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Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas
Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas
Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas
E-book429 páginas5 horas

Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas

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Sobre este e-book

Hélio de Seixas Guimarães há muitos anos se debruça não só sobre a obra de Machado de Assis, mas também sobre sua recepção pela crítica e pelos leitores. Nesta obra, contudo, ele não tencionou compor uma história dessa recepção, missão já realizada em outros trabalhos – como, por exemplo, os de José Galante de Sousa, Jean-Michel Massa e Ubiratan Machado, que têm procurado organizar a fortuna crítica mais extensa das nossas letras. Seu objetivo, neste livro resultante da tese de livre-docência defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi estabelecer quatro momentos considerados como de inflexão na percepção e no entendimento do que o autor entende como um processo de construção de quatro figuras de Machado: o escritor excêntrico, o mito nacional, o escritor internacionalizado e o autor realista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2017
ISBN9788568334324
Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas

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    Machado de Assis, o escritor que nos lê - Hélio De Seixas Guimarães

    2012.

    [21] 1

    O escritor de exceção

    Quebra da rotina

    Quando as Memórias póstumas de Brás Cubas foram publicadas, em 1881, Capistrano de Abreu publicou um artigo na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 30 de janeiro do mesmo ano, em que lançava a pergunta: "As Memórias póstumas de Brás Cubas serão um romance?. Ato contínuo, o historiador tentava responder à própria pergunta: Em todo o caso são mais alguma cousa. O romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a descrição dos costumes, a filosofia social que está implícita".¹ Três dias depois, em 2 de fevereiro, outro crítico, Urbano Duarte, afirmava nas páginas da Gazetinha que para romance falta-lhe entrecho, prevendo que ali o leitor vulgar pouco pasto achará para sua imaginação e curiosidade banais.² Artur Barreiros, que escreveu o terceiro artigo mais alentado sobre o romance em A Estação de 28 de fevereiro de 1881, com observações notáveis pela [22] argúcia e independência de suas posições, terminava por relegar à posteridade a tarefa de avaliar o romance: daqui a vinte anos, talvez menos, talvez mais, depois de lido e compreendido o livro nas suas várias intenções, lavre-lhe então o público, que é o supremo juiz, a sentença definitiva que o fará viver ou esquecer

    Por meio dessas três colocações, feitas nos dias seguintes ao aparecimento de Brás Cubas em livro, podemos ter uma ideia do desconforto e do desconcerto causados pelo romance machadiano entre os seus contemporâneos, que não encontravam ali o romance usual e, reagindo ao objeto estranho que tinham em mãos, enunciavam as expectativas e as concepções de romance vigentes no momento em que a obra de Machado estava em pleno curso.

    Parte do impacto produzido por Brás Cubas se traduz na sensação de desnorteamento com frequência manifestada pelos críticos. Na sua resenha sobre Brás Cubas, Urbano Duarte deixa isso claro ao recorrer a uma série de metáforas em torno da dificuldade de definir pontos fixos para tratar do romance. Ele diz ser preciso "descobrir a bússola que dirige a pena do escritor, tal é a missão mais importante e dificultosa da crítica; busca estabelecer qual é o pensamento cardeal do romance, no qual a vontade humana é reduzida a um catavento que impele a brisa caprichosa. A desorientação do crítico, projetada até mesmo sobre as personagens, se dá também em relação ao enquadramento moral da obra, na qual, segundo ele, a virtude ou o vício são o produto das circunstâncias, e o homem é o escravo das circunstâncias". Nas páginas da Gazetinha, Urbano escreve:

    [23] Em suma, a nossa impressão final é a seguinte: A obra do Sr. Machado de Assis é deficiente, senão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se propôs a resolver e só filosofou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita; é deficiente na forma, porque não há nitidez, não há desenho, mas bosquejos, não há colorido, mas pinceladas ao acaso.

    Ainda que por meio de negativas, enxergando apenas defeitos e carências numa obra à qual faltaria nitidez, definição e contornos mais precisos, Urbano Duarte demonstrava acuidade crítica ao notar a abertura e a amplitude da forma machadiana, que se colocava na contramão tanto do descritivismo romântico como do naturalista e punha em registro baixo questões de alta filosofia.

