O ouvido do bode preto
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O ouvido do bode preto - Helvécio Furtado Junior
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Prefácio
Uma vez, conversando com um velho mendigo que havia acabado assim por ter sido antes um milionário que fracassara em morrer até os setenta anos depois de ter vivido com opulência para não deixar herança, ouvi uma história que segundo ele, contam os antigos nativos do seio das religiões ocidentais.
Nos tempos antigos, quando os conflitos religiosos resumiam-se à escaramuças em vilarejos e o cristianismo ainda não tinha atingido sucesso absoluto, as três religiões oriundas do mediterrâneo (judaísmo, islamismo, cristianismo) compartilhavam, como hoje, os mesmos espaços, porém mais harmoniosamente. E misturavam-se, inclusive. Por exemplo, os judeus tinham por hábito criar um bode preto, indo até ele após o dia de serviço e sussurrando algo no ouvido do animal. Era uma prática bastante comum, e conforme o cristianismo crescia, cresceu o interesse por ela. Porquê os judeus faziam isso? Os padres e bispos vieram a aprender que após um dia de serviço, da perspectiva judaica, era impossível que um ser humano não tivesse cometido pecado, fosse por fato ou por pensamento. Os sinoistas entendiam que o indivíduo não consegue deixar de exprimir seus feitos, sejam bons ou ruins, portanto era melhor contar os podres ao bode, que não falava, pois assim permaneciam em segredo. Os cristãos adaptaram a prática chamando-a confissão, mais ou menos na mesma época em que os padres passaram a usar vestes negras. Eles entenderam que os judeus falavam com os bodes pois precisavam confabular de si para si, ou seja, refletir. Para capitalizar este advento, o bode foi substituído por um clérigo, inadvertidamente iniciando - ou ao menos contribuindo para - o processo, hoje em dia bastante aprimorado e internalizado em nós, de vigilância e punição que furta das pessoas a capacidade de pensarem sozinhas. O bode preto, que nunca poderia pecar, foi demonizado conforme as práticas cristãs difundiam-se sobre as outras, e hoje é considerado um símbolo do anticristo.
Agradecimentos
Agradeço à todas as mulheres que se dispuseram a participar da minha formação enquanto indivíduo, notoriamente minha mãe e minha filha, que são as maiores contribuidoras do meu projeto de vida. Ao meu pai e aos familiares que nunca me quiseram mal e sempre me apoiaram, sou eternamente grato pelas lições e experiências. As coisas que aprendi com vocês não poderiam ter sido ensinadas por mais ninguém. O primeiro esboço dO Ouvido do Bode Preto surgiu durante as práticas propostas na disciplina Escrita Criativa, ministrada pelo Dr. Márcio Markendorf, do curso de Cinema na Federal de Santa Catarina. Por essa disciplina, e também por toda a orientação posterior, sou eternamente grato. Agradeço também aos professores Selma Goulart, Alfredo Manevy, Aglair Bernardo, e Daniele Gallindo, minha primeira orientadora, que desempenhou crucial papel em minha vida acadêmica durante um dos meus períodos mais obscuros, à qual também peço sinceras desculpas pelas imaturidades e vacilos. A todos os professores que contribuíram e que hão de contribuir para a minha eterna formação enquanto indivíduo, prometo que retribuirei à espécie tamanho investimento. Muito obrigado também à Rafaella Whitaker pelas colagens sensacionais.
Dadas as oportunidades que recebi na minha vida, reconheço que nada mais fiz do que aproveitar e absorver o esforço de muitas outras pessoas (camponesas, comerciantes, servidoras, professoras, teóricas, cineastas e um sem fim de outras), das quais a maioria eu desconheço. Sinto que é um dever fazer valer as muitas horas de trabalho alheio que sustentam uma pessoa como eu. Sou infinitamente grato a todos os fios do tecido social sobre o qual eu me deito, com o qual me cubro, e do qual sou parte, nem melhor que a pior e nem pior que a melhor. Finalmente, agradeço à Gabriela Vasconcelos pelo zelo com nosso tesouro compartilhado, e a Ana Carolina Fernandes, por ser a pessoa mais importante que conheci na minha vida adulta.
Apoiadores
Alfredo Manevy
Vinícius Antônio
Gabriel Varalla
Windy Kessler
Carlos Vaz
Vera Lúcia Goulart de Souza
Maria Estrázulas
Clélia Maria Campigotto
Leandro Goulart de Souza
Aglair Maria Bernardo
Nairana Goulart Furtado
Lucas dos Santos Soares
Helvécio Ferreira Furtado
Andréa C. Scansani
Josias Hack
Letícia Freitas
Beatriz Ribeiro
Thiago W. Mendonça
Marcio Markendorf
Enilson Pool da Silva
Fernanda Spencer
Selma Goulart Furtado
Carlos Roberto Goulart
Agostine Braga
Balada
Christina Rossetti
Quando eu estiver morta, minha amada,
Não cantes baladas tristes por mim;
Não plantes rosas em minha lápide
Nem cipreste sombrio que mate o capim
Deixa que sobre mim a grama verdeja
Molhada de chuva e orvalhada
E se desejares, recorda
E se desejares, apaga
Eu não verei a penumbra
Eu não sentirei a chuva
Eu não ouvirei o rouxinol
Cantar, como se em penúria
E sonhando através do poente
Que não se ergue e nem se deita
Quem sabe eu me lembre
E quem sabe eu me esqueça
Anno Domini
Na periferia de Belém viveu um senhor chamado José e sua neta Maria. O velho era carpinteiro, a criança lavava roupa pra fora e tinha que estudar. A mãe de Maria era bonita. Achou um bacana e foi embora depois que o esposo, quer dizer o pai da pequena, pereceu de pinguço. Depois de perder o filho pro gole, o velho José desgostou da marvada e nunca mais tomou. A criança cresceu longe de cachaça e dentro da igreja. Gente comum, pouco mais que estatística. Olhando para eles, nada havia de formosura que os destacasse para que fossem desejados.
O mato onde cresceu aquela comunidade mostrava onde podia que aquele local teria sido outrora um palácio dos sentidos selvagens, mata onde a imaginação das crianças e dos adultos poderia florescer até que harmoniosamente se tornasse real. Porém, poucos percebiam a beleza natural que lutava para existir em meio ao lixo, esgoto e