Vozes do Bolsa Família – 2ª edição revista e ampliada: Autonomia, dinheiro e cidadania
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Vozes do Bolsa Família – 2ª edição revista e ampliada - Walquiria Leão Rego
1
OUVIR A VOZ DOS POBRES
O pudor ordena à filosofia não reprimir a intelecção de Georg Simmel segundo a qual é espantoso o quão pouco os sofrimentos da humanidade são observados na história da filosofia.
Theodor W. Adorno (2009, p.133)
Ao efetuarmos nossa pesquisa nos deparamos com vários problemas de ordem metodológica. Com isso queremos apontar não tanto para as inegáveis dificuldades hermenêuticas de compreensão e decodificação da linguagem das mulheres entrevistadas e da maneira como percebem e descrevem seu mundo e sua situação. A dificuldade principal consiste antes em encontrar uma atitude que não seja a de um observador imparcial e onisciente, por um lado, ou, por outro, a do participante excessivamente envolvido nos fenômenos que busca descrever. Isso merece algumas considerações mais extensas, antes de se expor o resultado de nosso trabalho.
Teoria Crítica em uma perspectiva ética
A presente pesquisa pretende situar-se na perspectiva da Teoria Crítica. Na exposição dos resultados do nosso trabalho tentamos construir uma narrativa que revele a articulação entre dados empíricos e pressupostos teóricos. Parece-nos importante esclarecer quais são tais pressupostos e o que entendemos por Teoria Crítica.
Vários autores já salientaram como a crítica social constitui um componente essencial de qualquer reflexão sobre a sociedade.¹ Segundo Hartmut Rosa, a Sociologia teria até sua origem na percepção de que há algo errado nas relações sociais (Rosa, 2009, p.23). De fato, já a obra de Durkheim (2007, 2010) se preocupa constantemente com os riscos de desagregação social ligados à própria natureza da sociedade moderna, de modo que desde o começo há na Sociologia uma tendência a criticar a realidade existente e suas patologias. Contrariamente à filosofia política tradicional, contudo, a sociologia crítica não recorre a modelos de sociedade ideais e universais como a república platônica citada por Kant na Crítica da razão pura (Kant, 2012, p.287 et seq.; B, p.372 et seq.). Em outras palavras, ela tem que encontrar os critérios com base nos quais criticar a sociedade na própria realidade social. Não se trata, em suma, de uma crítica externa, como a baseada nos mencionados modelos ideais, mas interna, que visa revelar as tensões e até as contradições que fazem que a sociedade não realize a visão que tem de si mesma. A sociedade não manteria suas promessas e não respeitaria os valores e ideais que constituem sua base moral e ética e que, portanto, são percebidos às vezes como mera cobertura ideológica de interesses inconfessáveis. Pode-se, em suma, acusar alternativamente a sociedade de prática de hipocrisia, de traição aos seus próprios ideais, ou de incapacidade de realizá-los. Pode-se também pôr em questão os ideais mesmos e mostrar como acabam contradizendo importantes fenômenos presentes na sociedade (como faziam os críticos burgueses da sociedade do Antigo Regime). Para dar um exemplo: poder-se-ia criticar a sociedade capitalista e globalizada contemporânea por não realizar sua promessa de garantir a plena autonomia individual (o indivíduo permanece preso a mecanismos impessoais que lhe tornam impossível decidir de forma verdadeiramente autônoma sobre sua vida) ou, alternativamente, pôr em questão o próprio ideal de autonomia individual (quer por ser a base daquele individualismo que provoca fenômenos de desagregação social, que resultam, por sua vez, em formas de alienação características da sociedade atual; quer por ser um conceito vazio ao qual nada corresponde em um sistema econômico que, como o capitalismo, é governado por forças supraindividuais).
