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Batalha fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)
Batalha fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)
Batalha fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)
E-book596 páginas8 horas

Batalha fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)

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Sobre este e-book

Batalha fraterna tem como objetivo analisar o projeto de Reforma da Igreja idealizado por um episcopado combativo que, fortalecido pelas discussões do Concílio de Trento, procurou reforçar seu poder num momento marcado pelo desequilíbrio e pelas tensões entre as diversas instituições que vigiavam sobre as práticas religiosas. A partir da figura do célebre Arcebispo de Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires e seus conflitos com as autoridades que poderiam interferir em sua jurisdição, este estudo examina uma faceta distinta da Contrarreforma, uma proposta que destacava o episcopado como protagonista e caracterizava-se pela clemência no modo de lidar com delitos religiosos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de out. de 2019
ISBN9788546211050
Batalha fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)

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    Batalha fraterna - Juliana Torres Rodrigues Pereira

    Historia

    PREFÁCIO

    [...] se o pecado é desconhecido pela comunidade, não se pode proceder à punição do irmão, mas somente à emenda. Com esta frase pode-se resumir o princípio da chamada correção fraterna defendida pelo renomado Frei Bartolomeu dos Mártires em tempos de avanço da ação inquisitorial em Portugal. Nome de relevo na última fase do Concílio de Trento, o dominicano nascido em Lisboa em 1514 fez rápida carreira eclesiástica, chegando ao prestigioso arcebispado de Braga em 1559. Tratava-se então da mais importante e poderosa diocese do reino em termos territoriais e fiscais e sua concessão já indicava a confiança e destaque conquistados junto à Casa Real portuguesa, na qual desfrutou da intimidade da rainha D. Catarina e do cardeal D. Henrique, respectivamente viúva e irmão do rei recém-falecido, D. João III.

    Essa projeção social teve por base o respeito derivado de seus altos conhecimentos doutrinários e teológicos, do qual dão mostras fartas os inúmeros escritos produzidos ao longo de esmerada formação, iniciada no final da década de 1520. Comentador, dentre outros, da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino desde a década de 1540, sua participação na última fase do Concílio Católico, iniciada em janeiro de 1562, consolidou a importância adquirida na Igreja portuguesa. Todo esse poder ganhou expressão nas batalhas travadas em Trento e na diocese de Braga, sobretudo depois de sua volta a Portugal, em 1564 quando Bartolomeu dos Mártires cumpriu a etapa mais combativa, resoluta e arriscada de sua trajetória na mitra bracarense. Literalmente arriscada, pois o frei teve sua vida ameaçada quando a conjuntura política que levou Portugal a perder a independência para Espanha parecia anunciar a derrota também do princípio da autoridade máxima dos bispos que sempre defendeu.

    Batalha fraterna, que Juliana Torres Rodrigues Pereira ora nos apresenta, esmiúça em detalhes preciosos esse grave e complexo quadro, no qual se incluíam os debates entre teólogos e religiosos sobre a ação da Igreja em tempos de graves questionamentos ao catolicismo; as críticas aos métodos e princípios da ação do Tribunal Inquisitorial para correção dos desvios de fé; o enfrentamento do poder dos inquisidores, os quais deveriam estar submetidos aos bispos em seus domínios; as disputas de autoridade reivindicada pelos bispos como protagonistas da reforma da Igreja. Este último embate chegou ao seu ponto máximo quando questionou o poder do próprio papado sobre o ius divinum que instituíra o poder dos bispos, sem qualquer intermediação necessária. Munido dessas convicções, foi personagem central da implementação das decisões do Concílio de Trento em Portugal, organizando o congênere em Braga já em 1564. Frei Bartolomeu dos Mártires pretendia liderar as mudanças que entendia necessárias para melhor aproveitamento da ação pastoral. As dificuldades encontradas, no entanto, indicaram os imensos desafios a enfrentar, fosse na esfera religiosa ou política.

    O livro de Juliana Pereira, fruto de sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 2017, analisa todas essas questões, baseada em vasta documentação, coletada em arquivos portugueses, espanhóis, italianos, incluindo fontes do Archivo della Congrezione per la Dottrina della Fede, do Archivum Generale Ordinis Praedicatorum e o Archivio Segreto Vaticano, acervos documentais ainda pouco utilizados por estudiosos brasileiros. Ampara-se ainda em bibliografia igualmente diversificada e atual, com a qual trava diálogos importantes, expandindo o conhecimento sobre diversos temas que atravessam todo o trabalho, mas concentrando-se na defesa de tese desafiadora: a do antagonismo entre bispos e Inquisição em Portugal, sendo Frei Bartolomeu dos Mártires um dos mais aguerridos defensores da supremacia dos bispos nos territórios sob sua jurisdição.

    A expressão máxima dessa disputa aconteceu em Braga, onde o frei desafiou a ação da Inquisição em seus domínios: defendia que só ele, com sua autoridade de bispo, estaria apto a examinar os casos de desvio e encaminhá-los, ou não, para julgamento do Tribunal. Além da defesa de seu poder jurisdicional, batia-se contra os métodos inquisitoriais, contrários à correção fraterna, silenciosa e discreta, oposta ao modus operandi inquisitorial que privilegiava a publicidade punitiva e a difusão da pedagogia do medo.

