Hy Brasil: a construção de uma nação
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Hy Brasil - Vanete Santana-Dezmann
pesquisa.
Prefácio
Uma viagem histórica
Em meados do século XVI a França tentou ocupar terras portuguesas no que é hoje o Brasil. Como aconteceu posteriormente também na América do Norte, os franceses se aliaram a grupos indígenas para realizar seu intento de metrópole colonial. No caso do projeto da França Antártica
, os aliados dos franceses foram os poderosos tupinambás, em oposição aos tupiniquins, dos quais se aproximaram os colonizadores portugueses, primeiros ocupantes europeus desta parte do continente sul. O resultado foi uma série de escaramuças no episódio conhecido como Confederação dos Tamoios.
É neste quadro geral que se inserem as aventuras do mercenário alemão Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás na região de Ubatuba, em sua segunda vinda para terras brasileiras. Na aldeia em que permaneceu nove meses, Hans sofreu a expectativa de ser devorado em ritual canibalístico, enquanto participou de alguma forma da realidade da tribo tupinambá, que observou atentamente. Após ser resgatado e viver uma série de peripécias, regressou à Europa e publicou em 1557 o relato de suas duas viagens ao Brasil. O livro foi um grande sucesso editorial, mostrando pela primeira vez para um público amplo e ávido as descrições da vida e costumes indígenas, sob um olhar europeu. A primeira edição em português ocorreu só em 1892, mas várias gerações de brasileiros conhecem essas aventuras de Hans Staden desde 1927 principalmente através da adaptação para um público infantil feita pelo famoso escritor Monteiro Lobato.
Vanete Santana-Dezmann, hoje radicada na Alemanha, se debruça há muitos anos sobre o livro escrito por Hans Staden. Um cotejo crítico de diversas edições alemãs e sua crítica estão aqui apresentados para um público amplo, com um olhar revigorante sobre o tema. A partir da mítica ilha Hy Brasil (que dá nome à presente obra), a autora revê etapas determinantes da formação da nação, do estado, da língua e literatura do Brasil. Para isto, não hesita em desnudar mitos fundadores, como o descobrimento
pelos portugueses em 1500 ou o bom selvagem
rousseauniano, assumido pelo nativismo literário do século XIX, em que se celebrava uma terra de palmeiras onde cantam os sabiás.
A seguir, é esmiuçada a interpretação da obra de Hans Staden apresentada por autores alemães que prevaleceu ao longo de séculos, inclusive sua utilidade para a defesa religiosa do luteranismo, destacando seus apelos pela salvação da morte e sua obtenção como resultado da ação divina. Discute-se ainda a sua suposta coragem em face da adversidade, culminando com a leitura feita por Avé-Lallemant em 1857.
Em contraposição a esta corrente ufanista, Vanete defende o espírito que presidiu a transposição feita por Monteiro Lobato. A esse respeito é oportuno lembrar que o conjunto da obra infantil de Lobato vem sendo atacada por um ativismo que se pretende politicamente correto e vê em seus livros um suposto racismo e outros defeitos, motivando uma reescrita por autores contemporâneos, dispostos a exercer essa censura para escoimar conteúdos inadequados
para as crianças atuais. No entanto, no presente livro a autora enfatiza a crítica de Lobato à etnografia de Hans Staden, seu questionamento do olhar europeu e destaca a valorização por ele empreendida dos nativos da terra que seria o Brasil. Assume relevância, portanto, a pergunta que Lobato introduz, de quem seria mais selvagem
, os índios ou os europeus? Dando voz ao colonizado, o relato lobatiano adentra a crítica ao caráter pessoal do marinheiro alemão e acaba por relativizar a verdade histórica
por ele pretendida no século XVI.
Por essa introdução a questões candentes de nossa realidade e outros merecimentos, é bem-vinda esta obra de Vanete Santana-Dezmann, desejando que suscite novas discussões e reavaliações de temas muito presentes em nosso cotidiano.
