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Fosca
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E-book244 páginas4 horas

Fosca

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Sobre este e-book

Fosca é o romance mais famoso do escritor Iginio Ugo Tarchetti. Fosca é uma mulher de rara fealdade que sofre de uma doença grave, mas ao mesmo tempo dotada de uma sensibilidade aguda e de uma cultura refinada. A mulher, embora consciente de sua própria aparência repulsiva, também é ávida por amor. No passado, ela era casada com um caçador de dotes, um certo Ludovico, um vigarista, um jogador e um chantagista, apresentado a ela de boa fé por seu primo (o coronel), que depois de tirar todos os pertences dela e de sua família a tinha abandonado. A menina estava grávida então, mas devido ao seu corpo enfraquecido e doente, ela havia perdido o bebê.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de ago. de 2019
ISBN9788540028814
Fosca

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    Fosca - Iginio Ugo Tarchetti

    49

    Capítulo 1

    Muitas vezes senti-me tentado a escrever essas memórias, mas um sentimento estranho, mistura de terror e angústia, impediu-me de fazê-lo. Profunda insegurança tomou conta de mim. Temo empobrecer o valor e a aparência de minhas paixões ao tentar manifestá-las; temo obrigá-los a fazer o mesmo. Porque é muito fácil dizer o que os outros sentiram– o eco de sensações dos outros reflete-se em nosso coração sem perturbá-los– mas dizer o que sentimos nós mesmos, nossas afeições, nossas febres, nossas tristezas, é tarefa muito maior que o poder da palavra. Nós sentimos que não podemos ser realistas.

    Muitas vezes tenho pensado com alegria na ruína que o tempo vai causando às minhas memórias; menos frequente é a dor com que me recordo. Esquecer é suicidar-se, é renunciar ao único bem que realmente e inconfundivelmente possuímos: o passado. Se pudéssemos esquecer unicamente as alegrias, talvez o esquecimento pudesse ser corretamente desejado; mas somos orgulhosos e ciumentos das nossas dores; nós as amamos, desejamos recordá-las. São elas que compõem a coroa da vida.

    O passado é a medida do tempo que percorremos, a medida daquilo que ainda resta percorrer. Por isso nós o valorizamos; ele valoriza a redução gradativa da existência. A ânsia febril de morrer fatiga inconscientemente o homem. Quem gostaria de ter de volta uma hora, um minuto, um instante da sua vida? Ninguém. Mas ama e se arrepende do passado que teria horror de renovar.

    Escrever sobre o que sofremos e apreciamos é dar à nossa memória a noção da nossa existência. Escrever para reler, recordar e chorar em segredo, é para isso que escrevo.

    Houve tempo em que desejei escrever um livro sobre as coisas que estou prestes a contar, intenção que os fatos da minha vida impediram por muitos anos, mas que nunca foram esquecidos; aconteceu-me já tarde, quando estava velho de engenho e de coração para o mundo da publicidade e das cartas. Não podia aceitar ser portador de lembranças de uma juventude rica de muitas paixões, de uma vida longa e terrivelmente angustiada. Se a arte tivesse encontrado em mim valor igual à grandeza da história que estava prestes a escrever, teria talvez me propiciado um sucesso retumbante. Não por menos me abstive. Colocar na lama da notoriedade o segredo de minhas dores, sacrificando-as às satisfações vazias da fama, teria sido indigno do meu passado. Agora escrevo por mim mesmo. Nunca ousaria violar a única religião que sobreviveu à ruína da minha fé: a religião das minhas memórias.

    Neste velho caderno em que tentei tantas vezes começar minha história há tantas rasuras que não consigo decifrar... Receio que o tempo tenha cancelado da minha alma não poucas lembranças.

    Essas folhas sobre as quais minha alma parou tantas vezes contida por um terror que não podia vencer já me acompanham por cinco anos em cansativas perambulações. Nada está escrito sobre a maioria delas; no entanto, parece que meu pensamento atraiu figuras misteriosas e solenes, tanto que meditei sobre isso, olhando para elas. Faço-o na ansiedade de lê-las e observo com melancolia os pequenos ácaros da carta que fogem ao longo de suas dobras amareladas.

    Sim, agora são cinco anos! As causas do meu terror não cessaram de existir, porque meu coração não é daqueles que esquecem, mas, de qualquer forma, esse terror é dissipado. Sinto agora coragem para lembrar e escrever, agora que tudo deve estar acabado!