    Mas Frei Bartolomeu dos Mártires foi além da fronteira religiosa. O arcebispo de Braga desafiou até mesmo os poderes temporais do reino, voltando-se contra a cobrança de impostos e a ação da justiça secular em território que considerava sob seu absoluto domínio. Considerava-se verdadeiro Senhor de Braga, com poderes espirituais e temporais concedidos diretamente por Deus, não havendo por isso razão para submeter suas decisões nem mesmo ao rei. Chama atenção o respeito que mereceu de D. Sebastião, mesmo quando desafiado pelo bispo em matéria fiscal, o mesmo não se podendo dizer dos inquisidores. Com estes travou embate acirrado, a indicar aspecto ainda pouco estudado sobre as divergências entre religiosos acerca da criação e funcionamento do Tribunal Inquisitorial no mundo ibérico. E digo ibérico, porque boa parte das críticas de Frei Bartolomeu dos Mártires atingia também o Tribunal espanhol e voltava-se contra a conversão apressada dos judeus, sem qualquer preparo ou ensinamento da doutrina católica. O Senhor de Braga não via nos judeus ou na comunidade recém conversa do reino a principal ameaça à Igreja. Eram os reformados e luteranos os inimigos a combater com rigor implacável, e desafiou a Inquisição ao selecionar número diminuto de cristãos novos para inquirição do Tribunal na diocese bracarense. E o Senhor de Braga não se contentou em apenas confrontar a Inquisição, fez mais. Desenvolveu em seu território um modelo alternativo para lidar com desvios em matéria religiosa, no qual defendia a supremacia do poder episcopal, afronta explícita aos princípios e métodos da Inquisição.

    Juliana Torres Rodrigues Pereira nos apresenta, portanto, tese inovadora sobre a relação entre os bispos e a Inquisição portuguesa, demonstrando com robusta base documental outro viés da disputa política e religiosa que envolveu a criação e a consolidação do Tribunal Inquisitorial português. Mas se não bastassem tantas lutas, Frei Bartolomeu dos Mártires testemunhou a grande turbulência política do reino quando da disputa sucessória pelo trono português, depois da derrota de D. Sebastião no Marrocos. Entre 1578 e 1582, quando o bispo de Braga obteve a licença para deixar a mitra, já com 68 anos, viu-se envolvido nas disputas armadas que opuseram os defensores do rei espanhol, Felipe II, como herdeiro do trono português e D. Antônio, Prior do Crato, português e adversário na sucessão de Portugal. Em Braga, os dois grupos se enfrentaram, com vantagem para o grupo espanhol: a casa do bispo foi cercada e ele ameaçado de morte. Sem alternativa, Bartolomeu dos Mártires aderiu a Felipe II. A análise deste episódio abre, como em tantos outros temas já mencionados, novas perspectivas interpretativas sobre as alianças e adesões estabelecidas em momento dramático da política portuguesa no contexto que levou o reino à União Ibérica, permitindo, mais uma vez, reavaliar posições já consagradas.

    Assim, ao acompanhar a trajetória de Frei Bartolomeu dos Mártires, passando por sua formação, ascensão, atuação no Concílio de Trento, exercício do poder episcopal em Braga até recolher-se ao convento dos dominicanos em Viana, Juliana Torres nos permite acompanhar não só aspectos do cotidiano dos debates doutrinais, religiosos, políticos e até pessoais defendidos pelo Senhor de Braga, mas nos põe diante de questões da macro história do período: dos embates internos da Igreja aos obstáculos dos domínios locais impostos à formação dos Estados Modernos. Ainda sem unidade territorial, fiscal ou militar, os Estados enfrentaram forças contrárias à centralização, estando os poderes da Igreja entre os mais fortes adversários de processo que foi, hoje sabemos, incontrolável e vitorioso. Frei Bartolomeu dos Mártires e sua Batalha Fraterna esteve na fronteira desses dois tempos, militava ainda por uma Igreja triunfante guiada pela autoridade episcopal, que encarnou com determinação e ousadia. Seu projeto estava com os dias contados, a mudança já ia avançada quando morreu, em 1590. Eis o amplo quadro que Juliana Torres Rodrigues Pereira nos apresenta, combinando micro e macro história, história da Igreja, história política e um personagem fascinante: teólogo e bispo, foi também homem político. Por todas essas qualidades, Batalha Fraterna é livro inovador e inspirador. Dele muitas outras teses podem surgir, seguindo ou desviando o curso das ideias aqui defendidas. Nada pode espelhar melhor a qualidade de um trabalho do que antever as sementes que fará germinar.

    Jacqueline Hermann

    Professora Associada da UFRJ

    INTRODUÇÃO

    Pouco depois da celebração das cortes de Lisboa de dezembro de 1562, durante as quais a regência de Portugal foi passada a D. Henrique, os bispos do reino expressaram suas preocupações e requisições ao cardeal por meio de um elenco de apontamentos, datados de 17 de fevereiro de 1563. O documento debatia diversas questões, como a tutoria de D. Sebastião, o governo do reino e, como não poderia deixar de ser, problemas acerca do governo e a jurisdição sobre o espiritual, o que certamente incluía o Tribunal do Santo Ofício e sua ingerência sobre o episcopado. Os Apontamentos foram assinados pelos antístites de Lisboa, Ceuta, Portalegre, Tânger, Angra, Lamego e Algarve. O arcebispo de Braga e os bispos de Leiria e Coimbra encontravam-se então em Trento.

    Dentre as queixas dos prelados relativas ao Tribunal, destaca-se o breve Cum audiamos,¹ obtido por D. Henrique em 1561, autorizando o inquisidor-geral a avocar a si qualquer causa de fé que corresse nos auditórios episcopais ou através de superiores das ordens religiosas. Tal prerrogativa concedida aos inquisidores enfraquecia o poder dos ordinários de julgar tais matérias, dando precedência à jurisdição inquisitorial:

    não podemos deixar de nos queixar muito a Vossa Alteza de um breve que se houve pela inquisição para que se avocassem a ela todas as causas diante nós, cada vez que lhes parecesse, por que ainda que vinha em nome do Senhor Cardeal Infante, e para por seu mandado se fazer, como Sua Alteza se não possa ocupar em o conhecimento disto, fica ao parecer e vontade dos inquisidores, e não pode deixar de fazer alguma confusão tirar-se aos prelados a jurisdição para os que comumente na idade e qualidades não podem ser mais que eles e como não é de Direito comum [...].²

    Os prelados opunham-se à perda de sua jurisdição ao mesmo tempo que exaltavam a dignidade episcopal, que não podia ser subjugada pela autoridade de inquisidores delegados uma vez que pelo direito comum e canônico se afirmava o poder dos antístites de corrigir e julgar os delitos contra a fé.

