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A igreja como locus ideal de formação: Na problemática antidonatista de Santo Agostinho
A igreja como locus ideal de formação: Na problemática antidonatista de Santo Agostinho
A igreja como locus ideal de formação: Na problemática antidonatista de Santo Agostinho
E-book433 páginas5 horas

A igreja como locus ideal de formação: Na problemática antidonatista de Santo Agostinho

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Sobre este e-book

Esta obra contém uma análise das réplicas do corpus antidonatista de Santo Agostinho (354-430) e demonstra como a Igreja foi definida como locus ideal formativo. Nele é defendida a tese de que três dimensões educativas fundamentaram o seu pensamento: primeiro, o papel formativo atribuído ao clérigo, sobretudo ao bispo, desde o seu exercício pedagógico a partir da cathedra até a sua colegialidade episcopal na elaboração do magistério católico; segundo, a defesa de uma prática pedagógica com a disciplina eclesiástica tendo em vista corrigir erros comportamentais e doutrinais para a unidade dos cristãos; e por último, a ideia da possibilidade de mudança inerente à condição humana como lógica da transformação, mas, cujo proveito dependeria do percurso educativo desenvolvido na Igreja.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de nov. de 2020
ISBN9786587782331
A igreja como locus ideal de formação: Na problemática antidonatista de Santo Agostinho

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    A igreja como locus ideal de formação - Marcos Roberto Pirateli

    Cristãs

    Prefácio

    Nunca é demais lembrar a centralidade de Agostinho de Hipona para a cultura do Ocidente. Homem de pensamento profundo, de palavras talentosas e de ação intrépida e incansável, teve uma vida intelectual e pública extraordinariamente longa para o período histórico e o lugar em que viveu: quase cinquenta anos, entre o fim do séc. IV e 430, no centro de um mundo em profundas transformações.

    A parte latina do império romano atravessava os anos dramáticos da instabilidade política, económica e militar que ditaria o seu fim em 476 d.C. O norte de África em que Agostinho nasceu, na atual Tunísia, e onde regressou como bispo de Hipona, era uma região vital para Roma: próspera nos seus campos agrícolas, no comércio e na atividade dos seus portos, era, a par do sul da Gália, um espaço densamente romanizado, e no coração da latinidade.

    Nada, portanto, de considerar a África ocidental romana um lugar periférico, como eventualmente uma visão anacrónica que olhe exclusivamente para os dados do presente pode deixar turvo. Pelo contrário: dois séculos e meio antes, a Roma africana foi suficientemente pioneira para gerar um cristianismo latino, falado e escrito. E, na continuidade dos grandes autores africanos da latinidade cristã, Santo Agostinho viria a ficar na história literária como um autor de enorme qualidade literária, porventura o maior, entre os da Patrística Latina.

    Entre a sua vasta e diversa obra destaca-se um corpus menos conhecido: os tratados contra o Donatismo. Tal como os seus comentários bíblicos, as homilias e as cartas, este conjunto carateriza-se pelo modo como vibram intensamente ao ritmo do tempo do homem de acção e pastor da Igreja, e talvez por isso os estudos académicos tenham remetido para um lugar secundário quando comparados com os tratados mais teóricos e especulativos, teológicos e catequéticos, com a Cidade de Deus ou as Confissões, mais universais quando comparados com uma tipologia de textos cuja compreensão reclama o contexto concreto da sociedade e da Igreja em África.

    Quando Agostinho assume o seu episcopado, encontra as comunidades cristãs, clero, leigos e circunscrições religiosas, em profunda divisão. Da última perseguição de Diocleciano, nos inícios do século, sobreviveu um cristianismo traumatizado: os que escaparam às provações questionavam as causas da sobrevivência de alguns, uma vez que santos e heróis tinham sido os que pereceram no martírio. A fraqueza dos que cederam aos perseguidores – entregando livros e alfaias religiosas às autoridades romanas e renegando a fé – os traditores, só podia ser lavada com novos sacramentos. Se eram membros do clero, os sacramentos que deram eram nulos. Donato destaca-se neste rigor pastoral que se agarra à identidade martirológica da Igreja pré-constantiniana.

