Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O melhor que a lua possa dar
O melhor que a lua possa dar
O melhor que a lua possa dar
E-book385 páginas5 horas

O melhor que a lua possa dar

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Este romance tragicómico de Elena Chernikova baseia-se nos eventos verídicos ocorridos na Rússia pós-soviética. A 18 de Fevereiro de 2006, numa conferência de imprensa realizada em Moscovo, um ministro bem-intencionado tinha declarado que todas as ciências provaram finalmente a veracidade da Bíblia relativamente à origem do Homem, apresentando um relatório interdisciplinar e avisando que «chegou a hora de reescrever todos os livros didácticos de Biologia, inserindo na educação um componente religioso». Esta declaração do ministro transtornou imediatamente a vida pessoal e familiar dos cidadãos, causando um apocalipse.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento14 de mai. de 2019
ISBN9781547580583
O melhor que a lua possa dar

Relacionado a O melhor que a lua possa dar

Ebooks relacionados

Arte para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de O melhor que a lua possa dar

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O melhor que a lua possa dar - Elena Chernikova

    Introdução

    «Que o Senhor abençoe a sua terra, com o precioso orvalho que vem de cima, do céu, e com as águas das profundezas;

    com o melhor que o sol amadurece e com o melhor que a lua possa dar;

    com as dádivas mais bem escolhidas dos montes antigos e com a fertilidade das colinas eternas;

    com os melhores frutos da terra e a sua plenitude, e o favor daquele que apareceu na sarça ardente.»

    Deuteronómio 33:13-16

    «Ó Senhor Deus!» – exclamou ele há um ano, entrando acidentalmente numa igreja branca com umas zonas de degelo no estuque das paredes e que mais parecia um monte de neve primaveril. «Ajude-me. Veja o que aconteceu...»

    O Senhor permanecia silencioso. Tanto São Nicolau, o Milagreiro, como todos os Santos mantiveram os olhares de esguelha.

    «Será que deveríamos encontrar-nos com mais frequência?» – disse ele e, sem olhar para trás, saiu à Rua Ordynka.

    Capítulo 1

    Com qualquer orgulho que o homem manifesta, o diabo faz festa. Tem orgulho da nobreza e mente camponesa. Não há pior tolo que o tolo orgulhoso. Por um copeque a munição e por um rublo a ambição.

    O professor limpou as lentes dos seus óculos e pousou-os no púlpito. O rosto de um grande estudioso ora platonizava, ora maquiavelizava. Os rostos dos discípulos respondiam derridamente.

    – Como é obvio, eu entendo que não apenas a sua fisionomia, estimado colega, revela os sinais da noite mal dormida – o professor olhou corajosamente para o canto à vista desarmada –, mas a palestra terá lugar em qualquer circunstância.

    – Oh, o professor leu! – brilhou com inteligência o canto do auditório. O resto alegrou-se intelectualmente do estilo, bem, vocês entendem, antegozando uma escaramuça entre pai e filho.

    – Provavelmente, você deveria começar o dia com uma cerveja – lamentou ironicamente o professor, dirigindo-se à voz do maganão.

    – Ao contrário, comecei com... – não terminando, o estudante semicerrou os olhos. – Para não ter a infelicidade de me encontrar numa situação interessante, como a sua, Professor. Quando em qualquer circunstância deve ocorrer aquilo que o senhor desejar.

    – Juventude! Além disso, é irracional – de repente cedeu o pai e ajeitou a gravata ausente.

    – Quem sabe, exactamente em que momento a velhice pode... – murmurou o filho quase a adormecer.

    – É lógico – galhofaram os estudantes com muita satisfação.

    Todos sabiam que à noite, o filho lia o Evangelho na igreja junto do corpo de uma tia recém-falecida, o que irritou ainda mais o seu pai-humanista; contudo, a troca de galhardetes sob o tema do passatempo dos jovens, ocorreu hoje publicamente e isso não era nada correcto.