    O breve figurava então como valioso privilégio para o Tribunal. Como será indicado, a historiografia é unânime em afirmar que a concessão papal não invalidava a jurisdição episcopal e a autoridade dos bispos em matérias de heresia foi mantida, de acordo com legislação do período medieval.³ Antes do estabelecimento do Tribunal, a matéria vinha regulada no reino pelas Ordenações Afonsinas (1446) e posteriormente também pelas Ordenações Manuelinas (1512-1513), e suspeitos de judaizar eram julgados em alguns auditórios eclesiásticos.⁴ Cada prelado usava de mais rigor ou misericórdia. A este respeito, é possível observar variadas tendências. Enquanto alguns chegavam a questionar a validade do batismo forçado e absolviam os suspeitos de práticas judaicas, outros os condenavam até mesmo à fogueira.⁵ As constituições diocesanas posteriores ao estabelecimento da instituição permaneciam apontando como tarefa dos prelados a vigilância pela pureza da fé e solicitando que a eles fossem denunciados os suspeitos de heresia; nos éditos de visitas pastorais, figurava esta mesma ordem,⁶ e suspeitos de heresia continuaram sendo julgados pela justiça episcopal.⁷

    A bula de fundação conferia ao Tribunal português o poder de julgar todos aqueles que tivessem cometido, favorecido ou acobertado práticas de criptoislamismo, luteranismo, feitiçaria e bigamia, proposições e blasfêmias, além, é claro, da prática do criptojudaísmo, objeto privilegiado da ação inquisitorial.⁸ O documento não só não anulava a autoridade ordinária como ressalvava os casos em que os prelados devessem por direito intervir, mesmo que houvessem se abstido anteriormente, e declarava como o sistema de voto conjunto definido pela bula Multorum querela⁹ deveria ser obedecido, garantindo o direito de participação dos prelados em várias fases do processo inquisitorial.¹⁰ Da mesma forma, o primeiro Regimento do Santo Ofício, de 1552, afirmava, nos artigos 47 e 49,¹¹ acatar a jurisdição dos bispos sobre as heresias e o princípio do voto colegial imposto pela Multorum Querela, questões reafirmadas no Regimento de 1613. Desta maneira, o breve de 1561 era das primeiras expressões legais do projeto hegemônico da Inquisição de controle sobre as matérias heréticas, e os mitrados do reino reclamavam em defesa de sua autoridade.

    O protesto se expressava em diversos pontos do documento. Merece destaque também o pedido de regulação e vigilância sobre os tribunais: pediam que estes fossem visitados periodicamente e que da comitiva de visita fizessem parte prelados velhos e experientes.¹² Ponto em que fica evidente o enaltecimento da autoridade episcopal é a reclamação acerca da obrigatória contribuição da mesa episcopal para as rendas da Inquisição. Ao requisitarem tal intervenção, realçavam o direito episcopal de inquirir e julgar, anterior a qualquer tipo de Inquisição delegada:

    havendo tantos meios para que, sem as [casas arcebispais] diminuírem, se a isto pode prover, nem os bispados por razão são tão obrigados a isso, porque nós somos inquisidores ordinários e próprios, e somente para melhor execução são estes outros delegados como ajudadores de tamanha obra, e assim ajudadores que muitas vezes, e em muito tempo de nossos bispados julgaram um, dois, ou pouco mais, e sendo estas duas casas que há tanto proveito a estes arcebispados de Évora e Lisboa, o são em tão poucos casos aos distantes delas [...].¹³

    Tal assertiva a respeito do poder episcopal frente ao avanço do Tribunal do Santo Ofício foi possível devido a dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, cabe ressaltar o conturbado momento de instabilidade política aproveitado pelos bispos que, reunidos em nome do episcopado português, evitando assim represálias e punições individualizadas, valeram-se da mudança na regência do reino e das disputas de corte que a impulsionaram e levaram ao conhecimento da Coroa suas insatisfações. E, se o momento se fazia propício no reino devido a estes conflitos, em uma conjuntura mais ampla não poderia haver tempo mais favorável às requisições dos bispos. Do início de 1562 ao fim de 1563 reunia-se em Trento o episcopado católico em assembleia marcada pela afirmação e expansão da dignidade episcopal. Enaltecendo o bispo como figura chave para a reforma da Igreja e dilatando seus poderes sobre o clero e os diocesanos, afirmando-o como autoridade máxima em seu território, o episcopado emergia não só como ofício fundamental para a salvação das almas e a reforma da cristandade, mas também como força política. O início da década de sessenta marcava o ápice do poder episcopal.

    Somente levando em consideração tal quadro de enaltecimento e expansão da autoridade dos antístites é possível compreender a atuação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires como arcebispo de Braga. Profundamente marcado por uma cultura teológica dominicana gestada na Universidade de Salamanca, caracterizada pela valorização da catequese e da caridade, na qual se formou, e pela espiritualidade inaciana, com a qual teve um contato mais próximo justamente quando alargava suas relações políticas, Bartolomeu dos Mártires destacou-se como um dos bispos considerados como modelo por sua dedicação ao múnus pastoral e também por esta espiritualidade que a motivava e permitiu que desenvolvesse uma concepção diferenciada do ofício do pastor, do governo de sua arquidiocese e de seus diocesanos. Destaca-se em sua atuação como ordinário a afirmação e uso de sua autoridade como pastor e soberano em seu território. Cabia a ele vigiar, corrigir e conduzir seus diocesanos pelo caminho da salvação. O exercício da autoridade se dava fundamentalmente através do controle sobre o território e o policiamento dos fiéis. Sua jurisdição sobre a grei marcava seu poderio como mitrado e era, ao mesmo tempo, fruto dele.

    Dada a importância que a vigilância e a correção tinham em seu governo pastoral, torna-se evidente o incômodo do arcebispo com a instituição inquisitorial e o avanço do Santo Ofício sobre a autoridade e o direito de julgar os fiéis por delitos religiosos dos bispos. Esta oposição, ainda que velada e expressa pela sutileza da construção da alternativa, fruto da exaltação da dignidade episcopal, era característica de uma concepção singular do múnus pastoral e da correção de delitos que privilegiava o segredo e a reintegração do pecador/herege à comunidade. D. Frei Bartolomeu dos Mártires constituiu, no arcebispado de Braga, uma via alternativa à justiça inquisitorial.

