Kahoji: Entre a Fantasia e a Realidade
De Ifásunle
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Kahoji - Ifásunle
Agradecimentos
Não a este livro, mas ao processo inteiro pelo qual ele perpassa, devo dizer, de meio em meio minuto: Adupé Esú, adupé Orisá!
Não a este momento, nem a esta vida, mas a todo o processo espiritual que tece as teias do destino, devo dizer: Nzambi ua Kuatesa!
Ao útero que me gestou e ao que me gesta neste instante.
À minha família de origem, minha terra onde brotam grãos, raízes e o fruto de muito suor.
E também à família que o amor, em comunhão com o espírito, tem (re)construído nessa minha passagem pela Terra. Imenso respeito.
Inteiramente à Lukaya Mayela.
O sangue dos meus ancestrais pulsa nas minhas veias.
Mo jubá gbogbo Egungun!
Prefácio
Se nós pudéssemos usar o termo perfeito
para designar o embate entre a necessidade de existir e resistir e a busca de um viver que não estivesse em constante guerra, teríamos encontrado o ponto preciso, precioso e exato de onde emerge o docudrama literário ou as crônicas da poesia ficcional de Kahoji.
Aqui, como sabemos em todas as favelas e quebradas: pelo (fato de o) bagulho ser doido, a (sobre)vivência nos faz (sobre-humanamente e desumanamente) ser mais doido que o bagulho.
A cronista, estudante de história, de espiritualidade Bantu/candomblecista e Omo-Ifá, IfáSunlê (Rose Almeida), nos coloca, sem dó, diante de nossa realidade enquanto pessoas pretas: o inferno racial onde estamos confinados, e ter que estar diuturnamente em guarda, em luta, na atividade
, como é dito por outros manos.
Mais do que uma pensadora inquieta e intelectual afiada, IfáSunlê pare com seus dedos uma lente e um olhar que ampliam a percepção de nosso sangue que escorre, das guerras diárias para mais que sobreviver: vivermos de forma plena, digna, no sentido africano de Ser humano — Ser integral.
Entre a beleza, os raios de felicidade que rompem as nuvens do racismo, a sacralidade, a Divindade que somos, fomos… e que tentam nos fazer esquecer.
É a beleza dos jardins, com nossa gente feliz e preta, de que falou Amiri Baraka, com o nosso encontro na tempestade, como profetizou honorável Garvey.
Talvez só nos reste agradecer e deslizar nesse vento tempestuoso de sua escrita firme e certa, feito bala
.
Matôndo, IfáSunlê!
Taata Kambondu Tekle Mpòmbe Nsi Afreeka Kemet
Rio de Janeiro-RJ, 2021
Introdução
Kahoji é uma proposta reflexiva de um olhar mais sensível e crítico sob particularidades de ser um corpo negro no mundo, mais especificamente no Brasil, onde muitas vezes a questão racial é pautada em segundo plano, entre as tentativas de formas diversas de genocídio e silenciamento.
Enquanto escrevia este livro, percebi como é complexo e duro falar sobre uma realidade tão viva e cotidiana às pessoas negras neste país. Percebi como é triste e profundo criar uma história fictícia baseada na realidade enquanto ela acontece, não sendo apenas uma criação imaginária sem compromisso com a realidade, mas tornando-se narrativas de histórias reais que nos remetem involuntariamente a lugares similares das nossas próprias trajetórias a cada parágrafo.
Todo o processo de construção e escrita foi engatado com solicitação de licença e pedido de permissão aos ancestrais para as citações em situações que tangem à ancestralidade africana presentes no contexto deste trabalho. A missão de Kahoji é trazer à luz especialmente os casos de racismo e ódio religioso invisibilizados pela perspectiva colonial de justiça e normalidade dos fatos, uma vez que muitos casos de racismo são drasticamente banalizados e deslegitimados pela narrativa de opressão colonizadora, resistindo com esperança de que o amor ancestral pode ressignificar a agência do caráter e espírito no coração do homem.
Os olhos de Kahoji veem o que muitas vezes a dissimulação da opressão e da violência racial naturalizam na sociedade atual, tornando os nossos corpos cada vez mais alvos do índice nas estatísticas de suicídio, de extermínio, de encarceramento em massa, de diagnósticos de transtornos psiquiátricos e de outras mazelas que assolam particularmente a população negra, da escravidão até hoje.
O livro conta com introduções poéticas a cada capítulo para elucidar a vitalidade da energia ancestral na nossa vida. Deve-se considerar esse muito mais que um momento religioso, mas a inteireza do sagrado ancestral em cada um de nós. A linguagem que compõe este trabalho foi intencionalmente pensada para dialogar com a diversidade das narrativas negras no Brasil, considerando que infelizmente ainda estamos dando passos para uma educação minimamente reparativa e que atenda a população negra amplamente. Nesse sentido, houve sempre, aqui, a preocupação com uma linguagem acessível e coerente com a realidade.
Kahoji é um livro de contos para todos, em especial para o nosso clã
. E, por clã
, devemos entender nossa família, nossos irmãos de cor, nossas crianças, nossos adolescentes, nossos idosos e, sobretudo, nossa comunidade.
Kahoji
Meu pequeno-grande — Kahoji.
Mistério vivo do segredo que