    É um fenómeno característico dos primeiros anos da Paz de Constantino, a necessidade de uma nova colocação da mensagem da igreja e dos valores a defender. A Igreja da longa duração para a paz não pode ser a mesma da Igreja do imediatismo dos combates e da resposta ao estímulo da dor. Uma igreja de resistentes, configurada a um Estado hostil, gerava mártires para um tempo julgado breve. Mas, com a paz, a vida do cristão prolongava-se no século, e eram precisos caminhos de estabilidade e de conformidade às estruturas temporais. O séc. IV foi, assim caraterizado por várias heterodoxias que sustentavam no plano teológico questões disciplinares e pastorais que tinham de ver com o modo de a Igreja e o cristão estarem na sociedade, constituírem comunidades de vida e se relacionarem com o século.

    Apesar da condenação conciliar em 313 reforçada com a censura imperial de 317, o donatismo enraizou-se nas comunidades africanas, absorvendo também os sentimentos antirromanos das classes menos favorecidas que identificavam a Igreja e os bispos ortodoxos com a força repressora do estado romano.

    Nos finais do séc. IV, Agostinho lida com igrejas e comunidades lideradas por discípulos de Donato, consolidadas em gerações de resistência a um catolicismo integrador, normativo e urbano, entendido como pactuante com o século, sendo que, por circunstâncias particulares, esta existência separada, pela sua implantação no terreno, feria a unidade cristã e comprometia os esforços pastorais de bispos como Santo Agostinho. Noutros espaços do Império assistimos a estes confrontos entre líderes eclesiásticos cujas divergências teológicas escondiam, na verdade, a escolha a ser feita quanto ao destino da Igreja: face à mudança de contexto político, ou se fechava numa comunidade de resistentes perfeitos à espera do fim dos tempos prometido para breve no Apocalipse, algo que era fácil porque lhe estava na experiência do passado; ou abraçava o compromisso para o futuro e se assumia um lugar enquanto espaço de transformação dentro da caminhada do homem na história: algo novo a convocar persistência e capacidade de diálogo com os actores do século.

    Agostinho pertence claramente a este novo tipo de líderes da Igreja, capaz de a guindar ao que ela tem sido, desde então, na história do Ocidente, uma entidade agregadora e transformadora de vocação maioritária.

    Ao refutar as argumentações virtuosas dos interlocutores donatistas, Agostinho apresenta o seu projeto para a continuidade da Igreja na sociedade dos homens e na História: a Igreja é um lugar de formação para os cristãos: ou seja, os homens que dela se abeiram transformam-se como indivíduos e como seres relacionais numa comunidade sedimentada pelo amor a Cristo, a fraternidade, educada pela palavra, e alimentada pelo acesso aos sacramentos e pela vivência litúrgica. É, pois, uma casa onde se está, onde cada um deposita a sua fragilidade e imperfeição e em troca se fortalece na partilha fraterna. É o espaço seminal da família cristã.

    Relevante nesta definição é o conceito de locus lugar, espaço concreto, material, e não apenas metáfora. A Igreja concretiza-se em igrejas centros litúrgicos e pastorais agregadores de comunidades e de recursos. Para realizar a sua missão, a Igreja institucionaliza-se, ganha presença e corpo. Santo Agostinho deu bem testemunho nos tratados antidonatistas do fenômeno da cristianização do espaço público e de como a disputa por diferentes visões do cristianismo se materializou também no reclamar de bens patrimoniais que legitimavam a presença no espaço e no território. O Estado percebeu bem o valor real e simbólico dos objetos e espaços quando utilizou a expulsão, a expropriação, o confisco e a transferência de bens como instrumento repressor de cristãos ou de grupos heterodoxos de cristãos.