    Assim, este livro, que se iniciou como uma pesquisa sobre as relações entre D. Frei Bartolomeu dos Mártires e o Santo Ofício português, acabou se alargando e abrangendo uma série de problemas correlatos. As relações entre Inquisição e episcopado deixaram de ser a questão principal a que esta obra buscou responder, tornando-se uma investigação sobre aquilo que parece ter sido a grande inquietação do antístite: a afirmação da autoridade episcopal e a concepção tridentina de Reforma da Igreja. Uma mudança de orientação conduzida pelas fontes e pelas questões colocadas a elas. A animosidade de Bartolomeu dos Mártires para com o Santo Ofício só pode ser compreendida quando vista como parte de um conflito mais amplo que dizia respeito à afirmação de seu poder como arcebispo e à compreensão do episcopado como figura condutora da Reforma, soberana sobre seu território e seus fiéis, que o levou a enfrentar qualquer autoridade que ameaçasse cruzar sua jurisdição, fosse ela o cabido, o papado ou a Coroa, em defesa de um modelo particular de governo das almas e orientação sobre as matérias de fé. Sem deixar de ser o objeto desta pesquisa, o arcebispo de Braga tornou-se também uma espécie de fio condutor que levará o leitor a atravessar as diversas facetas da Reforma da Igreja, tendo sempre acima de todas elas o episcopado.

    ***

    Como uma questão que ganhou destaque apenas recentemente, a afirmação da autoridade episcopal e suas relações com o poder inquisitorial foram abordadas apenas de forma tangencial nos estudos clássicos sobre o estabelecimento do Santo Ofício em Portugal.

    Alexandre Herculano, em sua História da Origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, escrita na década de 1850, tentou reconstituir os longuíssimos jogos diplomáticos entre Portugal e Roma, abordados por ele como atravessados pela corrupção, a traição, a cobiça e o fanatismo religioso, em clara filiação às tendências historiográficas do momento.¹⁴ Segundo Herculano, a bula papal de 17 de dezembro de 1531 que tratava do estabelecimento da Inquisição em Portugal refreava as pretensões de D. João III. A questão da supremacia dos inquisidores sobre os prelados, requisitada pelo monarca, teria sido tratada de maneira muito vaga na bula, sem que ficassem claros os limites entre as duas jurisdições. Esta falta de clareza beneficiaria, segundo Herculano, a própria Cúria Romana, uma vez que a ela competia a resolução destes conflitos.

    Fortunato de Almeida criticou a obra de Herculano a cada página do capítulo dedicado à Inquisição em sua monumental História da Igreja em Portugal,¹⁵ escrita durante as primeiras décadas do século XX. Segundo Almeida, Herculano seria tendencioso ao afirmar a corrupção da Cúria e o fanatismo religioso que havia se abatido sobre Portugal e, em especial, sobre D. João III. O autor explicou o estabelecimento da Inquisição em Portugal como uma tentativa de fortalecimento do poder real, ressaltando o interesse nas riquezas dos cristãos-novos, explicitado pelo rigor com que o monarca se impôs à saída dos conversos e de seus bens. Segundo Almeida, nenhuma das bulas papais sobre o estabelecimento do Tribunal expressava a revogação dos poderes dos ordinários para proceder contra matérias de heresia. Ao contrário do que desejava D. João III, a perseguição aos hereges deveria ser partilhada entre inquisidores e bispos, como constava em legislação medieval e foi confirmado pelas bulas papais sobre a Inquisição portuguesa. O autor destacou como muitos bispos prosseguiram, então, com os inquéritos em matérias de heresia, como sugerem as constituições diocesanas elaboradas após 1536, que tratavam dos procedimentos episcopais nestes casos, e como o breve Cum audiamos, de 14 de abril de 1561, que dava ao inquisidor-geral a faculdade de avocar a si todas as causas de heresia, teria sido motivo de grande reclamação por parte dos prelados nos apontamentos às cortes de 1562 e de conflitos que perduraram até o século XVIII, com a indevida anulação da autoridade episcopal.

    Já segundo Antônio José Saraiva,¹⁶ o Tribunal teria sido um instrumento político de classe em defesa da estrutura senhorial da sociedade portuguesa que, como uma instituição de foro misto, reforçava o poder real. A perseguição aos cristãos-novos, força propulsora de uma nascente burguesia nacional, teria sido expressão de um problema social e não religioso.¹⁷ A captação das riquezas dos cristãos-novos teria sido de grande importância, como já havia ressaltado Fortunato de Almeida, pois, segundo Saraiva, criava novas fontes de renda para o alto clero que, em sua maioria, provinha dos filhos segundos da nobreza. De acordo com Saraiva, os inquisidores tinham supremacia sobre as autoridades eclesiásticas, uma vez que o inquisidor-geral poderia chamar a si qualquer processo de heresia movido por algum bispo.

    O historiador italiano Giuseppe Marcocci, em estudo que versa sobre as relações entre bispos e inquisidores na vigilância pela ortodoxia, publicado em 2004, enfatizou o caráter conflituoso destas até fins do século XVI, destacando como o episcopado por vezes optou por agir de maneira autônoma em defesa de sua própria autoridade. Fazendo uso de seus direitos de julgar matérias de heresia, complexificavam o equilíbrio das forças em disputa pelo controle sobre as consciências neste período inicial de afirmação do Santo Ofício.¹⁸ Cabe destacar também sua interpretação apresentada em artigo intitulado A fundação da Inquisicão em Portugal: um novo olhar,¹⁹ em que alertou para a importância da crescente influência de um círculo de conselheiros avessos às tendências tolerantes de religiosos e humanistas, os chamados teólogos da corte. A eles seria devida a política que Alexandre Herculano atribuiu ao suposto fanatismo de D. João III. A ascensão deste bloco teria promovido uma mudança na atmosfera cultural e religiosa do reino, e a partir de então as diversas facetas do humanismo lusitano passaram a ser temidas, em especial por seu diálogo com os debates teológicos acerca da legitimidade do batismo forçado e da criação de um tribunal que reprimisse os desvios, nos quais Bartolomeu dos Mártires tomou parte.