A Teoria Crítica, tanto quanto a sociologia crítica, se caracteriza pelo fato de renunciar a modelos ideais de sociedade. Tenta efetuar uma crítica interna à sociedade, ou mostrando sua incoerência (por não manter suas promessas), ou mostrando como justamente a realização de seus ideais e valores traz consigo consequências negativas para os indivíduos que nela vivem (por exemplo a alienação). Nesse sentido, cabe distinguir entre várias perspectivas, a partir das quais é possível uma crítica interna à sociedade ou aos seus sistemas: econômico, político, jurídico etc. A primeira é uma perspectiva meramente funcional: o alvo da crítica é um mau funcionamento do sistema. Um exemplo clássico seria a crítica ao capitalismo, que é acusado de não produzir o bem-estar para todos que promete criar (pelo menos segundo seus teóricos mais apologéticos, como Friedrich von Hayek ou Milton Friedman). Esse tipo de crítica julga geralmente ser possível otimizar o sistema por meio de alguns ajustes: leva a sério as promessas não mantidas e não pensa que é impossível realizá-las devido à própria lógica da sociedade ou do sistema em questão. A segunda é uma perspectiva moral que aponta para o fato de a sociedade (ou o sistema) contradizer uma norma ou um ideal moral aceitos por ela mesma (ou pelo próprio sistema). Um exemplo é a crítica segundo a qual o capitalismo explora o trabalhador e, portanto, viola o conceito de justiça que pretende estar seguindo (na ideia da justa recompensa, do contrato livre entre empregador e empregado etc.). Nesse caso, também permanece aberta a possibilidade de que uma mudança interior ao sistema (sua moralização ou a eliminação de uma situação de injustiça específica) possa fazer que este esteja à altura de seus próprios valores e ideais morais, mas nem sempre isso é possível (por exemplo: na ótica marxista da teoria da mais-valia, o capitalismo é intrinsecamente injusto, pois se baseia na exploração da força de trabalho e não pode renunciar a tal exploração sem deixar de ser capitalismo). A terceira é uma perspectiva ética que salienta como a vida em determinada sociedade não é uma vida boa conforme os seus próprios critérios de vida boa. Um exemplo é a crítica pela qual o capitalismo produz alienação, em vez de tornar os indivíduos autônomos. A partir dessa ótica, novamente, pode-se pensar que a sociedade consegue eliminar os obstáculos que impedem os indivíduos de viver uma vida boa, ou pensar que a situação de alienação permanece irremediável.²
Os vários autores que se consideram ou podem ser considerados representantes da Teoria Crítica assumem normalmente a segunda ou a terceira posição. Enquanto Adorno e Horkheimer evidentemente descrevem a sociedade capitalista a partir de uma perspectiva ética que não se ilude sobre a possibilidade de o capitalismo permitir uma vida boa, Honneth e – em parte – Habermas se situam no ponto de vista da perspectiva moral e ainda acreditam nas chances de progresso moral da sociedade capitalista contemporânea (na possibilidade, em suma, de que se torne mais justa). Uma teoria inspirada na Teoria Crítica deveria, portanto, em primeiro lugar, assumir uma dessas perspectivas. No nosso caso, escolhemos a perspectiva ética.
Tal teoria deveria, em segundo lugar, encontrar sua base nos resultados empíricos das ciências sociais, mas sem cair na armadilha da crença absoluta na verdade de tais resultados (isto é, sem tomar a posição de um positivismo cego). Deveria antes contextualizá-los, quer por meio da crítica do método das ciências sociais, no exemplo das considerações sobre o estatuto epistemológico da Sociologia feitas por Adorno e Habermas nos anos 1960 (Adorno et al., 1972), quer por meio da crítica dos pressupostos ideológicos das mesmas, isto é, dos preconceitos e dos interesses que podem levar as ciências sociais a oferecer uma imagem distorcida dos fenômenos da sociedade. O tipo de posição em que estamos pensando parte de dados empíricos relativos à maneira em que as pessoas relatam experiências de injustiça ou descrevem sua situação, para confrontar tais relatos com os ideais e os valores dominantes na sociedade e mostrar tensões ou até contradições.
Em terceiro lugar, uma posição inspirada na Teoria Crítica deveria criticar as imagens dominantes na sociedade relativas a certos fenômenos sociais, como a pobreza. Essa tarefa está intimamente ligada à crítica das ciências sociais mencionada anteriormente, já que há relação de influência recíproca entre elas e as imagens dominantes. Em outras palavras: a maneira pela qual a pobreza é habitualmente definida pelas ciências sociais e a imagem dela que predomina na sociedade se influenciam reciprocamente. Isso se torna particularmente evidente no caso em que a pobreza é definida em termos de falta de conexão com o mundo do trabalho e da produtividade econômica. Essa terceira tarefa constitui um acompanhamento essencial da segunda (ouvir a voz dos envolvidos), para dispor de instrumentos críticos de interpretação dos dados empíricos, já que os relatos em questão são fortemente influenciados pelas imagens dominantes na sociedade.