    No caso do Donatismo, a autoridade imperial interveio de forma precursora do que seria a simbiose caraterizadora da Europa entre política e Igreja: ao ser chamada a tomar parte e a legitimar o concílio episcopal da maioria católica, fez cair sobre os donatistas a damnatio pública: limitados no acesso aos atos públicos, aos cargos administrativos, à justiça e ao direito de propriedade, os donatistas foram sendo associados a uma certa marginalidade, no sentido etimológico do termo, isto é, colocados à margem da maioria: uma morte civil que empurrava estes habitantes para o campo, para a pobreza e ausência de instrução. Não admira, pois, que Santo Agostinho, tendo-se deparado com a divisão de comunidades religiosas e de grupos, tenha associado o combate pela unidade a um trabalho de recuperação e de correção dos fiéis tresmalhados e também a um esforço de educação, ou seja, de transformação interior mas também de reparação das camadas sociais presas à marginalidade a que as crenças donatistas as prenderam. O cristão faz-se dentro da Igreja, ao longo de um processo de interação com os irmãos, com a instrução dos pastores, os bispos e os suportes sacramentais, e com a presença da bênção e da graça do Espírito Santo.

    A obra de Marcos Pirateli é, em vários domínios, incontornável. Resultado do seu trabalho de doutoramento, constitui uma das poucas incursões sobre um corpus literário menos conhecido de um autor gigante, Santo Agostinho. A análise dos tratados Antidonatistas é viva, exacta e, sobretudo, novidade. O trabalho sério e exaustivo do especialista em História da Educação, alguém cuja investigação e magistério já confirmaram como estudioso dos textos da Antiguidade Tardia, desbrava os argumentos do Bispo aplicados ao contexto específico da divisão religiosa na África dos séculos IV e V. Ao fazê-lo, expõe o que, nos referentes históricos, tantas vezes se escondem sob a capa das pertenças religiosas: comunidades, sociedades, estruturas económicas e políticas em crise. As respostas de Santo Agostinho à crise do Donatismo representaram um caminho de conformação da Igreja e da religião cristã no mundo que foi, na sua essência, o percorrido pela história posterior do Homem: uma Igreja que se afirma no mundo como condutora dos homens e agente da História.

    Coimbra, fevereiro de 2020

    Paula Barata Dias

    Universidade de Coimbra

    Apresentação

    É com incontida alegria que tenho a honra de apresentar o livro A Igreja como locus ideal de formação na problemática antidonatista de Santo Agostinho de autoria de Marcos Roberto Pirateli. Trata-se da tese de doutorado resultante de pesquisa desenvolvida pelo autor, sob minha orientação, e aprovada em defesa pública no ano de 2015.

    A tal alegria se acrescenta o fato de que acompanhei o longo caminhar acadêmico de Marcos. Fui orientador de vários projetos, como os de iniciação científica nos anos de 2000/2001 e 2001/2002, o de mestrado entre 2004 e 2006, finalmente, o de doutorado entre 2011 e 2015. Neste último momento, Marcos se integrou ao Projeto de Doutorado oferecido em co-tutela pela Universidade Estadual de Maringá e pela Universidade de Coimbra. A execução do referido projeto, estava sob a responsabilidade, respectivamente, do Programa de Pós Graduação em Educação, representado por mim, e do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, representado pela Professora Doutora Maria de Fátima Melo e Souza. Nesse contexto, a pesquisa de Marcos, que resultou em sua tese de doutorado, foi orientada, em parceria, por mim, da parte da UEM, e pela Professora Doutora Paula Cristina Barata Dias, da referida instituição portuguesa.

    Ainda tenho claro na memória o jovem acadêmico de História, acanhado, ansioso por pesquisar o cristianismo primitivo. Por meio da mãe, na época nossa acadêmica de Pedagogia, foi estabelecido o primeiro contato sobre a possibilidade de uma orientação na área de conhecimento de seu interesse. Apesar do sinal positivo, o jovem acanhado não chegava até mim, solicitando que uma amiga intermediasse novos contatos. Enfim, chegou o grande dia, lá estava o Marcos, com todas as suas preocupações.

    Os primeiros encontros ainda foram marcados por seu acanhamento e por suas poucas palavras, mas, no decorrer do tempo, ele foi se revelando o pesquisador que seria no futuro. Tal fato é referendado por sua dedicação, sua capacidade crítica e de síntese, pela fluidez da escrita e pela clara exposição de suas ideias. Hoje, o orientando acanhado e contido dos primeiros tempos, então uma promessa, tornou-se realidade: estamos diante de um pesquisador consolidado, que demonstra a acuidade de um intelectual atento e preocupado com as questões relativas à História, particularmente à História da Educação, tendo como foco o momento em que o Cristianismo buscava efetivar seu corpo doutrinal, filosófico e teológico.