    Marcocci, cujos passos segui nesta obra, defendeu em diversos trabalhos²⁰ a ideia de que Frei Bartolomeu dos Mártires teria desenvolvido uma ação autônoma em matéria de heresias marcada pela animosidade com relação ao Santo Ofício, atentando para a importância de sua formação dominicana observante e do período em que viveu em Évora junto aos inacianos como pilares de sua espiritualidade. Apesar de nunca ter havido um conflito aberto, a atuação de Bartolomeu dos Mártires em Braga constituía um modelo alternativo para a uniformização da fé que ia de encontro ao modus operandi inquisitorial, uma espécie de inquisição pastoral.

    Posição diversa apresentou o historiador português José Pedro Paiva em Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal,²¹ segundo o qual, com a consolidação da autoridade inquisitorial, os bispos teriam, na prática, deixado de julgar matérias de heresia em seus auditórios, apesar de se ter mantido o direito para que o fizessem. A partir de 1560, a Inquisição teria conquistado tal hegemonia, sob a administração de D. Henrique, que os prelados passaram a encaminhar os suspeitos de heresia para o Santo Ofício, selando a relação de conformidade e parceria que teria unido bispos e inquisidores desde o princípio. De acordo com Paiva, devido a uma conformidade ideológica, que se devia em parte ao fato de que os inquisidores eram recrutados dentre os bispos, e ao medo da desagregação da cristandade, consolidou-se uma espécie de divisão de tarefas entre bispos e inquisidores: enquanto aos primeiros cabia garantir a instrução dos fiéis, através da catequese e da atividade pastoral, aos inquisidores cabia reprimir os erros e dissidências, através de punições severíssimas e públicas. Até que esta conformidade se estabelecesse, houve conflitos pontuais, que diziam respeito à jurisdição de alguns casos de foro misto, à precedência em rituais e cerimônias públicas, ao pagamento de pensões à Inquisição e a alguns prelados que atuaram de maneira alternativa, em defesa da autoridade episcopal, ou defenderam que a luta pela ortodoxia deveria se dar de maneira mais branda – no entanto, a autoridade e a existência do Tribunal nunca teriam sido questionadas. Segundo Paiva, D. Frei Bartolomeu dos Mártires pode ser incluído neste último grupo de bispos que optaram por vias alternativas, uma vez que, apesar de ter adotado uma postura de defesa de sua autoridade arquiepiscopal, contava com o favor e a confiança do inquisidor-geral cardeal D. Henrique e nunca teria contestado abertamente a autoridade do Tribunal, colaborando com ele em diversos momentos.

    No entanto, como sublinhou Ângela Barreto Xavier, as inúmeras indisposições entre bispos e inquisidores e a sugestão de vias corretivas mais doces por alguns prelados, elencadas em dezenas de páginas pelo próprio autor, contribuem para que se questione a ideia de que a harmonia e a colaboração tenham caracterizado as relações entre os diversos e heterogêneos grupos encarregados da vigilância sobre a fé.²² A proposta panorâmica da obra relega as discórdias e as oposições, que por seu caráter muitas vezes velado e dissimulado podem ser interpretadas como conflitos pontuais, ao posto de conturbações que não teriam significado um questionamento à existência, à importância e à hegemonia do Tribunal. Todavia, a análise de casos particulares pode oferecer contrapontos enriquecedores a respeito de como os bispos do reino não estiveram necessariamente dispostos à colaboração e a executar o papel de justiça complementar, ao menos até que tamanha interferência nos poderes episcopais encontrasse algum equilíbrio, ainda que este fosse caracterizado pela liderança do Santo Ofício.

    Se a questão das relações entre inquisidores e episcopado tornou-se objeto de interesse historiográfico recentemente, isto se deve em grande parte à filiação à obra de Adriano Prosperi. Em Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários,²³ publicado em 1996, Prosperi analisou a atuação da Igreja Católica de disciplinamento das consciências, para o qual confluíam diferentes diretrizes. Missionários, inquisidores e confessores eram os protagonistas da reforma e do projeto de normalização das práticas religiosas através da direção das consciências, com propostas e métodos diversos que muitas vezes acabavam por colidir. Prosperi concluiu, no entanto, que a via do policiamento acabou se sobrepondo às demais. O estabelecimento da Inquisição romana moderna em 1542 abalou o equilíbrio de forças na Igreja, uma vez que o Santo Ofício alcançou poderes que feriam os privilégios de bispos e confessores. Enquanto a heresia se configurou como ameaça de cisão e sedição, como perigo iminente a ser combatido, conferiu-se aos inquisidores um papel hegemônico.

    Também nos planos territorial e humano, a Inquisição sobrepunha-se à diocese. Com a intenção de alcançar as áreas mais distantes e ermas, o Santo Ofício muniu-se de uma rede de vigários que se fez presente em cada paróquia, e não raro o vigário do Santo Ofício e o paroquial eram a mesma pessoa. Nas localidades onde a Inquisição não conseguiu penetrar, obrigava-se o bispo a cumprir o ofício de inquisidor. A partir de fins do século XVI, as redes inquisitorial e diocesana estavam sobrepostas. Com relação aos delitos perseguidos, o Santo Ofício atravessou a jurisdição diocesana, julgando também questões de moral, cujo foco recaía sobre o mundo das festas e das peças teatrais, a blasfêmia e a superstição. O poder episcopal se via constantemente minado pelo Santo Ofício, e em fins do século XVI estaria, segundo Prosperi, derrotado.