    De maneira geral, os leitores ressentem-se do gosto amargo deixado pelo livro, lamentando a ausência de valores claros e positivos para orientar e aperfeiçoar o espírito do leitor. Reagem ao que identificam como sendo o terrível teorema do livro, a sua ideia-mãe: o bem e o mal não são princípios, são resultados, e denunciam a falsidade desse teorema. Interessante observar a impregnação do vocabulário e de alguns princípios da crítica naturalista, que busca identificar a faculté maîtresse (faculdade mestra) da obra, conforme proposto por Taine, ao mesmo tempo que pensa o romance como demonstração de um teorema verdadeiro, ou seja, como proposição a ser demonstrada por um processo lógico, de novo em conformidade com os preceitos do naturalismo.

    A sensação de descompasso entre a intenção e a realização ficava acentuada por se tratar de um romance que de certa maneira remetia a questões caras ao romantismo e ao naturalismo – atmosfera sepulcral, degradação dos corpos, assuntos de herança material e genética –, mas adotava outro tom narrativo, com a presença inesperada do cômico, e outras soluções para o encaminhamento do enredo e do destino das personagens.

    [24] Ao desestabilizar noções arraigadas, tanto para românticos como para naturalistas, do que é e para que deveria servir a literatura – e, por consequência, o romance –, os livros de Machado de Assis provocavam estranheza e frustração. Em momentos mais raros, frustravam pelo excesso, por serem mais alguma coisa que romance, como diz Capistrano de Abreu. Mas em geral é pela falta, pela negatividade, que os contemporâneos caracterizam o que lhes cai nas mãos: falta entrecho, diz Urbano Duarte; falta movimentação, reclamam outros; falta colorido, reivindicam alguns; falta sentimento, queixam-se outros. E todos acham que falta imaginação.

    As reações desses dois críticos que, em 1881, se debruçaram sobre Brás Cubas, ambos intrigados se era ou não romance o que tinham diante de si, não são manifestações isoladas. Pelo contrário, são emblemáticas e muito representativas da reação geral à obra de Machado de Assis, e em especial ao seu romance, desde a publicação de Ressurreição, em 1872, até a do Memorial de Aires, em 1908.

    No início da carreira, todas essas falhas atribuídas a Brás Cubas já haviam sido apontadas por críticos da década de 1870. Entre eles, constam nomes que esmaeceram com o tempo, como os de José Carlos Rodrigues, Augusto Fausto de Sousa (o Doutor Fausto) e Magalhães de Azeredo; outros que ficaram obscurecidos sob pseudônimos, tais como Araucarius, Abdiel e José Anastácio; e um terceiro grupo formado por nomes que permanecem na história da literatura, caso de Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac e Raul Pompeia, autores de voo próprio e talvez por isso mesmo pouco lembrados entre os primeiros leitores de Machado de Assis.

    Apesar do número relativamente grande de críticos mobilizados, as reações produzidas pelos quatro primeiros romances – Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia, publicados entre 1872 e 1878 – foram de desconcerto generalizado. De par com o reconhecimento quase geral do grande talento e da correção de sua escrita, a obra inicialmente foi percebida como um rematado capítulo de negativas e como corpo estranho no panorama literário do período. Faltavam-lhe a paisagem brasileira, a descrição [25] dos costumes, a anotação da linguagem do povo, o interesse por questões momentosas, tais como a decadência do Império e a escravidão. Faltavam ainda movimentação de enredo, colorido, vivacidade de imaginação, intenção moralizadora, sensualidade e carnalidade para as personagens.

    Os leitores censuravam não aquilo que hoje se costuma apontar como defeitos dos primeiros romances, associados ao romantismo e aos excessos sentimentais. Pelo contrário, ressentiam-se da falta de investimento na carga sentimental e nas peripécias, reclamando narrativas mais conformes às que frequentavam os rodapés de jornais do Rio de Janeiro, em sua maioria de autores estrangeiros, mestres na carpintaria dos folhetins que a partir da França e da Inglaterra arrebatavam leitores mundo afora.