    Sem dúvida, Agostinho de Hipona (354-430) incorpora o espírito dessa época e constitui um de seus principais representantes. O pensar agostiniano é entendido como uma síntese dos pensadores que o antecederam e, portanto, um dos maiores nomes do pensamento cristão.

    A aventura acadêmica pelo pensamento de uma personagem tão fecunda quanto Agostinho de Hipona foi árdua, não somente por implicar o enfrentamento das questões acima mencionadas, mas também por passar rigorosamente pelo entendimento do subjetivismo que lhe é inerente. Ou seja, tal aventura é mais do que o exercício fácil de levantar e/ou desvendar em seus escritos traços do puro objetivismo que seria a marca característica do pensar filosófico. No trânsito pela biografia desse pensador, é possível verificar que suas reflexões, especialmente as que se referem ao que ele entende como verdade, em qualquer etapa de sua vida, correspondem à busca de um conhecimento que o levaria aos domínios do que, para ele, era a verdadeira sabedoria. Ou seja, não são expressão de uma autêntica gnose em sua finalidade, nem uma verdadeira especulação metodológica.

    Senão no todo, pelo menos em grande parte de seu pensamento, o filósofo mostra a convicção de que a investigação fundada na racionalidade era condição para que se atingisse a verdadeira felicidade, que, em sua reflexão, não era outra coisa senão o encontro com Deus, a única verdade, o início e o fim de todas as coisas. Em sua compreensão, não se tratava apenas de crer e sim, sobretudo e essencialmente, de entender e interiorizar, já que o homem, de maneira particularíssima, o homem Agostinho, acreditava em Deus. Aqui repousa uma questão candente: a obra, ou o pensamento agostiniano, em sua composição e configuração, resulta de duas forças que, à primeira vista, parecem uma contradição: a razão e a fé. No entanto, tais forças se unem para nos contemplar com um pensamento que penetra paulatinamente na interioridade humana, fazendo emergir o homem que, após o encantamento do voar rumo da também descoberta gratificadora de um exterior, usufruiu da felicidade e da bem-aventurança inerentes ao encontro com Deus.

    Na perspectiva de Agostinho de Hipona, seu encontro com Deus passou pela racionalidade, pois esta lhe permitia explicar, mais do que o conteúdo da descoberta, o porquê desse acontecimento gratificador.

    No processo de encontro de Agostinho de Hipona, com o entendido, como a verdadeira sabedoria, a educação encontrou espaço significativo, já que, como transformadora de comportamentos, seria o ponto de partida para a formação do homem ideal cristão, do homem santificado, do homem que instauraria o proclamado reino dos céus aqui na terra.

    Foi no âmbito desse caudal reflexivo agostiniano que, com espírito investigador e atento, Marcos se aventurou no estudo de aspectos delimitados do pensamento educacional dessa personagem ímpar. Nesse exercício de pesquisa, abordou o conceito de universalidade da Igreja defendido por Agostinho de Hipona, destacando sua relação e sua vinculação com a educação. Entendeu que, no processo de ascensão do catolicismo no final da Antiguidade, a Igreja passou a se expressar como um locus ideal para a prática formativa.

    Na sustentação de suas argumentações, Marcos buscou amparo e respaldo em uma metodologia correspondente à necessidade de desvendar as transformações sociais ocorridas no mundo romano, particularmente no momento de integração do Império com o catolicismo, as quais compuseram um quadro que não teve nada de idílico, conforme expressou a crise donatista. Tal tensão desencadeou a dissidência no campo religioso e político em domínios romanos na África, o que levou Agostinho de Hipona a construir uma argumentação sobre a relação entre Igreja e Império. Este, por assumir o cristianismo como religião, deveria ser corresponsável, auxiliando a Igreja em suas atribuições, inclusive em sua atuação como força disciplinadora.

