Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Sociedade à espreita
Sociedade à espreita
Sociedade à espreita
E-book146 páginas2 horas

Sociedade à espreita

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

"Trata-se de uma luta que é política. Trata-se de uma manifestação de/pela vida."

Márcia Solange Volkmer – Doutora em História (UFRGS)



"[...] o trabalho parece um texto bomba, pois denuncia, provoca e atiça o debate a partir das pérolas homofóbicas, transfóbicas e putafóbicas que assumem contornos de intolerância. Jamais teria noção do quanto fomos bombardeados, de tão perto, por manifestações preconceituosas, não fosse esse apanhado documental e oral [...]."

Francis Deon Kich – Mestre em Psicologia Social (UFS)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de set. de 2019
ISBN9788583384960
Sociedade à espreita

Relacionado a Sociedade à espreita

Ebooks relacionados

Ciências e Matemática para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Sociedade à espreita

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Sociedade à espreita - Jandiro Koch

    espreita

    UMA LUTA POLÍTICA

    Inúmeros autores demonstraram que somos constituídos culturalmente. Pensamos e sentimos de acordo com o que reiteradamente ouvimos/vemos. Uma lei socialmente imposta não é mais questionada a partir do momento em que a sua repetição se torna costumeira (faço/sinto/penso porque todos com quem convivo o fazem assim). Em Sociedade à espreita somos convidados a atentar a essa produção como processo constante para entender por quais ‘verdades’ as pessoas são dirigidas em seus múltiplos posicionamentos sobre a questão LGBTQI.

    O livro apresenta múltiplos elementos para interpretação, com clareza de ideias e exemplos, que nos permitem acessar conceitos, fontes e a vida das pessoas por meio das entrevistas. A primeira parte da obra é resultado, e um recorte, da monografia desenvolvida no ano de 2018. Trata-se de um importante trabalho de pesquisa no campo dos estudos de gênero, e evidencia de maneira única aspectos já estudados nos centros urbanos, mas ainda inexplorados para as regiões interioranas do Rio Grande do Sul.

    Historiograficamente, constitui um primeiro e grande passo para tirar da invisibilidade grupos sociais e preencher lacunas que escondem preconceitos. Em uma região que efetivamente consegue esconder o que não se quer ver, a pesquisa realizada evidencia com êxito os aspectos que constituem as relações sociais do local. Mais do que um desejo de tornar visível, mais do que a possibilidade do debate, a pesquisa garante materialidade e concretude a uma realidade que se pretende distinta.

    Em um cenário de silêncios, a análise dos jornais revela, ao longo dos seis capítulos, características importantes para entender o espaço regional. Descortina-se o Vale do Taquari e seu aspecto religioso que condena a homossexualidade e promove a exclusão social. Constitui-se uma interpretação acerca das (sobre)vivências em pequenas cidades do Brasil, onde os LGBTQI aparentemente sofrem menos violência física; no entanto, há um forte controle social. Em espaços nos quais todos se conhecem, o receio de magoar familiares e amigos pode tornar tudo mais angustiante.

    No fim da década de 1970, algumas notícias evidenciam a presença de travestis nas cidades da região, e a leitura negativa que lhes é atribuída. A partir dos anos 1990, homossexuais e lésbicas ganham o cenário público, mas ainda ficam, sobretudo, nos bastidores. As primeiras vozes de contestação/revelação começam a ser ouvidas, mas a aceitação das famílias é bastante complicada. Nesse cenário, a família desponta como eixo de análise, possibilitando ou não a aceitação de uma pluralidade de existências.

    Trata-se de um trabalho com efetivo papel e relevância social. Mais do que isso, o texto apresenta um olhar sensível para as mães de LGBTQI. Na segunda parte do livro estão transcritas entrevistas que permitem uma aproximação aos sentimentos mais intensos e contraditórios vividos pelas famílias. Ao leitor é permitido mergulhar em cenas em que tudo era muito escondido, porque as famílias não podiam saber da homossexualidade de seus filhos, que passou a ser vivenciada em festas organizadas na cidade de Lajeado. Nas páginas seguintes, conhecemos mães que sabem da orientação sexual dos filhos, mas não querem aceitar, e passam a ver tudo escuro, tudo noite, até o momento em que se tem certeza de que algo precisa ser feito, porque são todos nossos.

