O Bom Crioulo
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Sobre este e-book
Amaro, um imponente e lúbrico marinheiro negro, escravo fugido de uma fazenda do interior do Rio de Janeiro, apaixona-se por Aleixo, um jovem e ingénuo grumete branco, que conhece no seu navio de guerra. Mas o destino separa-os e, quando Amaro finalmente reencontra Aleixo, as suas piores suspeitas confirmam-se.
O Bom Crioulo foi recebido em 1895, data da sua publicação, com escândalo pela crítica literária e silêncio pelo público, devido à frontalidade e ao erotismo, pouco usuais para a época, da sua abordagem a temas tabu, como o sexo inter-racial e a homossexualidade em ambiente militar. O romance foi esquecido na primeira metade do século XX mas voltaria a ser publicado na segunda metade do mesmo século, tendo posteriormente sido traduzido para o inglês, espanhol, alemão, francês e italiano. Atualmente, faz parte do programa de leituras do exame vestibular de muitas universidades brasileiras.
Nesta edição, fez-se uma revisão da ortografia utilizada na versão gentilmente cedida pelo Ministério da Educação do Brasil, à qual se acrescentaram anotações para enquadramento dos leitores contemporâneos.
Adolfo Caminha
Adolfo Ferreira dos Santos Caminha, nasce em Aracati, no dia 29 de maio de 1867, mas muda-se com a família para o Rio de Janeiro, ainda na infância. Com 16 anos, entra para a Marinha de Guerra e, cinco anos mais tarde, vai viver para Fortaleza onde se apaixona por Isabel de Paula Barros, a esposa de um alferes, que abandona o marido para viver com Caminha. Na sequência do escândalo, vê-se obrigado a deixar a Marinha e passa a trabalhar como funcionário público. Morre de tuberculose, prematuramente, no Rio de Janeiro, no dia 1 de janeiro de 1897, aos 29 anos.A sua primeira obra publicada foi Voos Incertos (1886), um livro de poesia. Em 1893, publica A Normalista, romance em que traça um quadro pessimista da vida urbana. Usa as suas experiências e observações de uma viagem aos Estados Unidos em 1886, para escrever No País dos Ianques (1894). No ano seguinte, apesar do escândalo, firma a sua reputação literária ao publicar O Bom Crioulo. Colabora com a imprensa carioca, em jornais como Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio, e funda o semanário, Nova Revista. Já tuberculoso, lança o seu último romance, Tentação, em 1896. A sua obra densa e trágica, repleta de descrições de perversões e crimes, é pouco apreciada na época, mas considerada canónica nos nossos dias.
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O Bom Crioulo - Adolfo Caminha
O Bom Crioulo
Edição revista e anotada
Adolfo Caminha
INDEX ebooks
2015
Ficha técnica
Título: O Bom Crioulo
Autor: Adolfo Caminha
Fonte do texto: Portal Domínio Público do Ministério de Estado da Educação (Brasil)
Revisão: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas
Edição 1.00 de 26 de janeiro de 2015
Copyright © João Máximo e Luís Chainho, 2015
Todos os direitos reservados.
Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.
INDEX ebooks
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Lisboa, Portugal
ISBN: 978-989-8575-59-3 (ebook)
Introdução
O Bom Crioulo é considerado um dos expoentes da vertente naturalista do realismo brasileiro, que se caracterizou por opor ao sentimentalismo exagerado do romantismo os impulsos biológicos e sociológicos que condicionam a natureza humana, propondo-se descrever a vida tal como ela é. Aos personagens e cenários idealizados do romantismo, em que belas donzelas morrem de amores pelos seus bravos príncipes em ambientes idílicos, responde o realismo naturalista com as fortes pulsões biológicas humanas, como a fome e o sexo, oferecendo-nos retratos vivos em que não surgem disfarçadas as mazelas da realidade, por vezes miserável, cruel e abjeta.
Em O Bom Crioulo, Adolfo Caminha escolhe para personagem principal Amaro, um imponente e lúbrico marinheiro negro, escravo fugido de uma fazenda, que se apaixona por Aleixo, um jovem e ingénuo grumete branco do seu navio de guerra. Para além de ter sido uma das primeiras obras literárias brasileiras a apresentar um negro como personagem principal, foi a primeira a ousar escolher como tema principal a homossexualidade. Robert Howes refere mesmo que O Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, em conjunto com O Barão de Lavos, de Abel Botelho, e O Senhor Ganimedes (1906), de Alfredo Gallis, "são das primeiras obras literárias modernas numa língua europeia a tratar abertamente o tema da homossexualidade masculina. (…) Em contraste com o tratamento encoberto dos romances ingleses da época, os romances portugueses eram bastante mais abertos no retrato que faziam do sexo e da sexualidade".