    Ancorado na lógica histórica, a investigação de dados historiográficos possibilitou que o autor desvendasse o modo pelo qual o clero promoveu uma visão de mundo cuja finalidade seria o modelamento e/ou ajustamento de comportamentos à nova ordem social, política e econômica que se apresentava. Em sua abordagem, Marcos mostra a articulação de meios para que a Igreja estabelecesse sua relação de poder e de dominação, de forma a assumir a condição de instituição organizadora da sociedade.

    Nesse sentido, Agostinho de Hipona teria apresentado respostas aos problemas de toda ordem que se colocavam para a sociedade de seu tempo. Segundo ele, a Igreja, como instituição, deveria ter como escopo o status de ideal, visto que já se efetivava em sua universalidade, ou seja, como Igreja Católica, cuja responsabilidade era ser Mãe e Mestra daquela sociedade em franca decadência em meio a um processo de transformação social que abria espaço para um novo tempo que se descortinava.

    O desafio acadêmico empreendido por Marcos resultou na construção da argumentação contida na tese de doutorado e materializada e apresentada ao público leitor na forma do livro em apreço, no qual são identificadas três perspectivas educativas desenvolvidas no pensamento agostiniano.

    A primeira seria a do papel formativo atribuído ao clérigo, em particular, ao bispo, o que passava por um exercício pedagógico desde sua cátedra, e ao colegiado episcopal na elaboração do magistério católico. A segunda seria a da defesa de um modelo pedagógico que tinha como referencial a disciplina eclesiástica, cujos fins seriam a correção comportamental e doutrinal, a manutenção e a preservação da unidade entre os cristãos; a terceira seria a da possibilidade de modificação da pessoa humana como pressuposto da transformação e, conforme exortou, da santificação do homem cristão, cujo processo, para se efetivar, dependia da ação educativa praticada no espaço privilegiado e sagrado da Igreja.

    Vale destacar uma grande contribuição oferecida pelo autor à área de Historiografia da Educação, qual seja sua preocupação com a dimensão pedagógica do pensamento agostiniano. Essa temática é pouco abordada pela História Geral, particularmente pela História da Educação, pelo menos no Brasil, o que deixa um vácuo nessa esfera do conhecimento. Contendo uma abordagem específica do pensamento educacional desse pensador cristão, o trabalho é útil aos estudiosos do pensamento de Agostinho de Hipona e especialmente aos pesquisadores da História da Educação. Importa lembrar que Agostinho de Hipona não elaborou uma proposta educativa sistematizada e que seu pensamento pedagógico se encontra fragmentado por toda a sua obra. Em seu importante trabalho, com base em fontes específicas, Marcos Pirateli pôs a lume aspectos desse pensar disseminado pela obra fecunda do pensador cristão.

    Itambé, maio de 2020

    José Joaquim Pereira Melo Neto

    DFE/PPE/UEM

    Introdução

    Santo Agostinho e a Educação na transformação do Mundo Antigo

    A Antiguidade Tardia foi marcada pelo processo de emergência do cristianismo, religião com forte presença em um longo espaço de tempo na região mediterrânica. De fato, o cristianismo paulatinamente construiu o que acreditava ser sua vocação universal, isto é, universalizar a sua doutrina, situação que se consolidou com a ascensão e oficialização da Igreja católica. Esse processo não ocorreu de forma idílica, foi marcado pelas lutas internas do cristianismo, por exemplo, a controvérsia entre católicos e donatistas na África romana.

    Privilegiando esse capítulo da História, que é a última fase da Antiguidade, a presente tese analisou como em Agostinho¹ (354-430), bispo de Hipona (norte da África), a Igreja católica pode ser identificada como o locus ideal de formação do cristão. Esse corte temático, que se ocupa da História e Historiografia da Educação na Antiguidade, implicou um recorte pontual na vasta obra deste autor, ao selecionar os seus tratados chamados antidonatistas, dirigidos aos cristãos africanos que se separaram da comunhão cristã universalizada. Gestado dentro deste debate interno do cristianismo, a importância do magistério católico, como condutor e formador dos cristãos neste momento em que a Igreja assumia um papel preponderante na sociedade romana, ganhou destaque nas réplicas que Agostinho dirigiu a interlocutores donatistas.