    O caráter esporádico e pouco regular dessa crítica se nota pela grande variedade de nomes que escreveram sobre Machado de Assis, entre os quais muito poucos se detiveram em mais de uma obra. Eram críticos bissextos, que resenhavam textos avulsos e produziam artigos que raramente chegavam à forma menos perecível dos livros. Muitas vezes eram comentários ligeiros, em que um texto tratava de vários livros, sobre os mais variados assuntos. Não raro, traziam longas digressões do jornalista sobre sua capacidade para exercer a crítica, além de considerações de ordem pessoal, hoje tidas como irrelevantes.

    Os textos de maior fôlego faziam muitas referências à mitologia (Páris, Menelau, Vênus são muito evocados), o que combina com uma crítica retórica, constituída em torno de um repertório clássico, com imagens cristalizadas e a postulação de sentidos estáveis. É grande a atenção a aspectos formais, gramaticais, estilísticos, com menções à correção da linguagem, à pureza de estilo, o que, no caso de Machado, resulta na visão de um escritor mais português que brasileiro, cultor da forma, um dos nossos primeiros estilistas. Ainda que o lusitanismo seja em muitos casos apontado como elogio, há forte tensão com a literatura portuguesa, seja pela reivindicação de originalidade da literatura brasileira, seja pela concorrência comercial entre livros brasileiros e portugueses.

    [26] Essa leitura coeva ao início de carreira de Machado de Assis caracteriza-se também por um impulso judicativo e retificador, que se atribui o papel de apontar a verdade e o erro, o que muitas vezes é feito de maneira peremptória e ao sabor das simpatias e antipatias que o escritor desperta no crítico. Assim, na abordagem de Ressurreição, o já mencionado doutor Fausto constrói todo o seu argumento em torno do contraste que haveria entre a limpidez da escrita e a origem pobre do romancista trigueiro. Essa associação entre aspectos da obra e traços físicos do autor teria longa história nas leituras de Machado de Assis, como se verá.

    O caráter em grande medida fechado, restritivo e defensivo da crítica nas décadas de 1860 e 1870 é indicativo das limitações impostas à prática literária durante o período identificado com o romantismo e também do entendimento bastante limitado que o movimento teve no Brasil, em função dos propósitos nacionalistas de grande parte da produção literária.

    No ensaio Instinto de nacionalidade, de 1873, Machado lamenta a situação em várias passagens, indicando a inexistência de uma crítica mais séria, independente de simpatias e antipatias, como um dos fatores que dificultavam a constituição de uma literatura brasileira. Esse panorama de certa maneira vai se alterar na década de 1880, depois da publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas, quando de fato começam a se delinear discussões mais densas e mais consequentes sobre a obra, o que também tem a ver com os desafios que ela apresentava para os seus leitores e com a configuração de uma atividade crítica mais regular e estável no Brasil.

    Apesar do notável adensamento da crítica verificado nos anos 1880 e 1890, a estranheza diante da produção de Machado de Assis permaneceu ao longo de toda a trajetória do escritor, até os momentos finais da sua produção. Em pleno ano de 1900, Artur Azevedo, em artigo sobre Dom Casmurro, diria que romance propriamente dito quase não o há nestas páginas [...] cheias de estilo, de graça, de observação e de análise,⁵ sugerindo que romance [27] mesmo fosse aquele das histórias de amor, ou pelo menos das histórias de enredo movimentado. No dia exato da morte do escritor, 29 de setembro de 1908, o Diário Popular, de São Paulo, trazia uma resenha sobre o recém-lançado Memorial de Aires, em que o articulista do jornal questionava o gênero a que pertencia o livro: "Na sua expressão rigorosa não se trata de um romance nem de uma novela em que se descrevam lances dramáticos e sentimentais; porém, o autor de Helena deu-nos, em páginas delicadas e sutis, uns interessantes episódios, observados com a costumada nitidez do seu espírito".⁶