Sobre a posição do pesquisador social
No seu ensaio O pobre
, de 1903, Georg Simmel fala da eliminação do pobre
. Ao dizer isso, não se refere simplesmente à sua invisibilidade, mas ao fato de eles não possuírem voz nenhuma quando se trata de tomar decisões sobre políticas públicas que lhes concernem (Simmel, 1939, p.64). Aparentemente as coisas não mudaram muito: a maioria das medidas que visam combater a pobreza é tomada com base em dados estatísticos, quantitativos ou macroeconômicos. O pobre é, em suma, considerado mero objeto de políticas públicas, não sujeito da política, sujeito político propriamente dito – e isso representa uma forma de perda de autonomia. Isso poderia levar a exigir que os pobres participem diretamente das decisões que dizem respeito à sua situação, mas tal exigência se depara com uma dificuldade teórica e uma prática. A teórica consiste na própria definição do fenômeno da pobreza e na identificação de quem é pobre. A prática consiste na dificuldade de os pobres se organizarem de maneira a escolher representantes que falem em seu nome – dificuldade que nasce justamente da sua condição de pobreza (particularmente no caso da miséria, ou seja, da pobreza extrema). Enquanto discutirmos a primeira questão no Capítulo 4, gostaríamos de salientar que não é nossa intenção (nem o foi ao longo da pesquisa) falar em nome dos pobres ou desempenhar o papel de seus representantes. Muito pelo contrário, partimos da ideia de que é necessário ouvir sua voz e deixar que eles próprios descrevam sua situação. Tal necessidade, contudo, deve levar em conta a dificuldade das possíveis distorções às quais pode estar sujeita a percepção que têm de sua situação. Isso significaria então que nós pesquisadores nos encontrávamos numa posição privilegiada, a partir da qual podíamos observar tal situação sem distorções?
Com relação a tal posição privilegiada, o sociólogo francês Luc Boltanski critica, em uma entrevista de 2009, seu mestre Pierre Bourdieu por fazer uma distinção excessivamente forte entre a posição do ator social, de um lado, e do sociólogo, de outro. Enquanto o primeiro nunca está consciente de seus motivos, ainda que seja capaz de realizar cálculos e escolhas estratégicos, o segundo possui um acesso privilegiado à verdade, já que é capaz de descobrir os motivos ocultos do agente (Boltanski e Honneth, 2009, p.82 et seq.). O sociólogo se torna o único sujeito ativo da crítica social, cujo objetivo é abrir os olhos das massas cegas, que desempenham antes um papel passivo. Não discutiremos aqui a questão de a crítica de Boltanski a Bourdieu estar ou não correta. O que nos interessa é antes a advertência de que os críticos sociais podem facilmente assumir uma posição paternalista e achar que conhecem melhor do que os envolvidos a situação que pretendem descrever. Tendem a negar legitimidade ou, pelo menos, valor ao que as pessoas, objeto de seus estudos, dizem de si, à maneira em que estas se veem etc., já que tais descrições de si são presumidamente deformadas pela ignorância da sua verdadeira
situação, que somente o crítico social é capaz de observar. Desse ponto de vista, poder-se-ia objetar que as vítimas da injustiça possuem um acesso privilegiado ao conhecimento dela, que a conhecem melhor do que qualquer observador.³ A essa ideia remete também a afirmação do filósofo norte-americano Michael Walzer segundo a qual o crítico social é ele próprio um membro da sociedade que está criticando (Walzer, 1987). Notavelmente, Walzer critica o que chama de filósofo heroico
, isto é, o pensador que julga a sociedade com base em ideais e modelos normativos construídos abstratamente (Walzer, 1981). Em outras palavras, a ideia do crítico social como observador externo pode ser criticada quer porque levaria a uma atitude paternalista (a crítica de Boltanski), quer porque levaria a uma espécie de platonismo político segundo o qual se deve observar a sociedade de um lugar que não existe e modificá-la usando um ponto arquimediano (a crítica de Walzer).