    Podemos inferir que três dimensões caracterizam como pedagógico o raciocínio agostiniano: a primeira, a importante ação educativa que o clero desempenhava na sociedade tardo-romana e que, liderada pelos bispos, a cathedra episcopal configurou a Igreja católica como locus que ligava os agentes da educação cristã: Deus, fiel e clérigo; a isto, acrescentou que a reunião clerical constituía um colégio, um magistério que elaborava e definia a ortodoxia católica. A segunda dimensão consistia na prática formativa, a disciplina ecclesiastica, isto é, a correção que foi estabelecida pelo colégio católico para a consumação da unidade da Igreja. De tal modo, a disciplina era uma regra moral, tinha um sentido prático na esfera eclesiástica, impunha normas de convivência, de comportamento, concretizando o processo santificador. Por fim, a terceira, a sua justificativa pedagógica se fundamentava na possibilidade de mudança como própria da condição humana, ou seja, a ideia de transeunte, a transição de um tipo de comportamento a outro, elaborando uma lógica que visava o aperfeiçoamento disciplinar e doutrinal, garantindo o êxito do fenômeno educativo.

    Tal escolha temática não foi por acaso, sustentando-se em dois princípios: primeiro, o estudo sobre o pensamento educacional de Agostinho é fruto de nossa trajetória acadêmica na Universidade Estadual de Maringá, originada na graduação em História. No entanto, com pesquisas desenvolvidas dentro do Departamento de Fundamentos da Educação, onde realizamos nossa primeira pesquisa de Iniciação Científica, em 2000-2001, intitulada Pela boca de Ambrósio: novos caminhos de Agostinho, em que estudamos os traços biográficos e os aspectos pedagógicos da sua conversão. Essas preocupações nos levaram a realizar outra pesquisa na graduação, em 2001-2002, intitulada Santo Agostinho: um novo pensar do Homem e da História, tendo como foco o estudo da sua teologia da história e ainda qual o sentido do caminhar humano. Ambas as pesquisas foram desenvolvidas dentro de um projeto maior: Análise das transformações dos comportamentos pagãos a partir do advento do cristianismo (séculos I-IV d.C.), coordenado pelo professor Dr. José Joaquim Pereira Melo (DFE/UEM). Os desdobramentos destes estudos resultaram em nossa pesquisa de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação na mesma Universidade (PPE/UEM), a defesa realizou-se em 2006 com o título A Humanitas em Santo Agostinho, ou como santificar o Homem nas ruínas do Império Romano, hoje publicado como livro pela Eduem², permitiu-nos compreender os princípios teológico-filosóficos pelos quais Agostinho concebeu o seu ideal de Homem. Entretanto, as conclusões contribuíram para se refletir um novo problema no pensamento pedagógico agostiniano: por que a Igreja era o melhor lugar para se formar o cristão? Responder a esta pergunta, portanto, constituiu-se nos objetivos desta tese, entre eles: analisar no seu corpus antidonatista o seu conceito de Igreja; demonstrar como a relação Império e Igreja impactaram na correção dos cidadãos; explicar o papel pedagógico do clero e como isto era importante para a consolidação do magistério católico; assim como compreender a proposta educativa agostiniana dentro da polêmica. Isto posto, a presente pesquisa foi iniciada no PPE/UEM em 2011 sob orientação do professor Dr. José Joaquim Pereira Melo, e vinculou-se em regime de doutoramento Cotutela ao Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, com orientação da professora Dra. Paula Cristina Barata Dias, onde realizamos pesquisa entre outubro de 2013 e junho de 2014. Esse acordo internacional possibilitou a dupla titulação: Doutor em Educação (História e Historiografia da Educação) e Doutor em Estudos Clássicos (Mundo Antigo). Portanto, esses anos de pesquisa sobre a obra agostiniana e da Antiguidade cristã de uma forma geral³ oportunizaram condições de selecionar e apresentar argumento novo sobre Agostinho, o que nos leva ao segundo princípio que fundamenta a escolha do tema e fonte: a originalidade de abordagem ao tema, isto é, abstrair destes textos da polêmica antidonatista a perspectiva pedagógica agostiniana, em especial, o tema do locus formativo. A literatura especializada sobre educação em Agostinho pouco ou nada se dedicou ao corpus antidonatista. Isto não significa dizer que tal bibliografia não contribuiu à pesquisa, pelo contrário, ela garantiu respaldo teórico para a defesa da hipótese da Igreja como locus educativo. Entretanto, importa considerar que, ao menos os oito livros – discutidos mais adiante no item Agostinho na historiografia da Educação – que se dedicaram especificamente à educação em Agostinho, o tema não foi objeto de análise ou interesse.