    – Que tipo nojento! – dizia ele, quando lhe perguntavam sobre o filho. – Dar-lhe-ia, se fosse a minha vontade, o tal... cálice, que não passasse dele sem que ele o bebesse.

    Os que o rodeavam, entendendo a dor do pai, perguntavam-lhe frequentemente sobre o filho, partindo-lhe o coração, querendo, porém, desfrutar das suas respostas alusivas e depois, inesperadamente, paravam de perguntar. Aqui, então, o pobre pai sufocava-se no silêncio da indiferença do Universo, não confessando nem sequer ao próprio coração, que estava mimado com a atenção pública ao seu descendente desnorteado.

    Pergunte-lhe o essencial – querias dar à luz um escritor criativo e um crente? – ele, é claro, lembra-se como, acalentando algo próprio, oculto e não verbalizável, convenceu a já não muito nova esposa a dar à luz. Os humanistas muitas vezes acreditam em crianças, como no próprio futuro.

    Por este essencial desejado, é claro, ninguém se interessava: o professor, resumidamente, era um astro e uma pessoa de fato abotoado, porém o filho prodígio era, em resumo, um doidivanas, evidentemente um tagarela e, talvez, até um trapaceiro. Deixe-os entenderem-se um com o outro.

    O filho queria ir para o exército e para além do horizonte. Ele melindrava assiduamente o professor de cinquenta anos, que sabia ao certo que o exército sangrava dos maus-tratos lá infligidos aos recrutas; para além do horizonte, o imaginário estava numa lufa-lufa e a soma era desproporcional à homoexemplaridade do individuo. Resumindo, tanto num como no outro lado, não havia nada que o rapaz pudesse fazer. Seria melhor se ele parasse de zanzar pelas igrejas, reverenciar as velhotas e deixar de chamar a atenção. No entanto, sem isso, todos o notavam. Os maganões, que já não se fazem, surgem sozinhos. Aos domingos – igreja; nos jejuns – jejua; a literatura preferida – é a hagiográfica. Tudo é brincadeira e tagarelice – só para irritar o pai, irritar e mais nada.

    O pai admoestava a prole por retrógrado e obsoleto:

    – Os colegas – jejuam, tu jejuas. Divertido!

    O filho respondia:

    – Paizinho. Lembras-te da diferença entre os senhores e os escravos? Tu vês diferença entre os senhores e os escravos?

    – Um pode, o outro quer – o pai mostrou-se desconfiado.

    – E porquê?

    – É a hierarquia. O que é que queres?

    – Vou esclarecer. O senhor – sabe o preço, o verdadeiro preço, ele próprio determina o preço, o próprio verifica a conta e ele mesmo é capaz de pagar o preço verdadeiro por aquilo que vale este preço...

    – É demasiado prolixo.

    – E se abreviar?

    – Os fundamentos da filosofia – ainda não são filosofia. São uma brilhante miscelânea, quase intelectual. O senhor aposta a sua vida! Gasta em vão, como tu dizes, o dom divino. Está muito na moda. «Façam as vossas apostas, senhores! Quem traz a vida consigo?» Tu vês alguma mercadoria digna de pagar desta maneira?

    – Sim – disse determinadamente o filho e voltou a preparar-se para a missa da tarde. – Devemos viver de tal maneira, que tenhamos algo que valha a pena morrer. E quando vives não tendo nada, que valha a pena morrer – isso não é vida.

    – Eu passo – disse o pai melancolicamente. – «Quasi una fantasia

    – É sempre a mesma coisa para terminar a conversa. Tu és uma compilação de citações com pernas.

    – Não é aconselhável conversarmos – concordou o pai. – E mesmo assim digo-te: não vale a pena estares à espera de atingir a eternidade através da tua correria; na instituição para onde estás prestes a ir, tudo é complicado. É tão complicado, que obscurantismo – é favor.