Por outro lado, e contra o filósofo norte-americano, poder-se-ia observar, como o faz o próprio Boltanski, que, "para fazer sociologia, é preciso colocar-se fora da sociedade, pois quem fica no interior do mundo social é somente um expert, um especialista" (Boltanski e Honneth, 2009, p.95). O mesmo poder-se-ia afirmar do crítico social: ele deve distanciar-se do objeto da sua crítica para poder operá-la: deve, por assim dizer, ficar livre dos mecanismos de dominação ou de alienação que pretende analisar e denunciar, se não quer correr o risco de ser presa deles, como o especialista que se limita a pensar nos moldes e segundo as categorias lógicas e intelectuais da própria sociedade. A diferença é radical; é a diferença que passa, por exemplo, entre, por um lado, mostrar como a lógica do mercado acaba dominando a política de saúde pública e até os critérios que orientam em sua ação os hospitais, que é o que se espera do crítico social, e, por outro lado, aplicar precisamente tal lógica para planejar políticas públicas de saúde ou de gestão de um hospital, tendo como prioridade a rentabilidade, e não a saúde dos pacientes, que é precisamente o que se espera dos especialistas. Contudo, torna-se difícil defender a ideia de que a posição do crítico social deve ser completamente externa à sociedade. Em primeiro lugar, porque tal ponto arquimediano não existe, como salientado por Walzer, e, em segundo, porque isso está na contramão da intenção da própria Teoria Crítica, que visa à crítica imanente à sociedade, para não cair no platonismo acima mencionado e nos ideais abstratos construídos por filósofos heroicos.
Contra Walzer e Boltanski, poder-se-ia observar também, com Adorno e Horkheimer, que é impossível esperar que pessoas que vivem em uma sociedade caracterizada por alienação e ideologia sejam capazes de descrever adequadamente sua situação e alcançar um ponto de vista a partir do qual consigam criticá-la. Para dar um exemplo concreto: pessoas que vivem em uma situação de pobreza ou miséria frequentemente não têm consciência do fato de que são vítimas de alguma injustiça.⁴ Em outras palavras: o que pode chamar a atenção do observador como resultado de uma injustiça pode ser interpretado de maneira bem diferente pelas próprias pessoas que são vítimas da injustiça. A filósofa norte-americana Brooke Ackerly formula otimamente esse dilema: Já que é difícil reconhecer a opressão que não experimentamos e às vezes é difícil entender e articular até a opressão experimentada, os críticos da sociedade precisam de um método
(Ackerly, 2000, p.15) – um método capaz de criticar aspectos injustos da vida social sem ser paternalista ou platônico no sentido acima mencionado. Dito de outra forma: para efetuar nossa pesquisa, precisávamos adotar a posição que ouvisse a voz das vítimas dos mecanismos de exclusão social levando em conta a possibilidade de que tal voz fosse distorcida pelos próprios mecanismos em questão. Contudo, apesar dos riscos de distorções mencionados, achávamos e achamos fundamental ouvir essas vozes, não somente por uma razão metodológica, mas também por uma razão ética, que agora esclareceremos.
Por que ouvir a voz dos pobres
O filósofo italiano Salvatore Veca chama nossa atenção para a importância da linguagem em relação à dignidade e à autonomia individuais. A linguagem é uma instituição social na qual é possível articular as experiências de sofrimento e que implica a existência da comunidade de falantes e agentes que se reconhecem reciprocamente. A dignidade tem a ver com a inclusão em tal comunidade de comunicação e reconhecimento.
