Jornalismo em tempo de pós verdade
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Jornalismo em tempo de pós verdade - Isabel Filgueiras
algum".
O bom jornalismo contra a desinformação
Isabel Filgueiras
Era 2016 e os ânimos estavam acirrados nos Estados Unidos. Em clima de tensão pré-eleitoral, uma ferramenta nova viria a influenciar o pleito. Jornalistas, consultores e institutos de pesquisa não conseguiram prever o efeito que a combinação de elementos como a polarização, a internet, algoritmos de redes sociais e textos inventados teriam na decisão pelo novo presidente do país. Contra todas as previsões, o candidato republicano Donald Trump venceu a disputa contra a adversária democrata Hillary Clinton. Antes mesmo que Trump começasse a usar o termo fake news , que muito repete para se referir a veículos de comunicação que o desagradam, esse fenômeno, aliado a outros fatores político-econômicos, o colocou no Salão Oval.
A quilômetros da Casa Branca, jovens da pequena cidade de Veles, na Macedônia, encontraram um meio fácil e criativo de ganhar dinheiro. Nada de venda de drogas ou prostituição. O negócio era legal. Tudo que precisavam era acesso à internet de alta velocidade, domínio de mídias sociais e alguém disposto a pagar por mobilização digital ou acessos. Eles passaram a criar sites de notícias falsas. Os cliques rendiam lucro, sobretudo quando conseguiam viralizar em plataformas como Twitter e Facebook. Os complexos algoritmos das empresas de tecnologia ajudaram esses textos criados, totalmente fictícios, a ganhar o mundo, contribuindo para mudar os rumos de decisões tão sérias quanto as eleições presidenciais americanas. Se foram ou não os russos quem financiaram esse movimento, não saberia dizer. Deixo para o FBI descobrir. O fato é que qualquer um com dinheiro o suficiente pode se aventurar a ditar as regras da história. Quem sabe até sabotar democracias. É assustador.
A receita para o sucesso das fake news era o sensacionalismo, que se aproveitava do clima de polarização criada pela política nacional. Textos mentirosos como Agente do FBI suspeito no caso do vazamento de emails de Hillary foi encontrado morto em um aparente caso de assassinato seguido de suicídio
tiveram milhões de visualizações — no caso citado foram 15 milhões. Outra notícia falsa dizia que Hillary integrava de rede de pedofilia que tem sede em pizzaria e que Papa Francisco apoiava Donald Trump. Alguns desses textos eram atrelados a jornais que sequer existiam.
Em contrapartida, reportagens jornalísticas que apontavam a possibilidade de sonegação de impostos de Donald Trump eram vistas com desconfiança. Nessa guerra de fatos contra mentiras, o jornalismo tem de encontrar armas para cumprir a missão de informar. A meu ver, a principal delas seria construir uma relação de confiança na comunidade. Algo que só se consegue quando somos éticos, críticos, inclusive de nós mesmos, e quando buscamos atingir minimamente a imparcialidade, mesmo que ela pareça uma utopia para muitos colegas e leitores.
Da mesma forma que os filmes de ação ou épicos vencem os documentários em termos de público, as notícias falsas têm um apelo emocional que o jornalismo nem sempre consegue alcançar. Há ainda um agravante: a imparcialidade tende a ser chata, sobretudo para extremistas. O público de hoje é mimado pelos algoritmos das redes sociais e se habitou a só ler aquilo que o agrada, opiniões que reforçam seus pensamentos. Está desacostumado a ser confrontado. Quando lê uma matéria com os dois lados, sente-se contestado. Shyam Sundar, diretor do laboratório de pesquisa em mídias sociais da Universidade do Estado da Pensilvânia, explica que esse fenômeno psicológico é chamado viés da confirmação
.
Inúmeras foram as vezes em que, nessa crise política brasileira, recebemos comentários de leitores que nos acusavam de esquerdistas, quando outros nos chamavam de fascistas em relação a uma mesma matéria. Isso porque quem lê da perspectiva da direita, achou o texto muito à esquerda e vice-versa. Por mais que nós, repórteres, façamos o esforço de não sermos tendenciosos, sempre sofreremos com críticas de um lado ou de outro por dar voz ao inimigo
.
A verdade e a objetividade por vezes não agradam. Uma prova disso é que, no artigo "Com Facebook, blogs e fake news, adolescentes rejeitam ‘objetividade’", a pesquisadora Regina Marchi concluiu que a atual geração de jovens prefere textos opinativos a informativos. Mais uma vez, esses argumentos, usados por autores de opinião, parecem mais uma ferramenta para reforçar ideários já construídos. É um sistema que se retroalimenta dentro de um mesmo grupo de pessoas e pensamentos, de forma que se torna quase impenetrável para a imprensa que diverge dele ou aponta, por meio de fatos, incoerências nessa base argumentativa.