    O professor não queria ver o filho no ciclo dos heróis na natureza, que punham vidas em jogo. Decidiu há muito tempo que o orgulho do heroísmo é o resultado da negligência. Quem salvará o bebé do fogo, se o incêndio em casa não acontecer? E o incêndio em casa não acontece, se todos cumprissem as condições de segurança contra incêndios. Herói é uma desculpa para os preguiçosos: a turba reverencia com prazer um individuo, mas quando vivem todos normalmente – isso é uma sociedade.

    E a sociedade já não é uma turba, nem uma massa informe, é necessário, oh sim, saber negociar e, consequentemente, saber falar, formular, porém a capacidade de falar está em declínio, é cada vez mais rara. Ele, o professor Kutúzov, sabia com toda a certeza, porque ensinava literatura aplicada. O que significa viver normalmente? É um exercício para a imaginação, mas publicamente o professor não fantasiava – ele não era político, nem escritor, era um professor de ensino superior, um profissional de luxo, um guardião de sigilo: um provedor de truques da génese textual.

    Certamente, não quereria também a morte do filho: a esposa triste, o funeral, os pesadelos do embalsamamento, o lugar no cemitério, as celebrações em memória do morto, mais uma vez ao nono e ao quadragésimo dia! O professor irritava-se terrivelmente com esta tripla celebração em memória do morto. A tradição aqui é: se não celebrarmos três vezes – já não digo as vizinhas, velhotas ortodoxas – os colegas cientistas engolem-te vivo, aqui mesmo, na cátedra empoeirada. O professor estremecia ao lembrar-se que era necessário tirar e arrumar os pratos três vezes.

    Ele odiava rituais por mesquinhez intelectual. Todo o confessionalismo deve conhecer o seu lugar numa estante de livros ou em qualquer outro lugar, especialmente designado. Perdoem-me, mas estamos no século vinte e um e a antinomia central (criado ou descendente?), já no século vinte cansou terrivelmente o professor por falta de fundamentos. Estava com o coração nas mãos quando motivava a criação do género e não podia não dizer o que difere tanto o objecto, como a maneira de ver as coisas de um escritor sensato, da obscura e errada, como se fosse esfumada – óptica do crente. A vontade da obra e a prática da criação artística – são coisas diferentes. O professor honesto descrevia anualmente aos estudantes o abismo entre elas, agonizando com uma terrível repugnância.

    Enquanto o bebé crescia, tudo era ainda simpático, mas depois, da escola, que estranhamente reforçou as obsoletas intenções da criança, o professor condescendeu em enviá-lo para as provas de ingresso do colégio militar e... foi de férias, extremamente comovido com a sua própria coragem: mandá-lo para o inferno e ir de ferias! O filho vai à conquista da arena militar! Querias heroísmo? Faça favor. Falharás as provas e entrarás no seminário teológico. Ah! Ah! Ah!

    Mas o filho não chegou à comissão militar, desviou-se e entrou na faculdade de filologia. Em casa, relatou orgulhosamente à sua mãe sobre o sucesso nas provas de ingresso, mas depois regressou o pai e, folheando os papéis da nativa reitoria, descobriu a verdade.

    Ralhar – já era tarde demais: um concurso para atribuição de bolsas de estudo a estudantes do ensino superior, ganho pelo filho autonomamente, era absolutamente inoportuno, mas justificava a sua, ou seja, do filho, existência. Ganhando na loteria, as crianças nem sequer experienciam a autonomia, mas ele conseguiu, entrou. Por assim dizer, ensine-me, paizinho, mais um pouco, apenas durante uns cinco anos. Sou a tua abstinência, com todas as minhas abstinências.

    – O mais difícil é descrever o amor e a morte. Colegas, começarão a vossa manhã com um ensaio sobre o amor. O melhor vai ser publicado no jornal estudantil.

