à participação direta das audiências e a distintos modos de implicação, em uma via semelhante à de Joseph Beuys e à do próprio Warhol. Só quero ressaltar o exemplo de uma obra como a de Hirschhorn destinada a mostrar – por meio de um modo de ver e de ler – sensibilidades compartilhadas em torno da figuração de situações de emergência e precariedade com procedimentos que buscam, por um lado, uma igualdade poética de discursos, semelhante àquela que postula Rancière (2011) com a transcrição dos arquivos e documentos operários em La noche de los proletarios. Por outro, procuram que os meios formais empregados na figuração dos explorados ou dos desamparados assegurem tornar inteligível sua situação, em princípio, desde seus próprios enunciados, sejam eles verbais, físicos ou territoriais. Essa classe de mimetismo, desligada das causas políticas ou econômicas de parte do capitalismo e que prescinde de todo espírito de revolta, no estilo da arte comprometida dos anos 1970, é o que descreve e sustenta com argumentos polêmicos Jacques Rancière (2012) em relação à política estética do diretor português Pedro Costa, autor de retratos fortemente realistas da miséria em que sobrevivem emigrados cabo-verdianos em um bairro de Lisboa. E também Julio Ramos quando defende a legalidade do compromisso com a justiça mediante a estética por parte de Sebastião Salgado, através das colossais paisagens humanas que documentam, no limite do lirismo visual, as formas mais cruéis/implacáveis/impiedosas de exploração e miséria (Ramos 2003).

    A crítica Claire Bishop, atenta às perspectivas contemporâneas dos recursos formais da arte para fazer referência ao mundo do trabalho – e, ao mesmo tempo, àqueles relativos aos próprios trabalhos artísticos –, chama delegações ao gesto dos artistas de convocar personagens autênticos para executar as ações de sua inspiração (Bishop 2010-2011). Não desenvolverei aqui esse tema em particular, mas vale mencionar que, entre as variantes e os diferentes formatos de performances delegadas que analisa Bishop, se encontram aquelas em que se solicita aos participantes desempenharem ações segundo suas próprias identidades, em um espaço de exibição determinado. Identidades baseadas na raça, na classe social, no gênero, na sexualidade ou na idade, e, na última década, menos lúdica que as anteriores, centradas sobretudo no mundo do trabalho e das consequências das sucessivas crises. As experiências que Bishop considera mais significativas são as obras – ou intervenções, ou instalações ao vivo – do madrilenho Santiago Sierra, dedicadas na última década sobretudo à realidade da miséria e do desemprego nos países das Américas Central e do Sul, e das condições de exploração às quais invariavelmente são submetidos os indocumentados tanto nesse continente como no Primeiro Mundo.[14] Bishop desconsidera as objeções que alguns setores da crítica formulam a Sierra em virtude do procedimento mesmo que ele utiliza em suas obras, cuja montagem fortemente mimética repetiria iniquidades do capitalismo globalizado ao subcontratar, como acontece nos países centrais, para distintos trabalhos, operários malremunerados de países em desenvolvimento. Contudo, Sierra faz da contratação dos participantes um ponto-chave de encenações: essa ação se cumpre por intermédio de agências de emprego e a transação financeira se converte em um dado central, ao exibir os detalhes de cada pagamento em cada sessão, convertendo desse modo o sistema econômico da obra – e por extensão, o geral – no principal ponto de referência.[15] As performances ou intervenções constroem aqui cenas peculiares, que, no entanto, não se diferenciam de outras semelhantes em geografias próximas ou distantes, que correspondem a países de nosso continente, ou daqueles do eixo sul-sul. Como define Graciela Montaldo, trata-se de cenários diferentes com avaliações diferentes entre arte e política, nos quais certas imagens e performances são percebidas com novos conceitos, programam novas relações entre estética, arte, espetáculo, política, mercado e colocam em cena intervenções culturais de limites difusos, com novos conceitos de obra, artista, margem, estética, cultura de massa (Montaldo 2011).

    O olhar do retrato

    As coordenadas apresentadas até aqui, que são tanto estéticas quanto sociais, são as que gostaria de destacar para colocá-las em relação com a série Extinción: Últimas imágenes del trabajo en la Argentina, do fotógrafo Dani Yako (2001). E a esta com as imagens de um extraordinário documentário, A morte do trabalhador, do alemão Michael Glawogger (The workingman’s death, 2005), em uma proximidade temática e estética que delata a similaridade de situações de países situados no meridiano sul do planeta, tanto nos processos críticos de suas economias como nas representações de suas crises.

    As imagens reunidas em Extinción mostram as devastadoras consequências do processo de reconversão neoliberal que durante a década de 1990 converteu dezenas de milhares de trabalhadores argentinos em matéria excedente. Nessa série, Yaco concentra a objetiva da sua câmera especialmente nos trabalhadores que sobreviveram nas minas de carvão do extremo sul do país (minas do rio Turvo, privatizadas nos anos 1990 e em plena agonia produtiva), em salitrais, em secadouros de tabaco e em canaviais, em frigoríficos, ferrovias e olarias artesanais. Capta os trabalhadores de um extremo ao outro do país, no momento em que deixaram de pertencer a um conjunto operativo e articulado para se tornarem indivíduos que, sozinhos ou em pequenos grupos, vivem em áreas que são puro lugar ou território. Em todos os casos são fábricas ou zonas que deixaram de funcionar regularmente

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