    O seminal trabalho de Prosperi estimulou a pesquisa sobre a autoridade da justiça eclesiástica, as relações entre episcopado e inquisidores e as críticas e propostas alternativas aos Tribunais do Santo Ofício. A historiadora italiana Stefania Pastore analisou em Il vangelo e la spada,²⁴ publicado pela primeira vez em 2003, o estabelecimento do Santo Ofício nos reinos de Espanha, evidenciando os conflitos e resistências que se contrapunham à imagem construída a partir de fins do século XVI de uma Inquisição onipotente. O projeto de Inquisição pastoral do jerônimo Frei Alonso de Oropesa, a defesa do princípio da correção fraterna nos debates travados entre teólogos e juristas, as discussões tridentinas a favor do poder dos bispos de absolver heresias no foro da consciência e a atividade de prelados ciosos de sua autoridade, como Pedro Guerrero, arcebispo de Granada, foram utilizados como argumento para demonstrar que o estabelecimento da Inquisição castelhana não teria sido a única e nem a primeira solução sugerida para o combate às heresias, e que o processo de afirmação desta instituição enfrentou ali inúmeras dificuldades esquecidas na construção do mito da temida Inquisição espanhola.

    A questão dos conflitos jurisdicionais foi também abordada em trabalhos dedicados à análise da atuação inquisitorial em recortes geográficos mais reduzidos, diante da tradição de autonomia que conservavam alguns dos territórios sob a tutela de Castela.

    Em seu estudo sobre a Inquisição na Galícia, Jaime Contreras analisou os conflitos entre o Santo Ofício e as autoridades ordinárias. Os problemas e a hostilidade que a Inquisição enfrentou no período que se seguiu à primeira tentativa de instalação do Tribunal em Santiago eram nítidos no parecer do visitador do Santo Ofício Pero Carlos ao Conselho da Suprema bem como nas cartas do inquisidor Quijano de Mercado. Os bispos seguiam julgando casos reservados ao Santo Ofício e os cabidos embargavam a tentativa do Tribunal de monopolizar as indicações para seus cargos vacantes. As queixas chegaram ao inquisidor-geral, que considerou necessária a intervenção direta da Coroa. A querela se deu também com os priores dos monastérios, que tinham poder espiritual e temporal sobre suas jurisdições e exerciam justiça em matérias de fé, inclusive de heresia.²⁵

    Ricardo Garcia Cárcel ressaltou também os conflitos jurisdicionais que ganharam repercussão devido a um édito do bispo de Valência Tomás de Villanueva, de 1552, que ordenava a delação de casos de heresia a ele mesmo. Mesmo após a morte de Villanueva os conflitos prosseguiam. Em 1561, o então arcebispo Francisco de Navarra, ex-inquisidor, se desentendia com o Santo Ofício acerca da prisão de um diocesano e, pouco tempo mais tarde, em 1564, questionava-se ainda o édito de Villanueva.²⁶

    A respeito do projeto de uniformização da fé na América portuguesa, Bruno Feitler analisou os meios de ação do Santo Ofício em Pernambuco (XVII-XVIII), enfatizando a importância da colaboração da alta hierarquia eclesiástica local para que a Inquisição pudesse alcançar o controle das consciências em menor escala. Fosse através das visitas pastorais, do envio de suspeitos para o Santo Ofício ou da publicação de éditos inquisitoriais, tencionava-se criar um ambiente de medo e culpabilização que atingisse os comportamentos e consciências individuais.²⁷

    ***

    Para analisar o governo de Bartolomeu dos Mártires sobre o arcebispado de Braga e sua comunicação com o Tribunal, esta obra foi dividida em três partes. Na primeira, o foco recaiu sobre Frei Bartolomeu dos Mártires como clérigo regular e mestre de Teologia. Com ênfase no período anterior à nomeação de Bartolomeu dos Mártires para o arcebispado de Braga, que apresenta inúmeras questões de grande relevância para a compreensão de suas relações com o Santo Ofício e de sua posterior atividade episcopal, no primeiro capítulo procurei dedicar especial atenção à sua formação intelectual e ascensão dentro da Ordem dos Pregadores e à forma como sua atividade docente o inseriu, pouco a pouco, no mundo da política e das relações cortesãs. Apesar dos poucos indícios sobre o jovem Bartolomeu, tentei seguir as atividades do noviço, atentando para os ares de reforma que, ao que tudo indica, faziam-se presentes na formação dos que tomavam o hábito dominicano e, posteriormente, as do mestre no Convento da Batalha. Por fim, tratou-se de uma nova fase de seu professorado em Évora em que foram favorecidas as possibilidades de relações com a corte e com outros religiosos de renome que viriam a culminar em sua nomeação para a mitra bracarense. No segundo capítulo, encontra-se a análise de seus primeiros escritos teológicos, nos quais expressava algumas ideias fundamentalmente contrárias ao procedimento inquisitorial e à política religiosa da Coroa. As opiniões do dominicano acerca do debate sobre a correção fraterna, do batismo forçado e do sigilo confessional expressaram suas reservas ao modus operandi inquisitorial e ao avanço do Tribunal sobre o sacramento da penitência e evidenciaram sua concepção diferenciada sobre os delitos contra a fé.

    A segunda parte foi dedicada à ação de Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento e aos polêmicos debates em que se envolveu, a partir dos quais se consolidou uma concepção particular acerca do poder episcopal como sustentáculo e impulsionador da Reforma. Evidenciou-se, assim, a assembleia como palco do embate entre episcopado, papado e Inquisição, do qual os bispos saíram com consideráveis vitórias. A participação de Frei Bartolomeu dos Mártires foi analisada levando-se em conta sua importância como um dos principais nomes do grupo que lutava por uma reforma profunda da Igreja com base na afirmação da figura do bispo como protagonista. Investigamos a atuação do dominicano na luta pela afirmação do ius divinum, seu desempenho na Congregação do Index, como parte do grupo que lutou pela afirmação da ortodoxia da obra de Frei Bartolomé Carranza e as intervenções no debate sobre a reforma e a defesa do poder episcopal de absolvição das heresias no foro da consciência contra os agentes da Coroa e do Santo Ofício.