    – O meu já está feito – despertou o filho. – Espero que goste. Estão aí praticamente todos os seus pensamentos. A essência.

    – Óptimo. Dê me isso, por favor.

    – Está na sua mala, no bolso exterior – murmurou o filho, voltando a adormecer.

    O auditório, por hábito, petrificou, mas o professor retirou obedientemente a folha amachucada e começou a lê-la.

    – Do estudante Kutúzov ao Professor Kutúzov – declamou ele.

    Sobre o amor

    Quando ela me foi oferecida, senti-me iluminado como se estivesse entre mundos, onde não se precisa de luz; eu dormi com ela sob o brilho dos astros. De uma só estrela...

    Usando cola e as meadas do cabelo, roubadas no cabeleireiro, fez-lhe uma peruquinha e punha-a todos os dias, penteando conforme o catálogo. Depois pintei-a de outra cor e ela não se sentiu grande coisa, então, deitei fora a peruca. Repetindo o nome...

    Eu abraçava-a, dava lhe festas, murmurava-lhe ao ouvido, amava-a com todo coração e tentava dar-lhe leite a beber.

    Foi uma pena ela não comer. Podia até dar-lhe carnita. Eu ainda não conhecia a vida, era pequenino, mas tudo o que entrava na minha existência, foi imediatamente oferecido a ela. O meu amor era juvenil, puro, primeiro e verdadeiro. Todos os contentamentos do paraíso prístino enchiam o meu peito e, todas as noites, chorei de felicidade, como se conversasse com Deus.

    A Primavera é todos os dias.

    Quando o meu amor me permitiu pegar na sua mão, perdi a consciência. Contendo a respiração, apertava-lhe suavemente o cotovelo esculpido, como se tivesse medo de perder a confiança, mas ela era generosa e nunca tirava as mãos, não se ria do meu arrepio e paixão e eu agradecia-lhe com as palavras mais gentis, embora conhecesse poucas, mas todos os dias, ansiei aprender mais para que nada nos pudesse assustar ou distrair e para que estivéssemos juntos, para sempre, sem estranhos.

    Uma vez, eu adormeci muito cedo e não tive tempo de a despir, depois acordei aterrorizado, no meio da noite, de uma qualquer nova saudade abrasiva e escaldadiça...

    Não a tinha perto de mim.

    O meu coração parou de bater. Dei um pulo, mas desmoronei imediatamente na cama, como uma velha árvore abatida.

    Dizem que isso chega de repente, como a morte, mas eu não sabia ainda o que é a morte na realidade. Mas isso existe. Isso é indescritível e aterrador: desespero, irreparabilidade, solidão.

    – E depois, tu nunca te encontraste com ela?

    – A ama deitou-a fora. Despediram logo a ama e a mim, compraram-me um kit inteiro. Todas elas eram tacanhas, meio-sangue, de várias cores, como as meninas de rua, sem aroma e significação. Odiava-as e recusei dispô-las em filas, que era uma exigência da ama, já nova, que se chamava governanta.

    – E tu não aprendeste a dispô-las?

    – Não. Sem amor, não conseguia estudar. Sobretudo, explodia-me, simplesmente desfazia-me em pedaços, uma pequenina e manhosa besta de tinta vermelha suja, da última fila de baixo. Eu arranquei-lhe o assessório magnético. Ralharam comigo. Diziam que, sem esta besta, tudo estará incompleto. E mais, diziam que ela era tal como a outra, aquela! O meu amor! – Imagina só, esta besta desmagnetizada! Senti que estava pronto para um homicídio.

    – Oh, meu coitadinho...

    – O que mais posso dizer... Já não se pode dizer nada.

    – Sou uma escultora. Queres, que te faça uma outra, igual?

    – És uma estúpida e não uma escultora. Outra igual! O primeiro amor não se repete. Aquela, minha, nunca mais voltará. Nunca.

    – Desenha-a para mim, por favor.