Gildo Magalhães
Professor Titular de História
Universidade de São Paulo
Sumário
Prefácio - Uma viagem histórica
Introdução - Um mar no meio
Capítulo I - O Brasil das palmeiras e dos sabiás
Capítulo II - Hans Staden: o bom-europeu
Considerações Finais - Uma maneira tipicamente brasileira de descascar laranjas
Referências Bibliográficas
Anexo I - População de Portugal entre 1422 e 1890
Anexo II - População do Brasil entre 1550 e 1920
Anexo III - Edições de Warhaftige Historia até 1942
Sobre a autora
Sobre a Viseu
Introdução
Um mar no meio
Agora que estou chegando ao estrangeiro é que sei como é doce o amor à pátria. Resta saber o que vem a ser a Pátria. Se me pergunto com seriedade, ela é feita de coisas pequenas e banais. Pátria é esse mar batendo no cais do Recife. É a visão noturna da Guanabara. É a carnaúba drapejando suas folhas teimosas na sequidão do Ceará. São os ossos que nossos avós deixaram para fecundar, com lembranças, um chão até ali estrangeiro. No final, o conluio de nossas três raças tristonhas tem como produto maior a saudade. Pátria é isso: uma coisa capaz de despertar saudade, até tornar-me o que sou hoje – um filho da saudade. (Trevisan, 1994, p. 286-287)
Figura 1. Mapa da costa brasileira
Até recentemente, parece ter sido natural a representação das culturas de regiões periféricas como um refletor das ideias forjadas na Europa Ocidental. Assim, a imagem criada por Hans Staden, aventureiro germânico¹ do século XVI, sobre o Brasil em seu livro Warhaftige Historia² e reforçada pelo viajante germânio do século XIX Robert Avé-Lallemant em sua adaptação do livro de Staden – Hans Staden von Homberg bei den brasilienischen Wilden oder die Macht des Glaubens und Betens³ – raramente foi contestada. Uma vez que Staden afirmou estar contando a história verídica de uma terra de selvagens nus e canibais chamada Brasil, não só a região à qual se referia, mas todo o país que ela viria a compor, passou a ser representada como uma terra exótica onde cobras e selvagens enfeitados com penas se misturam pelas ruas. Noentanto, o Brasil, ou o que hoje chamamos Brasil, é uma criação do século XIX. O que Staden escreveu a respeito das terras onde esteve na segunda metade do século XVI só pode servir para se referir àquelas terras, naquela época, quando não havia nem unidade territorial ou cultural, nem autonomia política que pudesse caracterizar nosso país.
A adaptação para a literatura infantil que Monteiro Lobato fez do livro de Staden em 1927 – Aventuras de Hans Staden – apresenta-se como um caso exemplar de desconstrução da imagem do bom-europeu
, recontando a história de Staden a partir da perspectiva de integrantes da tribo tupinambá⁴ e seus descendentes. De herói branco – imagem autoconstruída e reforçada ao longo de séculos –, nas mãos de Lobato, Staden passa a um covarde que só escapou de ser devorado em um ritual antropofágico por chorar e implorar a seu Deus que o salvasse.
Considerando os referidos livros de Staden e Avé-Lallemant como corpus e tendo como pano de fundo suas condições de produção, as páginas que se seguem procuram demonstrar como as relações interculturais entre Brasil e Europa foram recontextualizadas pelo escritor brasileiro, dando ensejo à reflexão ora apresentada sobre a formação de uma identidade nacional brasileira e de um estado-nação chamado Brasil.
1 Como a Alemanha só passou a existir a partir de 1871, este termo não será aqui utilizado em referência a territórios que vieram a integrá-la. Da mesma forma, o termo que designa a nacionalidade alemã não será utilizado. O termo germânico, embora não totalmente adequado, designará aqui os naturais daqueles territórios.
2 História Verídica
3 Hans Staden, de Homberg, com os selvagens brasileiros ou o poder da fé e da oração
4 Tribo de índios que habitava o litoral da região sudeste do atual Brasil e da qual Staden foi prisioneiro.
Capítulo I
O Brasil das palmeiras e dos sabiás
Insisto em que trata-se de um país que enfeitiça – completou Lallemant, cheio de convicção. – E receio ter que admitir que, uma vez tendo vivido lá, a gente não se recupera mais do Brasil. (...) – Ah, trata-se de um país de natureza encantadora – retrucou Lallemant, saudoso. – Lá a luz é mais luz. As cores parecem mais vistosas do que em qualquer outra parte do mundo que conheço. Até o branco fica mais intenso. E