    Por fim, a última parte teve como foco as relações do arcebispo com autoridades a ele superiores ou às quais ele devia se reportar. Mais especificamente, foram objeto de análise a forma como o arcebispo lidava com a Coroa, a Inquisição e o cabido da sé de Braga. Optei, contudo, por partir de um olhar distinto em um capítulo dedicado à construção de uma determinada memória do arcebispo como personagem célebre do catolicismo quinhentista, orientada pelo esforço de glorificação de sua imagem pela Ordem dos Pregadores e pelo projeto de canonização do dominicano, na intenção de perceber as contradições entre História e Memória. Em seguida, passei à análise do conflito entre ordinário e o clero catedralício pela aplicação da reforma tridentina, para o qual o ordinário utilizou todos os recursos disponíveis para fazer valer sua autoridade sobre os capitulares. Disputa que se expressou pela ação do cabido e do arcebispo junto à Coroa e a Roma, pelas querelas acerca do direito de visitação de determinadas igrejas e pelas sucessivas concórdias entre as duas partes, além de problemas pessoais do arcebispo com membros do cabido. A questão da catequese e do ensino da doutrina foi também tema de um capítulo especial, no qual se indicou como estes eram elementos basilares do sistema alternativo construído por Bartolomeu dos Mártires em Braga. Neste segmento, o objetivo foi enfatizar a importância da dicotomia entre conhecimento e ignorância como chave para compreender a ação corretiva do arcebispo. Foi neste sentido que analisei a concepção do antístite sobre o múnus pastoral, evidenciando sua preocupação em caracterizar o pastorado como um exercício cujo fundamento seria justamente o ensino, a orientação possível graças à proximidade entre pastor e ovelhas, similar a uma autoridade governativa. Sobre a ação de Bartolomeu dos Mártires a respeito da correção, tema do capítulo seguinte, examinei a relação entre delito e punição, atentando para o uso diferenciado das penas públicas ou secretas impostas aos que infringiam as leis da Igreja Católica e os padrões da moralidade e para as disparidades entre as penitências atribuídas a cada delito, na tentativa de compreender como o arcebispo lidava com cada categoria de pecado ou heresia. Pelos registros remanescentes que foi possível consultar, questionamos a prática da correção pela justiça episcopal e o escasso encaminhamento de casos para o Tribunal como indícios de uma atuação diferenciada, um modelo alternativo de governo sobre os diocesanos baseado na caridade e no compromisso do pastor que se exercitava especialmente através da proximidade, do ensino e da emenda não infamante. A afirmação da autoridade sobre o território e os fiéis atrelava-se à compreensão do múnus episcopal como o dever do pastor de conduzir seu rebanho à salvação, com enorme impacto sobre suas relações com instituições que tentassem cruzar sua jurisdição, como o Santo Ofício. Da mesma forma, suas relações com a Coroa portuguesa, tema do capítulo final, evidenciavam a tendência do arcebispo a elevar a dignidade episcopal e afirmar sua soberania sobre o território e os diocesanos utilizando-se das tradições e privilégios que a mitra bracarense lhe conferia. Uma relação que se tornaria completamente diferente com a drástica mudança do cenário político a partir de 1578.

    Assim, procuramos contribuir com os estudos acerca das relações entre as autoridades, religiosas ou seculares, que detinham jurisdição sobre matérias de fé. Através do estudo do caso de D. Frei Bartolomeu dos Mártires foi possível analisar questões mais amplas acerca da reforma projetada pela Igreja Católica e dos diversos caminhos que esta poderia ter tomado. Um caso extremamente particular que pode complexificar os debates sobre o tema.

    E se o arcebispo de Braga desconfiava da escrita dos historiadores de seu tempo, afirmando que

    Não estão livres de culpa, entretanto, os historiadores que por inveja ou defeituoso sentimento são movidos, marcam o vício de alguém, especialmente quando maculam alguma linhagem nobre, em memória perpétua a colocam,²⁸

    tem início esta análise que dificilmente seria perdoada.

    ***

    Todos os documentos foram transcritos para a grafia moderna e as abreviaturas desdobradas, deixando no idioma ou grafia original apenas algumas expressões e trechos que perderiam sua força caso modificados. As traduções são livres e de minha autoria, sendo as exceções apontadas nas referências.

    ***

    Tão importante quanto explicitar o ponto de partida deste trabalho e as principais questões que desejo discutir aqui é expressar minha gratidão para com aqueles que me ajudaram e estiveram presentes ao logo do processo.

    Agradeço muitíssimo a minha família, em especial a minha mãe Neide e meu irmão José pelo apoio, a compreensão e a paciência fundamentais para que eu conseguisse transformar minhas impressões sobre Bartolomeu dos Mártires em uma obra como esta.

    Os resultados aqui apresentados somente puderam ser alcançados devido ao grande investimento público no desenvolvimento desta pesquisa. Nesse sentido, agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelas bolsas concedidas e suporte financeiro sem os quais este trabalho não teria sido possível. Fundamental para o desenvolvimento desta investigação, dada a enorme importância da instituição e de seus mestres para as questões que pretendi aqui levantar, foi a pesquisa nas bibliotecas da USAL. A Ana Paula Megiani, José Manuel Santos e Pedro Puntoni, agradeço a oportunidade de pesquisar na Universidade de Salamanca, no âmbito do Convênio celebrado entre esta Universidade e a Universidade de São Paulo, intitulado O Brasil na Monarquia Hispânica: Cultura Política, Negócios e Missionação durante a União das Coroas Ibéricas e a Guerra de Restauração (1580-1668) – Área Humanidades, Edital 2011 (História).