    Do texto, emana vida. Emanam sentimentos contraditórios, complexos e sufocados/sufocantes. Um tripé sustentando sentimentos que guiam as ações dessas mães: vergonha/receio do que a sociedade diz; um medo que é legítimo em um cenário de preconceito, intolerância, exclusão e violência; e um grande amor que se transforma em ajuda para os filhos. No texto, surgem mães que acolhem, que esperam que seus filhos e filhas tenham liberdade para amar, liberdade para serem felizes e, sobretudo, liberdade para viver.

    A cortina do preconceito ainda está posta, e é deveras pesada no século XXI. Hoje, esperamos que os holofotes estejam sobre os protagonistas que diariamente empreendem uma luta pela conquista de direitos básicos. Este livro faz parte desse questionamento da heteronormatividade. A visibilidade como estratégia política é uma nova etapa de um lugar a que se pretende chegar, lugar em que a exigência de enfrentamentos diversos para a legitimação do existir não seja mais algo que demande nossa energia e tempo.

    Trata-se de um convite para o debate. Trata-se de uma luta que é política. Trata-se de uma manifestação de/pela vida.

    Boa leitura!

    Janeiro de 2019

    Márcia Solange Volkmer

    Doutora em História (URFGS)

    SOBRE COMO DESARTICULAR AS PORTAS DO ARMÁRIO

    O que eu poderia falar da Jandiro? Conheci Jan há poucos anos. Eu soube da existência dela via conhecidos. Algumas pessoas que sabiam que eu me envolvia com estudos sobre pessoas trans associaram os pontos e me disseram: olha, tem uma pessoa que eu acho que você gostaria de conhecer. Ela está fazendo uma denúncia de quem é homossexual no Vale do Taquari. Pensei: nossa, quem será que está cometendo ‘tamanha atrocidade’ (risos)? Pensei que seria uma inquisidora, cá com meus botões. Outra amiga associou espontaneamente nome e pessoa dizendo: "Ah, a travesti¹ da UNIVATES".

    Note-se que nem para mim nem para ela é demérito ser chamada de travesti. Mas o fato de não ser ofensivo para ambas não licencia ninguém a fazer o mesmo a qualquer sorte. Para tanto há hora, local, sujeitos, intimidade e cuidado, principalmente este último elemento. Fato é que, em 2014, iniciamos uma amizade que me faz aprender até hoje, o que me traz muita felicidade e orgulho.

    Fiquei muito lisonjeado quando recebi o convite da Jan para escrever este prefácio na qualidade de uma psicolouca – referência à minha de-formação – como ela me definiu. Quero deixar claro que Jan e eu temos uma relação de carinho intelectual. Esse carinho ela tem comigo quando falo alguma bobagem, e ela, com generosidade, corrige minhas gafes, evidenciando a relação de privilégio que tenho e que assumo pelo fato de ser cisgênero.²

    Mas chega de rapapé e vamos ao que interessa: o trabalho trata de um interessante apanhado que retrata como eram vistas as questões de gênero e sexualidade em espaços escritos – jornais, revistas, televisão, arquivos policiais e depoimentos de história oral. Jandiro, como historiadora, dá nome aos bois, galinhas e coelhos, de modo que nem Chico Anísio e Renato Gaúcho escaparam.