Exclusão e falta de reconhecimento geram aquela peculiar espécie de sofrimento (que é talvez o sofrimento social ou político ou civil par excellence: no sentido de ser típico de quem é ator numa comunidade de atores no espaço e no tempo) que definimos como experiência da humilhação ou da degradação. (Veca, 1997, p.107)
Tal humilhação representa uma erosão da autonomia individual, pois explicita uma desconexão da comunidade e implica uma perda do respeito de si. A exclusão da comunidade, ao quebrar a conexão entre o indivíduo e esta última (que Veca chama de cadeia interpessoal), erode as bases da constituição do self do sujeito (cadeia intrapessoal). Nesse sentido, a afirmação da autonomia individual está ligada à possibilidade que o indivíduo tem de utilizar determinado vocabulário para descrever-se sem sofrer a imposição de um vocabulário (e de uma descrição) pelos outros (ibidem, p.111 et seq.). A humilhação é dupla: por um lado, o indivíduo é silenciado, por outro, vê imposta uma descrição que não corresponde à visão que possui de si mesmo e que representa um desrespeito à sua. Isso pode ser constatado cotidianamente no Brasil pela maneira na qual os pobres são descritos pelos membros da classe média e pela própria mídia (por exemplo, quando o indivíduo pobre é chamado de marginal
, de preguiçoso
, de vagabundo
ou é acusado de ser culpado pela sua situação, sem poder em momento nenhum oferecer sua visão da pobreza). Ao receber esse rótulo de membros perigosos, inúteis e associais da comunidade, os pobres são de fato excluídos expressamente dela; porém, espera-se deles, ao mesmo tempo, que se comportem como membros comprometidos com ela. Os pobres no Brasil vivem continuamente em uma tensão: por um lado, são excluídos e humilhados por parte de um sistema econômico e legal que os prejudica; por outro, recebem o apelo a se considerarem parte do mesmo sistema e, assim, respeitarem suas regras e normas sociais e legais.
Nesse sentido, remetemos às seguintes observações de Charles Taylor, que nos parecem mostrar de forma clara a importância da dimensão linguística na economia dos sentimentos de autorrespeito e autoestima:
Se a língua serve para exprimir um novo tipo de percepção, ela não pode somente tornar possível uma nova percepção das coisas, a capacidade de descrevê-las, devendo igualmente abrir novas formas de responder às coisas, novas formas de sentimento. Se, ao exprimir nossos pensamentos sobre as coisas, podemos chegar a ter novos pensamentos, então, ao exprimir nossos sentimentos, podemos chegar a ter sentimentos transformados. [...] Se a linguagem tem de ser vista primariamente como atividade, se ela é aquilo que é constantemente criado e recriado na fala, torna-se relevante observar que o locus primário da fala é a conversação. Falamos juntos, uns para os outros. A linguagem recebe sua forma e se desenvolve não principalmente no monólogo, mas no diálogo, ou melhor, na vida da comunidade de fala. [...] A língua que falo, a rede que jamais posso dominar e controlar, nunca pode ser apenas minha língua: ela é sempre nossa língua. [...] A fala também serve para exprimir diferentes relações que mantemos uns com os outros: íntimas, formais, oficiais, casuais, galhofeiras, sérias. Ao nomeá-las, moldamos nossas relações sociais, como maridos e mulheres, pais e filhos, cidadãos iguais de uma república, súditos do mesmo monarca ou seguidores de um líder militar. Dessa perspectiva, podemos ver que não só a comunidade de fala molda e cria a linguagem, como também a linguagem constitui e sustenta a comunidade de fala. (Taylor, 2000, p.113)
Seguindo Veca e Taylor, podemos defender que a dimensão linguística é fundamental para a afirmação da dignidade humana, já que esta última se baseia não em uma qualidade inata no ser humano,⁵ mas no reconhecimento do direito das pessoas de participarem do discurso de justificação dos estados de coisas que afetam sua vida, quando semelhantes estados dependem da ação humana (como no caso de normas jurídicas ou de decisões políticas, de instituições ou de sistemas econômicos). Esse direito à justificação⁶ é central para a formação do respeito de si e dos outros nos indivíduos; portanto, é decisivo para a formação da autonomia individual. Trata-se, em suma, de um direito básico no sentido de Henri Shue, isto é, do direito necessário para o gozo de outros direitos (Shue, 1996, p.19). Desse ponto de vista, a existência social dos indivíduos implica processos nos quais se exigem justificativas dos outros e os outros exigem justificativas nossas. Nesse sentido, a sociedade pode ser entendida como um ordenamento organizado ao redor de justificativas que mantêm sua legitimação, mas que podem também ser postas em questão.⁷ Para esse fim, porém, é necessário que os indivíduos disponham da capacidade e da possibilidade de exercer críticas, de exigir justificativas, de esclarecer sua posição em relação à realidade sentida e vivida por eles como injusta, ou que precisa ser modificada por alguma razão. A impossibilidade de articular suas exigências e até de descrever a própria situação em termos de um ponto de vista que não seja o das classes dominantes resulta em inevitável perda de autonomia. Autonomia pressupõe um sujeito capaz de se afirmar perante o outro como ator apto a fundamentar verbalmente suas ações, intenções, desejos e