Jornalistas sob ataque
Não é possível, no entanto, culpar somente a revolução digital, os algoritmos das redes sociais e a internet pelo nosso fracasso recente em alcançar as pessoas. Ao longo do tempo, enquanto nossas credenciais de jornalista ainda bastavam para que uma parte do público acreditasse no que escrevíamos, as empresas e os profissionais cometeram erros que levantaram a desconfiança do consumidor. Cada um desses erros — como interesses comerciais acima de editoriais (sim, por uma questão de sobrevivência, às vezes) ou problemas com a apuração, prejudicaram os outros inúmeros acertos da imprensa. O jornalismo é imperfeito. Sempre cometerá erros. Faz parte do jogo. Mas precisa aperfeiçoar a forma como lida com eles e desarmar o discurso que se forma para desacreditá-lo.
Para o professor da Universidade do Texas e pesquisador de mídia e revolução digital, Rosental Calmon Alves, estamos em meio a uma onda de difamação da mídia, útil para os políticos que veem a imprensa como ameaça. Nos Estados Unidos, o Project Veritas se dedica a tentar, a qualquer custo, descredibilizar a mídia democrata, progressista ou liberal. O lema do grupo é a luta contra a corrupção. Algo que soa muitíssimo familiar aos ouvidos brasileiros nos últimos tempos.
Entre as estratégias do Project Veritas, para o que eles chamam de "desmascarar fake news", está o uso de câmeras escondidas, trotes telefônicos, investigações e até a contratação de pessoas que se fazem passar por fontes e inventam histórias. O objetivo é induzir veículos de comunicação a publicar notícias falsas para que, depois, sejam tachados de fake news.
Em novembro de 2017, o grupo liderado pelo conservador James O’Keefe tentou aplicar o golpe no Washington Post. Mas a investida tomou rumo inesperado. Desconfiados, jornalistas investigaram a suposta vítima de assédio de um senador republicano. O senso crítico dos repórteres resultou em perguntas incisivas que confundiram a falsa fonte. O jornal expôs a situação em uma reportagem detalhada. Tanto a paciência e o rigor para averiguar os fatos, como a ética na lida com a situação, salvaram o Post de um vexame.
Por isso, defendo que, em um mundo que vive momento de cada vez mais polarização, nós, jornalistas, devemos encarar o trabalho com uma seriedade que pode ser confundida até com caretice. Talvez seja preciso desacelerar as produções insanamente rápidas que correm para ser as primeiras na web para priorizar a precisão. Outro ponto a destacar é que, dentro dos ciclos históricos do jornalismo, que ora valoriza opinião, ora prefere informação imparcial, teremos que distinguir mais que nunca uma da outra. A confusão entre ambas pode se tornar mais uma arma contra nosso trabalho.
Por mais que o jornalismo exista há séculos, ainda caímos em armadilhas. De tempos em tempos, é preciso repensar o modus operandi. Toda essa história de revolução digital ainda é nova e caminhamos para entrar em bons termos com ela. Uma das lições a serem aprendidas nessa jornada é a de sermos mais críticos. Retomar o papel de curadores. Não devemos nos deixar pautar com tanta facilidade pelas ondas e redes sociais. Donald Trump conseguiu, com maestria, manipular a mídia. Como ele prega em seu livro América debilitada, o importante é ser sempre lembrado — a velha máxima do fale mal, mas fale de mim
. Dessa forma, ele conseguiu estar mais na mídia que sua concorrente.
É desgostoso pensar que, de uma hora para outra, os políticos, que historicamente tinham a fama de mentirosos, parecem ter mais credibilidade do que veículos de comunicação. E o jornalista, o qual deveria ser o mensageiro da verdade, entra na mira da desconfiança. A situação tem ficado tão tensa que os ataques aos colegas ultrapassam a barreira virtual onde se disseminam as falsas notícias. Enfrentamos violência, agressão verdadeira, à moda antiga.
Lembro de dois casos ocorridos em janeiro de 2018, à época do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Tribunal Regional Federal da 4a região. Em um deles, um colega fotógrafo da Folha de São Paulo foi ameaçado na cobertura de protesto da direita contra Lula. Acusaram-no de ser do Mídia Ninja, grupo alinhado à esquerda. De outro lado, repórteres da Globo foram impedidos de cobrir o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que apoiava o petista. Já houve relatos de equipamentos quebrados e testemunhei agressão contra fotógrafos que cobriam manifestações.
Havia um tempo em que, na cobertura política, o que mais se ouvia eram coisas como isso é intriga da oposição
ou é fruto de um inimigo que quer manchar minha imagem
. Diante de um escândalo ou denúncia, os políticos atacavam uns aos outros. Repórteres assistiam e narravam os fatos de fora da arena de batalha. De repente, políticos como Donald Trump passaram a apontar os canhões para a mídia. Eles resolveram pintá-la como grande inimiga, principalmente para encobrir mentiras. O pior é que o discurso de fake news tem sido usado por todos os lados. Aliás, o termo que servia para designar as notícias inteiramente inventadas agora é empregado para definir qualquer coisa que desagrade um político ou que conte meias verdades. É banal.
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