    Costumo olhar tudo agora como se estivesse sozinho no mundo, como se as ilusões que me acompanharam tivessem sido coisas vivas e sensíveis que devesse louvar ao meu lado. Nasci só e jamais conseguia ficar só. Mas agora! Experimentei a solidão da sociedade e a tenho procurado com ardor, sempre sem sucesso. É a solidão da paixão, que é horrível!

    Não sei se outros homens tiveram uma experiencia tão rápida e violenta quanto a minha, do período da fé até o desespero; passando da vida agitada da juventude para a vida inerte e desconsolada da velhice. Acredito, porém, que aqueles que amaram pacificamente e com calma enfrentaram serenamente essa passagem.

    Nasci com paixões excepcionais. Nunca soube amar ou odiar pela metade; jamais consegui diminuir minhas afeições ao nível das de outros homens. A natureza fez-me rebelde contra medidas e leis comuns, portanto é justo que até mesmo minhas paixões tenham causas, desentendimentos, fins excepcionais.

    Tive dois grandes amores, vividos diferentemente, mas igualmente fatais e formidáveis. E com eles minha juventude se extinguiu.

    Escrevendo estas páginas, não tenho outra finalidade senão investigar minhas memórias uma vez mais, para não ter que investigá-las nunca mais. Elevo este monumento sobre as cinzas do meu passado, como se coloca uma lápide na sepultura de um ser adorado e perdido.

    Tomei uma grande resolução: antes de retirar-me do mundo, isolar-me no meio da multidão– isolamento mais doloroso que a vasta solidão da natureza– eu queria lembrar mais uma vez, relembrar com plenitude e com fé. Agora estou em paz comigo mesmo. Cessaram as profundas ações de minha alma e a inquietude febril de minha mente. Compreendo agora as causas. Muitos homens não se sentem à vontade com a vida porque ainda não descobriram esse ponto de equilíbrio.

    A dificuldade em encontrar o centro da alma!

    Não vou escrever apenas sobre um desses amores nem falarei do outro e do contraste assustador que fez com o primeiro. Aquele foi apenas um amor feliz. Contá-lo seria o mesmo que repetir a história de todos os afetos e não existe uma só criatura que tenha amado tão pouco para não conhecê-lo. Ou se abandona ou se é abandonado, às vezes desejoso, outras feliz com com o abandono. Assim é o coração humano.

    Mais do que a análise de um afeto, da história de uma paixão de amor, estou talvez diagnosticando uma doença. Esse amor eu não senti, tive-o de súbito. Não sei se existem outros homens no mundo que tenham enfrentado prova como aquela e, nas circunstâncias em que a superei, nem sei se eles teriam sobrevivido.

    Expresso essa dúvida porque muitas vezes me perguntei: Como, em que meio eu sobrevivi?

    Sinto que algo desandou na minha cabeça: não tenho mais noção do tempo, não tenho mais ordem nas minhas ideias, clareza nas minhas memórias. Estes cinco anos se passaram como um instante e como uma eternidade, sem atenção, inexperientes, obscuros, sem subdivisões de dias e épocas. Aquelas festas, aniversários que formavam as mais puras alegrias da minha vida quando era criança retornavam a cada ano. E como eu não notei? O que fiz neste longo espaço de tempo? Por que não os amei mais?

    Não sei mais pensar, não posso mais me fixar em uma ideia por muito tempo, não vejo mais as linhas que separam a verdade do paradoxo. Tudo parece-me agora lógico, natural, possível. Todos os meus pensamentos colidem, ficam confusos, perdem-se em um redemoinho que gira incessantemente na minha cabeça. Aí tudo acaba. Sinto que a consciência de mim mesmo é confusa. Quando escrever a história desse amor, deverei escrever sobre os cinco anos em que durou; será uma história fantástica. Deveria escrever outra ainda mais terrível: seria a história das minhas visões, dos sonhos que povoaram minhas noites durante esse tempo.

    Vou reunir aqui os documentos, as cartas, as notas que guardei. Reconstruirei este edifício com suas próprias ruínas.

    Agora que comecei a não ser cauteloso comigo mesmo estou muito calmo e tranquilo. Minha indiferença garante que as fontes do meu entusiasmo estão esgotadas. Uma coisa me conforta e me deixa orgulhoso: o sentimento da minha frieza, porque meu coração está frio, terrivelmente frio.

    Espero e temo esquecer. Uma noite escura e sombria começou a se estender sobre o meu passado. As ondas do calor do sol que haviam se elevado e convertido em belas nuvens douradas caem como chuva atravessando a fria extensão da área, como lágrimas da natureza.