    A Laura de Mello e Souza, agradeço a orientação e o estímulo intelectual para a escrita desta obra. A Giuseppe Marcocci, que desde o início deste trabalho esteve disposto a dialogar e a me ajudar, sou muito grata por sua generosidade e por ter me recebido na Itália e aberto para mim as portas dos arquivos romanos. A Jacqueline Hermann, agradeço as lições, a amizade e a confiança que depositou em meu trabalho desde o início. A Bruno Feitler, Carlos Zeron, e Luís Filipe Silvério, pelas valiosas leituras e questões que me permitiram repensar minhas conclusões nos momentos de inflexão. Como um trabalho que se fez em parte entre os arquivos romanos, agradeço a todos que me auxiliaram nesta bela empreitada, em especial a Irene Fosi, Silvia Rizzo e Vincenzo Lavenia. Aos funcionários de todos os arquivos e bibliotecas em que pesquisei, em especial àqueles do Arquivo Distrital de Braga e do Archivio Segreto Vaticano, sempre gentis e solícitos. Agradeço a todos os interlocutores ou estudiosos de temas afins à minha pesquisa que de alguma forma contribuíram para a construção deste trabalho: Adone Agnolin, Aldair Carlos Rodrigues, Ana Isabel Buescu, Ana Isabel Lopes Salazar, Angelo Assis, Beatriz Catão, Benedeta Albani, Célia Tavares, Caio Boschi, Filipe Duret, Gerardo Cisneros, Hugo Ribeiro, Jaime Gouveia, José Pedro Paiva, Leila Algranti, Luiz Fernando Lopes, Marcus Reis, Maria Leônia Chaves, Natália Ribeiro, Patrícia Faria, Pollyanna Muniz, William Martins e Yllan de Mattos.

    Notas

    1. Breve do Papa Pio IV ao cardeal infante D. Henrique, 14 abr. 1561, publicado em: CDP, tomo. IX, p. 233.

    2. ANTT – Manuscritos da Livraria, n. 129, f. 61-61v.

    3. Acerca do primado episcopal sobre as matérias de heresia no período que antecede a criação do Tribunal português, há um ponto de controvérsia. Pouco depois da fundação do Tribunal em Castela, D. João II teria ordenado, em 1487, a criação de um corpo de inquisidores que contava com regulares, juízes seculares e bispos. Isto não teria privado os bispos de sua jurisdição. Maria José Ferro Tavares interpreta o caso como presença de uma Inquisição delegada medieval em Portugal. Tavares ressaltou o caráter transitório que esta teria e sua relação com os tribunais diocesanos, além de ter destacado ainda que as nomeações não teriam sido feitas pelo papado, mas pela Coroa. De acordo com Soyer, a ordem vetava aos bispos o poder de perseguir a heresia dos conversos, hipótese refutada por Giuseppe Marcocci. Tavares, Maria José. Judaísmo e Inquisição. Estudos. Lisboa: Presença, 1987, p. 113-115; Soyer, François. Was there an Inquisition in Portugal before 1536? Iacobus, n. 19-20, p. 177-205, 2005; Marcocci, Giuseppe. A fundação da Inquisição em Portugal: um novo olhar. Lusitania Sacra, 23. Lisboa, p. 17-40, 2011, p. 23.

    4. Paiva, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 20; Marcocci, Giuseppe. op. cit., p. 23-24.

    5. Para um panorama dos casos. Tavares, Maria. op. cit., p. 149-150; Paiva, José Pedro. op. cit., p. 24-28.

    6. A partir de fins do século XVI, no entanto, passava a aparecer também nas constituições a possibilidade de se denunciar aos inquisidores, ao invés de ao clero secular, sendo a primeira menção deste tipo nas de Coimbra, 1591. Ibid., p. 33-41.

    7. Mais uma vez, para um panorama dos casos remetemos ao trabalho de Paiva: Ibid., p. 350-385. O processo episcopal possibilitava mais chances de defesa para os réus. Não havia a imposição do segredo, as acusações eram conhecidas pelo réu e seu procurador, testemunhas de defesa eram ouvidas, e era possível apresentar um número considerável de contraditas. Além disso, o procedimento episcopal expressava a existência de vias mais misericordiosas, fundadas na concepção de que a quase ausência de instrução religiosa desqualificaria a maioria das práticas e ideias que poderiam ser consideradas delitos contra a fé. Pereira, Isaías. Um processo inquisitorial antes de haver Inquisição. Anais da Academia Portuguesa de História, 2ª. série, n. 27, p. 193-277, 1981; Paiva, José Pedro. op. cit., p. 27-28; Marcocci, Giuseppe. I custodi dell`ortodossia. Inquisizione e chiesa nel Portogallo del Cinquecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2008, p. 63-64, 188-198; Muniz, Pollyanna; Mattos, Yllan. Introdução. In: Idem. Inquisição e Justiça Eclesiástica. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 7-30.

    8. Posteriormente a sodomia e a solicitação viriam também a se tornar delitos de jurisdição inquisitorial.

    9. Esta bula teve como objetivo sanar as dúvidas oriundas de sucessivas disposições acerca da jurisdição sobre delitos contra a fé, evitando parcialidades ou duplicidade de julgamento, regulando definitivamente a questão. Em 1311, o Concílio de Viena tornava obrigatório através deste decreto, publicado nas Clementinas em 1317, o acordo entre bispos e inquisidores delegados para, nos procedimentos em juízo, definir as sentenças interlocutórias (isto é, a tortura), ou finais. Esta seria a regra que valeria na tratadística posterior. Acerca das disposições sobre o assunto: Brambilla, Elena. Alle origini dell’Sant’Uffizio. Penitenza, confessione e giustizia dal medioevo al XVI secolo. Bologna: Il Mulino, 2000; Prodi, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

    10. A bula está publicada em: Pereira, Isaías (org.). Documentos para História da Inquisição em Portugal (século XVI). Lisboa, 1987, v. 1, p. 23-27. Para o trecho citado, p. 24.

    11. Regimento do Santo Ofício de 1552. In: Assunção, Paulo; Franco, José Eduardo. As Metamorfoses de um Polvo. Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa. Lisboa: Prefácio, 2004, p. 108-135, p. 119.

    12. ANTT – Manuscritos da Livraria, n. 129, f. 60v-61.

    13. Ibid., f. 63v-64. Grifo meu.

    14. Herculano, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. 3v. [s. l.]: Europa-América, 1956.

    15. Almeida, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. v. 2. Porto: Portucalense, 1967-1971, p. 367-426.

    16. Saraiva, Antônio José. A Inquisição portuguesa. Lisboa: Europa-América, 1956. Idem. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa:

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