    O livreto Sociedade à espreita, como ela denomina o documento, é um elogio à memória de quem vivenciou homossexualidades nas três últimas décadas no Vale do Taquari (RS), mais especificamente em Lajeado. Lendo seus parágrafos, mesmo não tendo sido entrevistado, notei de pronto que essa história, analisada de forma ampla e genérica, é também a minha história singular. Note que o verbo espreitar, espiar com atenção de forma secreta, escondida, é uma metáfora que Jan utiliza para refletir sobre como as comunidades vale-taquarienses por muito tempo se colocaram (e por que não dizer que ainda se colocam?) diante das questões de gênero e sexualidade, sobretudo as LGBTQI+. É realmente uma comunidade inteira que vigia, regula, sanciona e pune sujeitos que destoam do modelo cisgênero e heterossexual de existência, empurrando os sujeitos espreitados para dentro do armário, sejam armários identitários, sejam armários da orientação sexual. Nesse sentido, Jan busca desarticular as dobradiças que sustentam as portas desse armário, para que elas não mais se fechem, de modo que possamos tomar esse móvel/existência como possibilidades de diferenças, e não como uma caixa de pandora em que não se sabe o que há dentro. Em outras palavras, temos que ter carinho com o que há dentro do armário.

    É um texto que todas as manas e monas deveriam ler, não necessariamente para concordar com suas reflexões, mas por tratar-se de algo novo, de uma narrativa feita de dentro, de um texto de uma pessoa LGBTQI+ sobre pessoas LGBTQI+, o que nem sempre foi realizado por pessoas identificadas nessas siglas, mas por outras que, por muito tempo, escreveram e produziram discursividade sobre nossotras (sem, no entanto, desmerecer a escrita HT³). Além do mais, a autora é uma pessoa que, se por um lado ousa demonstrar contradições e hipocrisias, também demonstra resistências de sujeitas que muitas vezes foram desqualificadas fora e dentro dos antigos círculos GLS (gays, lésbicas e simpatizantes).

    Nesta continuidade da obra antecessora Um baile misturado, Jan cartografa uma série de episódios que envolvem pessoas LGBTQI+ em diversas situações que foram documentadas. O livro apresenta as reflexões que ela tem realizado acerca das questões que perpassam as amarras cisheteronormativas. É interessante como Jan vai costurando fatos locais, apresentados nos registros que levantou a partir do material coletado, com outros substratos de veiculação em escala estadual e nacional. Isso permite pensar em um contexto que serve de pano de fundo para as reflexões sobre como é possível, ou não, existir, e como essas figuras sobrevivem a esse terreno inóspito. No entanto, sabemos que parte das pessoas identificadas morreram; muitas, vítimas do preconceito e da discriminação sistêmica que uma sociedade de desigualdades produz.

    Jan assevera que o objetivo desta escrita é ser um material para falar com as bases, pensando nos contornos freirianos de uma comunicação significativa que preserve profundidade e clareza, sem preciosismos acadêmicos. Entretanto, ela consegue fazer isso sem perder a mão acadêmica, trazendo alguns conceitos de importantes autores como Judith Butler e Michel Foucault. Minha amiga nos ensina que a necessidade de debater a temática LGBTQI+ no espaço institucional se apresenta por dois motivos: o primeiro, pelo fato de nem sempre as famílias se constituírem como ambientes seguros para crianças, haja vista as características de quem são os abusadores na maioria dos casos de abuso sexual; o segundo motivo é a estatística de morte, de aproximadamente uma pessoa LGBTQI+ por dia, conforme vem contabilizando o Grupo Gay da Bahia (GGB).

    Em alguns momentos, o trabalho parece um texto bomba, pois denuncia, provoca e atiça o debate a partir das pérolas homofóbicas, transfóbicas e putafóbicas que assumem contornos de intolerância. Jamais teria noção do quanto fomos bombardeados, de tão perto, por manifestações preconceituosas, não fosse esse apanhado documental e oral ao qual Jan está se dedicando nestes últimos anos. A moça cumpre a brilhante tarefa de fazer reverberar narrativas homofóbicas que por vezes são tomadas como questão de opinião, evidenciando que opinião e preconceito não são a mesma coisa.

    Mas os preconceitos não se restringem às manifestações leigas. Por isso, Jan reflete como as práticas psi⁴ vão engendrando uma discursividade que estabelece uma relação saber-poder muitas vezes inquestionável, e que vai tecendo um lugar de errância para as letrinhas LGBTQI+,⁵ por meio da análise de artigos jornalísticos produzidos por profissionais de psicologia. Não eram psicoloucas.

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1