Mas o livro de Adolfo Caminha destaca-se ainda por outro motivo: é o único dos três citados que é quase acrítico em relação à homossexualidade. Enquanto o barão de Abel Botelho é um pederasta que desencaminha rapazes jovens e inocentes para seu prazer sensual, e Alfredo Gallis apresenta o seu livro como um alerta às raparigas casadoiras, para que se previnam de ligações a homens que as desonrarão com os seus vícios, e aos pais, para que não aceitem para os seus filhos uma educação errada e maricas
, contrapõe Caminha uma narrativa surpreendentemente livre de moralismos exagerados e de homofobia.
O Bom Crioulo foi recebido com escândalo pela crítica literária e com o silêncio do público, devido à ousadia de abordagem de temas tabu, como o sexo inter-racial e a homossexualidade em ambiente militar, com uma frontalidade e erotismo pouco usuais para a época. O romance foi esquecido na primeira metade do século XX mas voltaria a ser publicado na segunda metade do mesmo século, tendo posteriormente sido traduzido para o inglês, espanhol, alemão, francês e italiano. Atualmente, faz parte do programa de leituras do exame vestibular de muitas universidades brasileiras.
Adolfo Ferreira dos Santos Caminha, nasce em Aracati, no dia 29 de maio de 1867, mas muda-se com a família para o Rio de Janeiro, ainda na infância. Com 16 anos, entra para a Marinha de Guerra e, cinco anos mais tarde, vai viver para Fortaleza onde se apaixona por Isabel de Paula Barros, a esposa de um alferes, que abandona o marido para viver com Caminha. Na sequência do escândalo, vê-se obrigado a deixar a Marinha e passa a trabalhar como funcionário público. Morre de tuberculose, prematuramente, no Rio de Janeiro, no dia 1 de janeiro de 1897, aos 29 anos.
A sua primeira obra publicada foi Voos Incertos (1886), um livro de poesia. Em 1893, publica A Normalista, romance em que traça um quadro pessimista da vida urbana. Usa as suas experiências e observações de uma viagem aos Estados Unidos em 1886, para escrever No País dos Ianques (1894). No ano seguinte, apesar do escândalo, firma a sua reputação literária ao publicar O Bom Crioulo. Colabora com a imprensa carioca, em jornais como Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio, e funda o semanário, Nova Revista. Já tuberculoso, lança o seu último romance, Tentação, em 1896. A sua obra densa e trágica, repleta de descrições de perversões e crimes, é pouco apreciada na época, mas considerada canónica nos nossos dias.
Nesta edição, fez-se uma revisão da ortografia utilizada na versão gentilmente disponibilizada pelo Ministério da Educação do Brasil, à qual se acrescentaram anotações para enquadramento da leitura contemporânea.
Bibliografia:
Leandro Henrique Aparecido Valentin, A recepção crítica e a representação da homossexualidade do romance Bom Crioulo, de Adolfo Caminha (em Mafuá, Revista de Literatura em Meio Digital, ano 11, n.º 20, Florianópolis, 2013, ler aqui)
Adolfo Caminha e Bom Crioulo (adaptado de Wikipedia em português, ler aqui e aqui)
Robert Howes, Cartoon and Literary Images of Homosexuality in Nineteenth Century Portugal (em Depicting Desire: Gender, Sexuality, and the Family in Nineteenth Century Europe: Literary and Artistic Perspectives, de Rachael Langford, Peter Lang, 2005, págs 133-147)
O Bom Crioulo
1
A velha e gloriosa corveta — que pena! — já nem sequer lembrava o mesmo navio de outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!...
Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspeto guerreiro que entusiasmava a gente nos bons tempos de "patescaria". Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas até à primitiva pintura do bojo.
No entanto ela aí vinha — esquife agourento — singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha, não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalítico de asas abertas sobre o mar...
Havia pouco entrara na região das calmarias: o pano começava a bater frouxo, mole, inchando a cada solavanco, para recair depois, com uma pancada surda e igual, no mesmo abandono sonolento; a viagem tornava-se monótona; a larga superfície do oceano estendia-se muito polida e imóvel sob a irradiação meridional do sol, e a corveta deslizava apenas, tão de leve, tão de leve que mal se lhe percebia o movimento.