    Quando o fogo da juventude se extingue desaparece o calor das cinzas; essas permanecem apenas para testemunhar onde a chama um dia ardeu, até que o sopro gelado do tempo não venha também a dispersá-las.

    Capítulo 2

    Seria inútil voltar aos anos que precederam os acontecimentos que estou prestes a contar. Jamais me limitaria a olhar determinado ponto da minha vida; não quero colocar luz sobre um instante. Quem ousaria olhar para o espetáculo inteiro da sua vida, espiar suas dobras tenebrosas, e reter toda a história?

    Minha juventude foi plena, rica e fecunda. A fortuna, para dizer a verdade, não me foi pródiga de seu favores, mas será possível esquecer a fortuna que é a juventude? É a idade da força, da coragem, da ousadia; é quando a gente colhe plenamente os frutos que amadurecem no jardim da vida e leva aos lábios a taça inebriante da felicidade; é aquela idade em se frui de um bem que não se conhece e que nunca mais será experimentado, nunca mais: suave e afetuosa indulgência dos homens.

    Nunca pude afirmar que minha natureza tenha sido mais incompleta do que exuberante, mas, de qualquer forma, estava bem certo de que sobressaía sobre as naturezas comuns.

    A repulsa que sentia, e ainda sinto, por tudo o que é convencional, tudo o que é metódico, não provém da minha educação, mas de uma disposição especial da minha personalidade. Não me importava ser mais ou menos do que os outros homens, era o suficiente ser diferente.

    Em toda a minha vida agi compulsivamente de acordo como pensava. Dizem que os leões se mantém em um estado de febre contínua. Não sei qual médico poderia certificar-se deste fenômeno, como teria feito à cabeceira de um enfermo; mas seja verdade ou não, seja a minha natureza fraca ou forte, não há dúvida de que provei sempre uma espécie de agitação febril e convulsiva semelhante àquela.

    Fui devorado pela vida. Não posso medir minha idade pela forma ordinária do tempo.

    Tinha vinte e oito anos quando os eventos que estou prestes a contar aconteceram. A revolução me arrastou em suas fileiras por algum tempo; quase contra a minha vontade, fui forçado a permanecer no exército onde tinha obtido o grau de oficial. Militava há cinco anos quando, vitimado por grave moléstia cardíaca, tive que tirar longa licença e retirar-me para minha cidade natal.

    As sérias reversões da fortuna impediram-me de mudar minha vida de outra maneira, senão adotando as regras de um regimento e fazendo pompa dos meus trajes de capitão. Digo isso porque a guerra tinha terminado e sentia vergonha muitas vezes daquela inação tão largamente recompensada. Tinha uma pródiga dependência dos cofres do Estado.

    Não falarei agora das dores que haviam provocado minha doença. Isso pertence a outra época da minha vida; foi o fruto de uma paixão que, se não fosse inspirada pelo mais nobre sentimento, haveria de ter coberto de vergonha o meu passado. No entanto, as dores eram enormes e, se não tiveram o poder de matar-me, é porque este poder é frequentemente negado à dor.

    No final de um ano, pedi para retornar à atividade, não porque minha saúde tivesse melhorado, mas porque era-me impossível ficar mais tempo na minha cidade natal. Aquela vida de solidão e meditação haveria de terminar me matando. Aqueles que viveram nas grandes cidades não podem mais se adaptar à vida das aldeias; não podem embaralhar suas verdades, diminuir seus pontos de vista, suas idéias, seus hábitos às proporções mesquinhas e muitas vezes ridículas do povo do campo. Sempre considerei as pequenas aldeias centros de ignorância, de barbárie, muitas vezes também de corrupção. São elas, na minha opinião, que travam o curso da civilização, que fica entre as rodas de sua carruagem. Se todos os pontos habitados da terra fossem Londres, São Petersburgo, Paris, Roma, Berlim, os problemas cujas soluções torturam há séculos a humanidade seriam solucionado em instantes.

    Nem a monotonia daquela vida era o menos doloroso dos meus tormentos. Conhecia todas as ruas dali, todas as casas, todos os habitantes: ruazinhas estreitas e enlameadas, choupanas angustiantes e miseráveis, camponeses rudes e teimosos. Sentia pena de vê-los e dor ainda maior ao ouvi-los. A própria natureza assim tão fraca não tinha atratividade. Perto das aldeias, até a natureza parece sofrer, é áspera e pigmeia, sofre de impotência e raquitismo; dir-se-ia que falta algo como a força e o perfume. Os bosques de Boulogne, de Volksgarten, de Thiergarten encontram-se próximos de Paris, Viena, Berlim.