    Todavia, é válido ressaltar que são interpretações importantes e que permitem entender aspectos fundamentais do conceito de educação em Agostinho: os fundamentos teológicos e filosóficos para a formação humana; o processo de santificação do Homem por meio da perfeição humana (humanitas); a integração da cultura clássica na formação cristã; a dimensão pedagógica das categorias agostinianas; a teoria do conhecimento, entre outros. No geral, ainda que em toda a obra agostiniana seja evidente a sua preocupação com a educação, os intérpretes de Agostinho preferiram selecionar como tratados sobre educação o De magistro, De catechizandis rudibus, De doctrina christiana e o sermão De disciplina christiana, por serem tratados de teor especificamente pedagógico.

    Ao escolher como fontes o corpus antidonatista de Agostinho, entendemos que estes textos são importantes para a compreensão da Igreja como locus formativo. Em face disso, coloca-se a questão: como a controvérsia catolicismo-donatismo levou Agostinho a defender a Igreja como espaço privilegiado de educação?

    O donatismo foi um cisma norte-africano iniciado no começo do século IV – época em que chegou a representar a maioria dos cristãos africanos –, constituindo-se em uma Igreja sectária e, após as intervenções imperiais, foi perdendo força no início do século V até o seu desaparecimento no século VII⁴. A paz da Igreja, após Constantino, cessou as perseguições, no entanto, em contrapartida, acentuaram-se as controvérsias internas, o dissenso de cismas (sobre temas de doutrina ou disciplina) que antes eram resolvidas dentro do cristianismo, mas com a sua legalização pública, tornou-se também problema de Estado. O donatismo é um exemplo das heterodoxias surgidas em metrópoles provinciais e que revelam tensões separatistas durante a Antiguidade Tardia, isto é, foi um fenômeno político, religioso e regionalista. Apesar da sua força (resistência) ao aglutinar setores descontentes com Roma, não conseguiu projeção fora do norte-africano.

    Em contrapartida, em torno do imperador e seu projeto central, a Igreja católica representava a concretização de um movimento de apelo à unidade romana. A retórica da unidade era uma necessidade e a Igreja se apropriou deste discurso que nascia do poder político e o colocou em compatibilidade com a sua trajetória própria, marcada por três séculos de tentativa de unidade teológica, dogmática e ritual. Desta forma, quando Agostinho entrou em cena já se encontrava consolidada esta retórica da unidade e da repressão da divergência.

    Não é de admirar, portanto, que a África, que sempre fora a pátria de visões bem articuladas e extremistas da natureza da Igreja como grupo na sociedade, viesse mais uma vez, na época de Agostinho, a se tornar o campo de batalha da Europa nesse último grande debate, cujo desfecho determinaria a forma assumida pela dominação católica do mundo latino até a Reforma.

    Agostinho, porém, interveio nesta controvérsia em um momento tardio. Assim, seu primeiro texto, o Psalmus contra partem Donati, é provavelmente de 394, mais de oitenta anos do início do cisma. Pouco tempo após se tornar sacerdote com seu retorno à África, Agostinho se dedicou aos debates sobre a natureza da Igreja que estavam acontecendo na sua província natal. No seu corpus antidonatista – mesmo que com a evidente marca africana cristã donde a Igreja deveria ser um grupo distinto – a imagem eclesiológica que construiu e defendeu foi aquela apreendida em Roma e Milão, de uma Igreja em expansão, ou seja, para além da África e, inclusive, do próprio mundo romano, isto é, não mais uma Igreja para desafiar a sociedade, como queriam os donatistas, mas sim pronta para dominá-la.