    – Não. Não posso.

    – Tente.

    – Não!

    – Se quiseres, eu começo e tu terminas?

    – Tu não conseguirás. És uma mulher.

    – Isso não faz diferença. Dita-me. Que postura tinha ela?

    – Direita. Aristocrática.

    – Pernas?

    – Divinais. Mas uma estava afastada um pouco para o lado...

    – Era assim?

    – Sim! Sim! Como adivinhaste?

    – Eu simplesmente entendi-te.

    Numa folha de papel branca e brilhante estava a rir-se, com uma mão na anca, uma vermelha ciclópica letra "Я"[i].

    – Meu Deus – suspirou o professor sem pensar, enquanto a irmandade dos estudantes já abraçava o seu filho felicitando-o. — Só que isto não é um ensaio!

    Já não foi possível colmatar a alegria total. Os alunos entendiam: uma discussão familiar, mas todos amavam o seu filho, tal como se amavam a eles próprios e tudo, o que fizesse este canalha, era aceite com um milhão de toneladas de incenso, mesmo quando isso – não era um ensaio.

    O filho definiu um objectivo: provar ao seu pai que Deus existe. A qualquer custo. Hoje o filho, publicamente e de maneira altamente artística, acusou o pai de egoísmo. «Que traquinice ele fará amanhã?» – com um crescente horror pensava o professor, consciente até ao grau de Doutor em Ciências, de que era possível andar durante muito tempo, numa dança em torno do individualismo. Mas ficar sentado! Ele! No meio do círculo de dança! Nunca.

    Capítulo 2

    Oh Senhor, deixe-me perder os braços e as pernas, mas proteja-me de perder o juízo! O que foi soldado rombo – não dá para afiar; quem foi nascido tolo – não dá para ensinar. Ao padre inteligente, basta-lhe mover os lábios – nós entendemos.

    A noite estava abafada.

    A esposa ficou toda molhada de suor; o professor afastou-se do corpo envelhecido e flácido dela.

    Dentro da almofada, de um lado para o outro, rebolavam compreensivamente as provas de envelhecimento da almofada.

    Achava uma pena gastar dinheiro numa nova, portanto, as provas tiveram que rebolar por mais algum tempo. Aliás, hoje a insónia foi planeada, seria bom nem sequer adormecer, não dormir a sério, não dormir até de manhã, devia não dormir. Não se deve dormir.

    O dinheiro foi para pagar mais uma Bíblia, comprada no antiquário num ganancioso tremor de felicidade.

    A casa estava cheia, mas os livros vulgares já não o atraiam. Com uma teimosia, o ateu e estudioso Kutúzov coleccionava somente as Bíblias.

    Tinha certeza: podia ser eliminada a antinomia básica, resolvidos os dilemas morais, terminados os conflitos, as guerras e até mesmo brigas familiares, se se tranquilizasse o mundo humano com uma competente análise do texto bíblico. O objectivo era a paz de todos os seres sapientes.

    As tarefas: reunir a quantidade máxima de Bíblias, analisá-las letra a letra – e, inevitavelmente, sobressai e desvenda-se o significado falsamente atraente das escritas duvidosas, mal traduzidas e imprecisamente impressas. E se se juntarem todas as edições, em todas as línguas, todas as tiragens, encontrarem todas as discrepâncias, agarrarem pelas barbas todos os intérpretes da Sagrada Escritura – então o professor Kutúzov, um filólogo de Moscovo de grande nome, provará que o Evangelho é imaginação humana. Ninguém a não ser ele seria capaz de fazer isto!

    Subindo a num novo patamar, ele, especialista de extraclasse, apresentará a verdade a todos estes alarmistas e cobardes, que numa sala às escuras, andam à procura de um gato preto, que não pode estar lá. E de facto não está lá.