    Essa dúvida sobre a classificação dos livros, que acompanhou toda a produção machadiana, parece não ter existido em relação à produção de Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, Bernardo Guimarães e todos os outros prógonos. O surgimento de uma obra que quebrava a rotina, questionando procedimentos padronizados e expondo o caráter arbitrário das convenções, causava perplexidade e desorientação, visíveis numa crítica marcada pelo impressionismo e pela cobrança de adequação das obras a convenções muitas vezes lastreadas em modelos literários mais ou menos consensuais, quase sempre franceses, e também nos antigos manuais de retórica. A obra ficcional de Machado de Assis punha a nu as limitações do instrumental crítico dos seus contemporâneos, a despeito de todas as novas ideias e doutrinas renovadoras que chegaram ao Brasil a partir da década de 1870.

    Determinismo, evolucionismo, positivismo, romantismo e naturalismo – essas eram as palavras-chave que, com suas derivações e ramificações, formariam a cons­telação de ideias e dariam as balizas para a atividade crítica no Brasil a partir da década de 1870. A frequentação dos grandes sistemas e a invocação dos grandes nomes – Chateaubriand, Taine, Darwin, Comte e Zola –, entretanto, contribuíram tanto para imprimir o tão decantado rigor científico ao estudo da literatura quanto para levantar cortinas de [28] fumaça em torno da pura opinião, da interpretação impressionista, da mera e velha disputa das vaidades, que continuaram a alimentar polêmicas, com suas acusações, réplicas, tréplicas e ódios mortais.

    Os três grandes nomes da primeira crítica machadiana – Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo – não fugiram a essa conjunção, como se nota ao estudar a reação que tiveram diante do caso Machado de Assis. O exame dessa produção de primeira hora chama a atenção para os desafios e as mudanças de parâmetro que uma obra lite­rária de grande porte apresenta para a crítica, desestabilizando as concepções do literário e pondo em xeque a aplicação rígida de teorias e doutrinas; e também para o aparecimento de questões, como a do humorismo e da representatividade nacional do romance machadiano, que teriam desdobramentos importantes em estudos futuros.

    Desafio à crítica

    O estranhamento e a percepção de desajuste em relação às expectativas não se dissiparam nem mesmo quando a produção do escritor passou a ser acompanhada com regularidade pelos três principais críticos literários do século XIX: Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo. Isso se deu em 1892, imediatamente após a publicação de Quincas Borba em volume, o que ocorreu no final de 1891, e com a entrada quase simultânea em cena de Veríssimo e Araripe. A partir daí, ambos acompanharam de perto a produção do escritor, tendo José Veríssimo escrito a respeito de todos os livros lançados a partir de 1892. Cada um a seu modo, tanto Araripe como Veríssimo reagiram aos ataques de Sílvio Romero, que polarizou a recepção inicial com suas opiniões muito negativas tanto sobre o escritor como sobre seus escritos, não raro turvando os limites entre o homem e a obra.

    Apesar das dissensões, foi a tríade formada por Romero, Araripe e Veríssimo que respondeu à obra machadiana de maneira mais sistemática e consistente, e a cujos senões o escritor também [29] reagiu, ativamente ou pelo silêncio eloquente. Em alguns casos, Machado incorporou ao romance questões colocadas por esses primeiros leitores, pondo em prática a dialética entre produção literária e atividade crítica, desejada e defendida por ele nas décadas de 1860 e 1870 em textos como O ideal do crítico (1865) e Instinto de nacionalidade (1873).