Nem sinal de vela na linha azul do horizonte, indício algum de criatura humana fora daquele estreito convés: água, somente água em derredor, como se o mundo houvesse desaparecido num dilúvio medonho..., e no alto, lá em cima, o silêncio infinito das esferas obumbradas pela chuva de ouro do dia.
Triste e nostálgica a paisagem, onde as cores desmaiavam à força de luz e a voz humana perdia-se numa desolação imensa!
Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol, tranquilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelado reluz fortemente, encandeando a vista.
De vez em quando há um grande rebuliço: a mastreação geme, como se fora desprender-se toda, o pano bate com força de encontro às vergas, chocam-se cabos com um ruidozinho seco, e ouve-se o cachoeirar da água no bojo da velha nau.
— Aguenta! diz uma voz.
E volta o sossego e continua a pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim...
Já os primeiros sintomas de indolência refletiam-se no semblante da gente, convertendo-se em bocejos e espreguiçamentos de sesta, e ainda ficavam tão longe as montanhas da costa e os carinhos da família!...
Escasseavam os géneros, e o regímen da carne-seca e das conservas em lata aproximava-se ameaçadoramente, causando apreensões à marinhagem.
Tinham dado onze horas na sineta de proa.
O tenente que estava de quarto no passadiço conferiu o relógio de algibeira, um belo cronómetro de ouro comprado em Toulon, torceu o bigode, passou uma vista de olhos no aparelho, e, dirigindo-se para a espada que descansava junto ao mastro, numa voz clara um pouco metálica:
— Corneta!
Era um oficial distinto, moço, moreno, os olhos vivos e inteligentes, grande calculista, jogador de sueca e autor de um Tratado Elementar de Navegação Prática.
Ninguém a bordo o excedia na procura dos logaritmos. Calculava de olhos fechados, e senos e cossenos acudiam-lhe à ponta do lápis de um modo admirável. Era, invariavelmente, o primeiro que achava a hora meridiana. Tornara-se conhecido logo ao sair da escola pelo seu entranhado amor às matemáticas e à vida naval. Como guarda-marinha deixava-se ficar a bordo nas dias de folga, somente para não perder o hábito.
Inimigo de terra, preferia o far-niente do seu camarote, ali ao pé dos livros e das fotografias marítimas, ao movimento esterilizador e absorvente dos cafés e dos teatros.
— Corneta! repetiu, carregando o semblante numa sombria expressão de constrangimento.
Outras bocas foram transmitindo a ordem até que surgiu, correndo, a figura exótica de um marinheiro negro, de olhos muito brancos, lábios enormemente grossos, abrindo-se num vago sorriso idiota, e em cuja fisionomia acentuavam-se linhas caraterísticas de estupidez e subserviência.
— Pronto! disse levando a mão ao boné com um jeito marcial.
— Toca mostra, ordenou o tenente.
Às primeiras notas da corneta, límpidas e sem eco no silêncio do mar alto, houve logo um estranho bulício em todos os recantos da corveta. — Agora, os marinheiros, que descansavam à proa, olhavam-se por cima dos ombros com ar desconfiado. Na tolda e pelas cobertas o movimento foi-se acelerando à proporção que o toque finalizava, sobressaindo no atropelo a voz dos guardiães: — Sobe, sobe — tudo pra cima! — de envolta com um barulho de ferros que vinha dos porões.
O mestre de armas
, cabrocha pedante, muito cheio de si e dos seus galões reluzentes, ia enfileirando a marinhagem por alturas, num exagero metódico de instrutor de colégio, arredando uns para colocar outros, advertindo estes porque não traziam a camisa abotoada e aqueles porque não tinham fita
no boné, ameaçando estoutro de levá-lo à presença de seu
tenente porque recusava-se a perfilar...
Oficiais começavam a aparecer em segundo uniforme — boné e dragonas —, arrastando as espadas, mirando-se de alto a baixo, apertados no talim de pano azul, por cima da farda.
Com pouco estava tudo pronto, marinheiros e oficiais — aqueles alinhados a dois de fundo, num e noutro bordo, estes a ré, perto do mastro grande, em atitude respeitosa de quem vai assistir a um ato solene.
Tinha-se feito silêncio. Uma ou outra voz segredava baixinho, timidamente. E agora, no silêncio da mostra, é que se ouvia bem o cachoeirar da água no bojo da corveta caturrando...
— Aguenta!
Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na sua farda nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito.
Era homem robusto de feições e presença nobre, olhar enérgico, muito moreno, desse moreno carregado, cor de bronze, que o sol imprime nos homens do mar, bigode largo e compacto, levemente grisalho,