    Com certeza, sim, a tradição, a nação, o anseio de transcendência, os cortes nos carvalhos da história, as fendas na pedra filosofal, e os fracalhões não sacrificarão a sua imortalidade-fantasma à ciência só por amor à camisola, vai ser necessário um esforço, contudo, o sonho transformou-se em mania.

    Como é rica a Rússia em intelectuais; não tem nada a ver com uns certos, espiritualmente empobrecidos, reinos da Europa.

    Objectamos: qual é a necessidade de comprar todas as Bíblias, para acabar com uma fé?

    Oh, sim, havia uma mossa entre os objectivos e as tarefas, portanto, o professor Kutúzov, farejando uma emboscada lógica, não revelava a ninguém a sua paixão exaustiva: coleccionando, encontrou a sua felicidade, afundou-se, deixou-se prender pelo encanto dos antigos; em cada volume – secos em híper-herbários, estavam séculos de anátemas e maldições, esperanças e expectativas não correspondidas, enquanto ele os folheava com o dedo. Ele via: rezavam pelas igrejas os inúmeros loucos, que confiavam na palavra, e o herbário ramalhava com o sangue seco da história.

    O professor prometeu à acordada esposa as novas almofadas – bom, aguento –, depois, descuidadamente, decidiu tirar uma soneca.

    No início resultou bem e a brilhante ideia adormeceu, sem estrebuchar.

    Mas como sempre, veio do céu um zunido, ouviu-se o arrastar das botas pelo chão, puseram-se a rastejar os tanques, absorveu-o o êxtase da batalha, pois, tinha o dedo no gatilho e os miolos cinzentos a escorrer pela parede encarnada – aqui o cientista, num movimento brusco, obrigou-se a acordar.

    Esta condição médica consistia numa inevitável reacção nocturna do organismo professoral às compras da Bíblia.

    Durante o dia ele enchia-se de alegria; entre as ásperas veteranices do armário, ele, sob o silêncio de saudação das tábuas adoradas já no século dezassete, inseria uma noviça e, desenvolvia-se no armário o sexto dia da criação numa nova quantidade de exemplares. Kutúzov, como estudioso, atarefava-se particularmente com o sexto dia e com aquilo, ridículo, contra o quê Darwin apresentou correctamente a sua teoria.

    «O homem não pode ser o resultado de um acto momentâneo da criação» – a ideia central da especulação darwiniana cativou Kutúzov ainda na juventude. Absoluta, simples, de algum modo ingénua, atraente, encantadora, romântica e profundamente científica. Kutúzov era capaz de citar de cor a Selecção sexual durante horas e horas. Da Selecção natural gostava um pouco menos, embora, com certeza, aqui também houvesse ora união, ora luta, ora contrários.

    As Bíblias compradas foram muitas, a melhor colecção em toda a Moscovo. A mulher perguntava: «Não será melhor parares?»

    Porquê parar? O prazer que o filólogo Kutúzov tirava deste livro, como se fosse de uma traidora apanhada em flagrante delito, era inefável!

    É possível punir com pedras, com fogueiras ou, pode dizer-se – vá e não peque mais; oh, o Livro que seduziu o mundo, eu liberto-te. Ele mesmo dizia.

    E reverberava a música do coração: o deslumbramento incandescente do possuidor, o orgulho do coleccionador, a doçura do sonhador, o êxtase da eternidade, da antiguidade e da resistência. Dia e noite – a vida é cheia de significado próprio. Nem um segundo de medo! A Bíblia, dizendo em segredo, cura qualquer fobia, mesmo que seja apenas segurá-la na mão, enquanto Kutúzov tem um armário cheio de beldades cativas.

    Contudo, na noite logo a seguir à compra, como uma retumbante e fedorenta massa de ferro fundido, aniquilava-lhe a guerra. Ela, na imaginação de Kutúzov, era sempre mundial e o deslumbrante multicolor das suas visões, se se na realidade a vivenciar, podia rebentar qualquer retina.