    Araripe Júnior (1848-1911) e Sílvio Romero (1851-1914) são rigorosamente contemporâneos e entram em cena quase simultaneamente, no início da década de 1870, quando da publicação de Falenas e Contos fluminenses. Nesse período, ainda eram companheiros em Recife e editavam juntos A Crença, jornal em que Romero publicou seu primeiro artigo sobre Machado de Assis, A poesia das Falenas, em 1870. José Veríssimo (1857-1916), um pouco mais novo, entrará em campo só em 1892, por ocasião do aparecimento, em volume, de Quincas Borba, com uma resenha sobre o romance publicada no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. A tríade, portanto, estará formada com a publicação desse livro. É justamente nesse momento que a crítica machadiana toma corpo, não só em termos numéricos, por ter sido esse o romance de Machado que produziu reação crítica imediata mais volumosa, mas também em termos qualitativos, já que sobre o livro também escreveram Magalhães de Azeredo, Jo­sé Anastácio (provável pseudônimo de Teófilo Guimarães) e Artur Azevedo.

    A linguagem empregada nos artigos dedicados ao romance revela a distância existente entre o texto de Machado e as expectativas dos seus contemporâneos. José Anastácio qualificou o livro como um brilhante demais engastado no diadema da literatura brasileira, um cálix de licor finíssimo que a gente prova e sorve de um trago.⁷ Outro, Magalhães de Azeredo, numa série de artigos elogiosos a Brás Cubas e Quincas Borba, referiu-se ao humorismo do escritor como uma flor doentia da experiência e da desilusão, que semelha um goivo de sepulcro abrindo-se numa jarra de porcelana de Sèvres, sobre um piano donde se evolam [30] acordes de polcas alegres, no turbilhão doido de um baile de duendes.⁸ Até mesmo José Veríssimo, quase sempre tão comedido e sóbrio, exorbitou nos adjetivos ao dizer que livros como os de Machado de Assis confortam-nos algumas horas como o doce perfume de uma flor rara ou a sombra fofa de uma copa de árvore em meio de longo caminho árido.⁹

    A percepção do texto do escritor como um bálsamo num ambiente literário marcado pela aridez, expressa por Veríssimo, será retomada por Joaquim Nabuco em 1905, na frase famosa em que diz a Graça Aranha ser preciso tratar Machado de Assis com o carinho e a veneração com que no Oriente tratam as caravanas a palmeira às vezes solitária do oásis.¹⁰ A imagem, de nuanças orientalistas, condensa não só a visão de Machado como escritor singular, isolado, destacado de seu tempo e lugar, como em certa medida o caracteriza como escritor exótico, singularidade e exotismo que teriam longa carreira na crítica machadiana.

    Apesar disso, dez anos depois da perplexidade e frieza que marcaram a recepção de Brás Cubas, definido como o livro mais esquisito de quantos se tem publicado em língua portuguesa por Araripe,¹¹ e como bolorenta pamonha literária por Romero,¹² Quincas Borba de algum modo esclarecia o que havia de proposital no romance anterior. O livro trazia de volta a prosa estranha, fragmentária e corrosiva de 1880-1881, que a crítica passaria a distinguir, tanto em relação à produção literária brasileira como à obra anterior de Machado, pelo humorismo. O que era esse humour e de [31] que modo ele distanciava o escritor do caráter nacional, filiando-o a tradições estrangeiras, e a quais tradições, serão assuntos recorrentes e motivos de disputa entre a crítica contemporânea, com desdobra­mentos também na crítica posterior.

    É em torno da recepção de Quincas Borba e da questão do humorismo que procuraremos definir as diferentes aproximações de Romero, Araripe e Veríssimo com a obra de Machado, em meio às quais se produzem três perfis distintos para o escritor de exceção.

    O anacrônico

    Apesar de ser voz dis­sonante e isolada, foi ao redor da opinião quase sempre injusta e destrambelhada de Sílvio Romero que se formou o que poderíamos de­finir como a crítica coeva de Machado de Assis. Nas rese­nhas sobre Quincas Borba, Araripe respondia de forma velada e Veríssimo reagia ex­plicitamente a Sílvio Romero, que em 1882 desancara o autor das Memórias póstu­mas, chamando-o de tênia literária, ente infeliz, acusando-o de oportunista e anacrônico, por não ter for­ças de romper com o passa­do e por equilibrar-se como­damente numa combinação de classicismo e romantismo. Romero não incluíra Machado de Assis na sua História da literatura brasileira, publicada em 1888. Por outro lado, a reação, em linhas gerais entusiástica, a Quincas Borba serviria de estímulo e daria munição para Sílvio Romero produzir seu ataque final a Machado, não mais por meio de artigos na imprensa, mas na forma de um livro: Machado de Assis – Estudo comparativo de literatura brasileira.