    O homem sente, como as plantas, a influência da atmosfera em que vive. Eu me vi estéril, empobrecido, desperdiçado. Fosse efeito da doença, fosse influência daquela triste e sombria estada, fui completa e miseravelmente transformado. Uma melancolia profunda, uma falta de esperança cheia de gelo e ceticismo tinha se apoderado de mim. Não sentia mais algum arrependimento do passado nem qualquer trepidação do futuro, futuro que, de certo modo, eu havia evitado. Tinha formado a mais triste, a mais negra e a mais desoladora imagem; tinha forçado a minha alma a aceitá-la sem reclamar e, por isso, estava em paz com o único objeto que ainda poderia me aterrorizar: o fantasma deste futuro desconhecido.

    Muitas vezes pensei, durante esses anos, naqueles dias cheios de desolação e desespero, naquele longo inverno de cinco meses, passado entre as paredes de alguns cômodos, sem ver outra face de um homem além da minha. Recordo-me ainda de tudo o que golpeou de alguma forma os meus sentidos: a ampla janela coberta de teias de aranha, o piar dos pardais que bicavam nos beirais das calhas, o lodo da neve que derretia, o som dos tamancos de ferro dos camponeses no pavimento lamacento da rua, sensações únicas, vozes únicas que me mostravam como eram esses seres vivos e sensíveis. Guardei memórias daqueles dias em um diário escrito sob a impressão dessas tristezas secretas do coração, que não devo agora reportar.

    Quando saí daquele lugar e parei na primeira cidade que conheci em minha jornada, comparei meu rosto com o de outros homens e perguntei com medo se eu era o mesmo de antes, se me tornara diferente deles, se sobreviveria àquele dia.

    Havia aprendido a desesperar-me precocemente. Não previa a aurora luminosa que iria surgir ainda na minha juventude e que deveria raiar em breve!

    Capítulo 3

    Tenho falado de minha terra natal.

    Lamento que estas páginas não estejam destinadas a vir à luz, a fim de tornar público o ódio que guardei por longo tempo no meu coração, a única coisa que o tempo e a reflexão não fizeram mais do que confirmar e aumentar.

    Amo essa terra, essa grande mãe, essa grande pátria comum; amo tudo sem distinção de solo e clima; amo como uma parte de mim, eu que sou apenas uma pequena parte dela.

    Tenho muitas vezes sentido suas atrações, o apelo que faz aos seus átomos, às suas criaturas, aos homens, sua partícula animada. Na primavera, quando o sol arremessa seus raios, nesse período de febre, de ardor, de fecundidade, quando do seio do amor irrompem as famílias de insetos e de ervas, quando ela sorri com um sorriso cheio de encantos e flores, muitas vezes sinto, como uma espécie de fúria, o desejo de penetrar no seu peito; fico propenso a abraçá-la; e tenho gritado: «Você me quer, você me chama, eu venho, eu venho". Sim, amo a terra, esta bela terra; tenho certeza de que será leve sobre o meu túmulo, quando ela gentilmente apertar meu peito com seus braços de pederneira e raízes; mas há um ponto que odeio: esse ângulo frio e sombrio onde nasci.

    É de lá que comecei a lançar um olhar sobre o mundo, para ver como ele é triste e ingrato; lá, onde eu nunca pude ter nem uma nobre alegria nem uma nobre tristeza; foi lá que conheci os homens que me ensinaram a odiar os homens; é lá, finalmente, que não pude amar.

    Teria desejado levar as cinzas dos meus entes queridos, porque o último elo que ainda me conectava à minha pátria havia sido rompido. Fui torturado por longo tempo por essa ideia insistente e melancólica. Parecia que aquelas relíquias adoradas não poderiam ter paz lá embaixo, porque eu mesmo sinto que até meus ossos tremeriam se sepultados sob aquela torrão desagradável.

    Capítulo 4

    Não sei dizer porque fui para Milão. Não sei explicar essa resolução, pois não queria ir.

    Foi no final de abril e lembro-me de ter caminhado pelo campo por longo trecho de estrada. Duas cotovias cantavam mais agitadas do que nunca no céu que me parecia alto e sereno. Tinham subido tão alto que meus olhos não podiam vê-las; estavam longe uma do outra e, julgando pelo canto, pareciam estar imóveis; parece que teriam sabido encontrar esta forma de descansar. Seus gorjeios tinham algo carinhosamente íntimo, como uma série

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