    O mundo da guerra nocturna estava adornado com raras pedras preciosas. A blindagem incrustada de tanques era em madrepérola! Perfuravam-na entusiasmadamente, como se fosse cartolina, os bicudos projécteis diamantinos cheios de rúbea paixão cumulativa, que fazia cair as pérolas líquidas no interior do salão. Os frutos esverdeados das profundezas colombianas nos flancos, penetravam-se húmida e avidamente nos corpos humanos e os guerreiros da luz, de repente lapidados, tornavam-se esmeraldas das botas até à raiz dos cabelos.

    Aguentar só até de madrugada. Levar a insuportável carga da guerra rúbea no corpo, mais uma mochila de pedra e os contactos impossíveis entre as fortalezas frágeis.

    Felizmente, apenas uma única vez lhe ocorreu sofrer e gritar grosseiramente no sono, atirar-se para uma piscina cheia de crocodilos e chorar de um insuportável, capaz de engolir uma pessoa viva – amor pela vida corporal, resguardada num invólucro de três dimensões. Na segunda noite, a guerra retirava-se solenemente, silenciada, simplesmente carbónica, e a mochila amolecia, contorcia-se crestada e desfazia-se em pó.

    A esposa sabia que ele se sentiria melhor na segunda noite, dado que as compras começavam a ser menos frequentes. Mas na primeira noite, sempre impetuosa e com o centro de gravidade deslocado, quando a inconsolável agonia do pré-infarto atormentava o marido, a mulher tremia de medo e diligentemente compreendia tudo.

    «O pai caiu no anzol da cobiça e não se pode soltar» – comentou impiedosamente o filho deles. A mãe repreendeu-o pelo julgamento.

    Na terceira noite, o professor dormiu como um anjo e, pela manhã, a esposa parecia-lhe amável e mais jovem. A ansiedade deixava-a devagarinho, aos poucos; a esposa sofria mais do que o seu maníaco doméstico, mas nunca pensou em divorciar-se dele. Há quantos anos estavam juntos. Apenas não queria que acontecesse algo de errado que pudesse acontecer.

    O filho era o único que não ligava nenhuma ao perdularismo bíblico-maníaco do pai, enquanto a esposa e o médico, iluminado por ela, tinham acordado escrever um dia para o Centro de Estudos do Instituto de Psiquiatria de Sérbski. A esposa até já tinha comprado os envelopes, os selos postais, o papel e a lista telefónica completa, só para ter em casa em modo SOS.

    Mas, efectivamente ocorreu o evento histórico. Denominá-lo era difícil, porque para qualquer coincidência se podia encontrar uma analogia. Excepto este, que não tinha analogia. Ele era único nas suas hemorrágica franqueza revolucionária, tempo, lugar e ingenuidade do arauto.

    Pela manhã de 18 de Fevereiro de 2006, a família do professor ligou, por hábito, a rádio de qualidade «Patriota», amada especialmente pela dona da casa, depois sentou-se à mesa do pequeno almoço. «Ovos fritos, torradinhas – ligam bem com sapatinhos; bacon extra, sumos frescos – um petisco gigantesco» – cantou o filho, incapaz de suportar o tom açucarado da estação. «Que grandioso desatino!» – anunciava ele em linguagem elegante o início das suas transmissões. Os pais ficaram ressentidos, mas não discutiram.

    O professor ouvia a tagarelice da rádio «Patriota» somente por curiosidade: quando acabam com isto? Não se pode, meus queridos amigos, no novo milénio trabalhar a óleo de lamparinas. Não se pode perguntar seriamente ao venerável sacerdote, convidado para a conversa de meia hora, em que frigideira será frita a mulher, que ousou aparecer na missa de calças e sem lenço na cabeça.

    Mas, três vezes por semana, aparecia no programa de rádio uma voz, cujos sobre tons faziam o professor perdoar a esta emissora tudo o resto. Além disso, a senhora, com facilidade declinava os números e corajosamente construía as conjugações perifrásticas. Construía correctamente – ao contrário da esmagadora maioria dos modernos jornalistas russos.