    Essa crise, de fato, serviu aos propósitos ideológicos e doutrinários de Agostinho, foi nela que construiu toda uma definição de Igreja católica enquanto realidade histórica, hierárquica, espiritual, visível e, como hipótese desta tese, também como locus ideal de formação. Esta perspectiva pedagógica se constrói na medida em que o conflito entre as duas Igrejas, católica e donatista, refletia a tensão da superação de um perfil eclesial: da Igreja de combate, de oposição, que gerou tantos mártires por se colocar como estranha à ordem política, mas que, após a pax constantiniana, a ordem estatal tornou-se favorável aos cristãos.

    Isto posto, nossa hipótese se fundamentou na interpretação de um Agostinho cuja ação, registrada nos textos antidonatistas, revela a preocupação pedagógica de renovação do perfil do cristão, um cristão que poderia estar in saeculum e que poderia colaborar com a ordem pública. Todavia, o êxito deste objetivo se daria na Igreja católica, nela o cristão seria corrigido, disciplinado, educado. Diferente do que se apresentava no sectarismo donatista, a Igreja católica não era morada dos perfeitos, mas lugar de aperfeiçoamento, e isto mesmo era um processo pedagógico, de conduzir o cristão à perfeição. O batismo, ponto importante da controvérsia, significando o nascimento do cristão, com Agostinho é interpretado como algo incipiente, o cristão precisava crescer em comunidade, e este percurso formativo ocorria na Igreja, conduzido pelo magistério do colégio católico.

    Tendo em vista esse compromisso educativo, esta Igreja se colocava no século reforçando-se em sua solidariedade com o Império. Essa relação, que contribuiu para a consolidação do catolicismo, perdurou até a separação entre Igreja e Estado no fim da modernidade.

    Fontes

    Quando Agostinho entrou para o clero católico, a polêmica donatista já se arrastava por longos anos, e o seu combate ao cisma marcou quase quarenta anos que se materializaram em uma abundante atividade literária (entre os anos 394 e 430), tais como: salmo, sermões, cartas, tratados, resumo e atas.

    Estes textos (aqui entendidos como fontes) foram consultados em duas coleções: BAC e CSEL. A primeira, em língua moderna (em espanhol, pois ainda não existe versão para a língua portuguesa), foi publicada em três volumes [XXXII, XXXIII e XXXIV] nas Obras Completas de San Agustín pela Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), de Madri. Esta coleção foi coordenada sob os auspícios e direção da Pontificia Universidad de Salamanca e o programa de publicações promovido pela FAE (Federación Augustiniana Española), com tradução castelhana de Santos Santamarta. Vale destacar que estes volumes são bilíngues, pois contemplam também o texto latino do Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (CSEL). Esta segunda coleção, publicada pela Academia de Viena, corresponde aos volumes 51, 52, e 53 do CSEL, respectivamente publicados em 1908, 1909 e 1910, e foram editados por M. Petschenig. Ambas as coleções catalogaram doze tratados⁶, dos quais se optou pela análise das cinco réplicas destinadas a intelectuais donatistas: Contra epistulam Parmeniani libri III (de 400), Contra litteras Petiliani libri III (entre 400 e 403), Contra Cresconium grammaticum et donatistam libri IV (de 405), De unico baptismo contra Petilianum liber I (de 411) e Contra Gaudentium donatistarum episcopum libri II (entre 419 e 422).

    Este recorte interno do corpus antidonatista se deu por dois motivos: primeiro, foi necessário pela extensão da totalidade dos textos e, segundo, porque seus escritos foram dirigidos a dois públicos distintos: para o povo e para os intelectuais; e a opção de escolha dos textos para o segundo público tornou-se mais significativa, pois esse grupo de textos, como inferiu Henri Marrou, apresenta um pensamento mais profundo, mais teórico, que exigiram de Agostinho um esforço crítico particular por se colocar frente a frente com interlocutores do mesmo calibre.

    Marrou também afirma que:

    Accanto al discorso effettivamente pronunciato, la letteratura scritta, il libro, aveva preso un posto sempre più importante e dominante. Come si è già notato, eloquentia aveva finito col significare a poco a poco letteratura, e l’uomo colto che continuava ad essere chiamato oratore era prima di tutto un letterato.

    De uma forma geral, os Contra, destinados diretamente aos seus principais rivais, os

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