    [32] Folha de rosto do primeiro livro dedicado a Machado de Assis, com o ataque violento de Sílvio Romero ao escritor e sua obra.

    Fonte: Acervo pessoal de Hélio Guimarães.

    Nessa obra da maturidade romeriana, espécie de súmula do seu antimachadianismo renitente, Romero promete amainar a ferocidade dos seus ataques, mas não se emenda: eu não recuo; não está nos meus hábitos recuar. Não é bem verdade que ele atenue suas críticas nesse livro virulento, injusto e, em vários sentidos, desequilibrado, que já foi caracterizado por Antonio Candido como verdadeira catástrofe do ponto de vista crítico.¹³ As restrições são inúmeras, a violência dos ataques pessoais é de fazer tremerem as páginas, e os elogios, quando vêm, muitas vezes são dúbios. Mas também não é verdade que Sílvio Romero não recue. O que escreve sobre Machado de Assis no Compêndio de história da literatura brasileira, de 1909, já é muito mais equilibrado, talvez pelo contrapeso de João Ribeiro, coautor do volume.

    No Estudo comparativo, Romero procura pôr Machado contra seus críticos. Afirma que estes em geral são falsos, pois em público elogiam o escritor, mas nas rodas literárias falam coisas terríveis sobre ele. Diz que não vai contar o que ouviu, para não transformar sua crítica em bisbilhotice e também por se tratar de coisas que talvez só caberiam nas suas memórias póstumas. O alvo de Romero [33] não é apenas o homem Machado de Assis e sua obra, mas toda a crítica produzida até então, acusada de fetichista, retórica e idólatra. Não se tratava, portanto, de petardos dirigidos a um desafeto, e sim de uma guerra inteira, já que o objetivo não era apenas colocar Machado em seu lugar, mas desqualificar todos os críticos favoráveis a ele, acusando-os de pedantes, insinceros, excessivamente indulgentes, os louvaminheiros de profissão que Romero tanto criticava. Em nome do propósito elevado e ambicioso de renovação da crítica nacional, em que de fato estava empenhado, ele se permitia levar de roldão tudo que lhe desagradasse.

    Diante da amplitude do alvo, fica difícil falar em reação a aspectos específicos da obra de Machado; trata-se de reação simplesmente, um dos sestros do reativíssimo Sílvio Romero, que se autointitulava um justiceiro e passou boa parte da vida tentando explicar a antipatia pelo escritor e exaltando a genialidade de Tobias Barreto. No livro de 1897, esse seu mestre da escola do Recife mais uma vez serve de termo de comparação para diminuir os talentos de Machado de Assis como poeta, prosador e humorista. Ao longo de toda a carreira, Tobias Barreto foi a clava de Hércules, o instrumento preferido na sua sanha de esbordoar os outros, como bem observou Araripe Júnior em Sílvio Romero polemista.¹⁴ Assim, pelos parâmetros críticos de Romero, Tobias Barreto encarnava a excelência, e o prosador Machado teria muito a aprender com Rui Barbosa, Camilo Castelo Branco, José do Patrocínio, Sales Torres-Homem, Latino Coelho, entre muitos outros.¹⁵

    O estudo comparativo era a resposta, fermentada durante quase vinte anos, aos senões dirigidos à poesia de Romero em "A [34] nova geração, o famoso texto crítico de Machado de Assis publicado em 1879. Romero, que nunca foi muito afeito às sutilezas, deixa claro o revide já no primeiro parágrafo da introdução, ao afirmar que entre as singularidades das coisas literárias do Brasil está a constante e espontânea produção, por qualquer mocinho ou rapazelho (leia-se Machado, que na realidade era mais velho que Romero), de novas gerações: das tais gerações novas, novíssimas, recentes, recentíssimas, modernas, moderníssimas, já passaram por nós nada menos de duas dúzias!... Já se vê, portanto, que esta fertilidade não é coisa séria, e quem tiver bom senso deve opor embargos a tanta ligeireza".¹⁶