    A esposa do professor também reparou nesta mulher. O filho, observando os seus severamente calados pais, estudava, três vezes por semana, a estilística de cenas mudas de ciúmes.

    O professor ouviu a notícia e parou de comer, a sua esposa petrificou, tal qual uma actriz amadora provincial, assim como estava, com uma cafeteira na mão; o filho sorriu, virou-se e escondeu o olhar nas nuvens sobre a cidade do outro lado da janela, sentindo a acumulação das nuvens no interior.

    O locutor da rádio informou o povo de que o ministro da Educação da Rússia recebeu na véspera as provas do erro científico de Darwin, naquele ponto, onde ele, através da evolução, desenvolveu o Homem a partir dos protozoários. Consequentemente, chegou a hora de reescrever todos os livros didácticos de Biologia, inserindo na educação um «componente religioso» – assim se expressou o Ministro –, mais realizar, através da imprensa e dos jornais científicos, uma discussão pública com a participação dos representantes das comunidades clericais e outros representantes interessados.

    Nada nos poderia ajudar a transmitir o intransmissível e descrever o indescritível. Aplicando um modelo catastrófico banal: todos os membros da família perderam logo o solo firme debaixo dos pés, o céu caiu-lhes aos bocados em cima da cabeça e a cada um foi imediatamente entregue aquilo que lhe pertencia e lhe tinha sido destinado.

    Não foi a guerra, não.

    Apenas uma notícia, pequena e pacífica. Explosões de silêncio ensurdecedor abalaram a cozinha.

    A esposa começou a tremer de medo pelo marido. Ouvindo com clareza que o ateísmo chegou ao seu científico fim, que a existência de Deus foi interdisciplinarmente provada por especialistas siberianos e levada com sucesso ao conhecimento de um funcionário susceptível a inovações, ela pensou sobre o futuro do armário em carvalho, sobrecarregado de Bíblias. Os livros vão rir-se em coro uníssono, enquanto nós – compraremos finalmente almofadas.

    Ela ligou a televisão: lá disseram o mesmo e mostraram a conferência de imprensa do ministro. «Folheou» os canais: todos desdenhosamente enterraram o Darwin. Sem quaisquer emoções. De olhos fechados. A ciência tinha provado.

    A boa mulher compreendia: a época, os tempos e os costumes. Eles podem dizer o que lhes apetecer. A censura na Rússia foi proibida há quinze anos.

    Porém, sentiu-se chateada, só lhe apetecia chorar, porque para ela, uma senhora crente, nenhuma prova era necessária. Além do mais, tinha uma esperança ardente de nunca chegar a viver até o reconhecimento científico de Deus. A ciência é toda manchada por mentiras de gente ambiciosa e não deve conseguir alcançá-Lo: isto poderia absolver a ciência e os cientistas à vista de todos, inclusive de crianças. A esposa do professor Kutúzov odiava com toda a alma os cientistas e, categoricamente, até sufocar, até à última batida do seu coração, não queria descobertas semelhantes.

    Quando o marido isolou simbolicamente os livros sagrados dentro de um enorme armário fechado com uma única chave, para ir buscar a verdade noutro lugar, mais importante – sem Deus, ninguém imaginaria que a quantidade, essa coisa nociva, a brincar a brincar se transformaria em qualidade, ao que parecia, aqui mesmo na cela de isolamento.

    A esposa pressentiu que ele, pobrezinho filósofo, ajuizaria romanticamente o acontecimento! E ainda, nem de propósito, era Fevereiro – época da avitaminose.... Algo deveria ser feito.

    O filho alegrou-se plena e simplesmente: o paizinho junto com o evolucionismo, foi levado à parede. Aquele ensaio sobre o seu balofo,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1