    Contra a ligeireza e a banalidade, Romero propõe o estudo de Machado de Assis à luz de seu meio social, da influência de sua educação, de sua psicologia, de sua hereditariedade fisiológica e étnica, mostrando a formação, a orientação normal de seu talento.¹⁷ O pressuposto é o do artista como um centro de força, que age como fator de diferenciação e progresso, e também como uma resultante, efeito de um meio, devendo refletir a sociedade a que pertence. Ou seja, o escritor não pode ser muito mais nem muito menos do que determinaria sua origem fisiológica, social e nacional, ainda que possa evoluir. Por esses critérios, Machado de Assis – descrito como pobre, pouco escolarizado, tímido, gago, mulato – e sua obra – sem qualquer traço explícito de engajamento patriótico, parco talento descritivo e baixo investimento na pintura da natureza local – eram uma consumada enciclopédia de negativas. No que diz respeito à diferenciação e ao progresso, sua obra representaria enorme retrocesso, tanto pela ausência de qualquer ímpeto explicitamente combativo, como pelo tributo aos [35] modelos clássicos e românticos, modelos com os quais, por tibieza, o escritor não teria conseguido romper.

    O crítico centra fogo no plano pessoal. Por exemplo, chamará a atenção para o fato de Machado de Assis não possuir diploma, ter instrução limitada, de princípio demasiado parca, numa referência à origem pobre do escritor, o que teria feito dele um funcionário mediano, para não dizer medíocre. O grande problema de Sílvio Romero, para quem as questões de raça e mestiçagem eram centrais na definição e na singularização da nacionalidade e, portanto, da literatura brasileira – esse, aliás, o principal aspecto modernizador da sua crítica e da sua visão do país, como apontou Antonio Candido¹⁸ –, está no fato de Machado, genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, não se entregar à sua condição de meridional e mestiço.

    Para Romero, isso só podia ser entendido como afetação, quase uma impostura do homem, o que teria repercussões na obra, a seu ver marcada pelo artificialismo, pelo isolamento em relação ao meio, pela indiferença à paisagem e ao povo brasileiro. O crítico cobrava de Machado que fosse um escritor representativo da sub-raça e parecia não ver outro caminho para isso a não ser a adoção de uma postura, se não estereotipada, pelo menos mais típica, da qual Machado sempre fugiu.

    Assim, no repertório romeriano, as categorias centrais de raça e mestiçagem deslizam com facilidade para os argumentos da animosidade para com Machado, que não se enquadrava no papel previsto e, ato contínuo, era logo encaixado em outro estereótipo, o do mulato pernóstico, de modos afetados, afrancesados, incapaz de reconhecer sua condição de verdadeiro meridional e mestiço. Em alguns momentos, o que parece estar em jogo é o velhíssimo e onipresente preconceito racial e de cor. Usando Tobias Barreto como escudo, Romero parece não se conformar mesmo é com o fato de Machado ter escrito o que escreveu sendo mulato, sem se [36] curvar ao que chama de moléstia da cor, nostalgia da alvura, despeito contra os que gozam da superioridade da branquidade.¹⁹

    Por trás dos excessos de Romero, havia regras. Evolucionista convicto (meu pensamento em filosofia mudou do positivismo para o evolucionismo spencerista, chamado também por alguns agnosticismo evolucionista), aplicou os princípios de Spencer à obra de Machado não só para considerá-la anacrônica, pelo seu aspecto romântico e classicizante, mas para refutar a divisão dela em duas fases, pro­posta por Veríssimo e aceita por Araripe Júnior. Para Romero, não havia ruptura parcial nem completa entre Iaiá Garcia e Brás Cubas. Machado era desde o início um só, no pouco que havia de bom nele, e no muito de ruim, já que nem a natureza nem a psicologia normal se move aos saltos. Sempre do contra,

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