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Michel Foucault: O governo da infância
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Michel Foucault: O governo da infância
E-book598 páginas48 horas

Michel Foucault: O governo da infância

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Sobre este e-book

Embora Foucault não tenha desenvolvido uma teoria da infância ou uma formulação conceitual sistemática sobre esse tema, há ferramentas, em seus ditos e escritos, que podem ser tomadas como chaves de compreensão, com as quais se pode interrogar os modos de construção da infância, a invenção do sujeito infantil e de toda a parafernália disciplinar e dos mecanismos que põem em funcionamento o maquinário que governa a infância em nossa sociedade, conduzindo sua conduta e a conduta dos que a conduzem, segundo normas e arranjos culturais, políticos e institucionais. Pensar a infância a partir e com Foucault, indagando-a na configuração de nossa sociedade e no funcionamento de nossas instituições, problematizando-a como uma invenção histórica é perceber que não há uma clarividência nos modos como ela é engendrada no contexto social moderno, é perceber sua construção histórica como categoria das ciências do homem e não como um desenvolvimento natural, desde sempre e eternamente engajada numa evolução teleológica em que a cronologia marca uma fase da vida na qual a definição da educação se dá em torno da transformação das crianças nos homens do amanhã. Pensar a infância com Foucault possibilita ver o que se está fazendo das crianças e com as crianças em nosso tempo presente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de ago. de 2018
ISBN9788582172858
Michel Foucault: O governo da infância

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    Pré-visualização do livro

    Michel Foucault - Haroldo de Resende

    Apresentação

    Haroldo de Resende

    A infância, entendida como uma invenção moderna, ocupa espaços sociais – da mídia, da Medicina, da Psicopedagogia, do consumo, da Pedagogia, da Psicologia, da Literatura, entre vários outros –, de modo que sua existência é atravessada por processos de acumulação de saberes sobre o corpo, o desenvolvimento, as capacidades, as vontades, as tendências, as brincadeiras, as fragilidades, as vulnerabilidades, os instintos, as paixões e as potências infantis que, por sua vez, se acoplam a práticas discursivas e não discursivas em que tais saberes se imbricam em mecanismos de poder, cujo resultado acaba sendo a produção de uma infância governada, segundo normatividades da sociedade que se empreende.

    Nessa perspectiva, a infância deve ser administrada e conduzida, segundo um modelo estabelecido científica e institucionalmente, consubstanciando uma concepção que é parametrada e, ao mesmo tempo, também é parâmetro de políticas educativas, políticas de conhecimentos, legislações, estruturas e funcionamentos de escolas para crianças e de toda uma rede de instituições que as acolhem, fabricando-se, assim, uma infância pautada na continuidade cronológica, no tempo como sucessão e sequência de etapas do desenvolvimento.

    Pensar a infância, problematizando-a como uma invenção, permite perceber sua construção histórica como categoria das ciências do homem e a forma como ela é engendrada no contexto social moderno. Nesse sentido, pensá-la com Foucault possibilita ver, desde essa perspectiva administrativa, o que se está fazendo da infância e com a infância em nosso tempo presente.

    Não obstante Foucault não ter desenvolvido uma teoria da infância, uma formulação conceitual sistemática sobre esse tema, ocupando-se em suas pesquisas, de maneira específica, a estudar a infância, há em sua obra chaves de compreensão com as quais se podem descortinar modos diferentes de pensar as formas dessa administração infantil, fornecendo pistas para concebê-la como produção histórica, construção cultural e, portanto, desvinculada de definições estáticas, naturalizantes e essencialistas.

    Em seus ditos e escritos, propondo uma crítica da Modernidade, da constituição de saberes imbricados em relações de poder ou mesmo dos modos de constituição do sujeito moderno, é possível encontrar ferramentas que permitem interrogar os modos de construção da infância, a invenção do sujeito infantil e de toda a parafernália disciplinar e dos mecanismos que põem em funcionamento a máquina que governa a infância em nossa sociedade. Essa máquina que regula, dirige, controla, ensina, normaliza, disciplina, pune, castiga, cura, educa. Essa máquina que faz viver e que deixa morrer.

    Essa máquina que conduz a criança, que conduz a conduta dos que conduzem a infância, segundo normas e arranjos políticos e institucionais. Essa máquina que governa. Nos versos de Manoel de Barros:

    A máquina trabalha com secos e molhados é ninfômona agarra seus homens vai a chás de caridade ajuda os mais fracos a passarem fome e dá às crianças o direito inalienável ao sofrimento na forma e de acordo com a lei e as possibilidades de cada uma¹

    Assim, pensar a infância a partir e com Foucault, indagando-a na configuração de nossa sociedade e no funcionamento de nossas instituições, problematizando-a como uma invenção histórica, num gesto de crítica, consiste em ativar o pensamento e em ensaiar a mudança, como diz o próprio Foucault, ao falar sobre a atividade crítica.

    Pensar a infância com e a partir de Foucault é perceber que não há uma clarividência nos modos como ela é engendrada no contexto social moderno, é perceber sua construção histórica como categoria das ciências do homem e não como um desenvolvimento natural, desde sempre e eternamente engajada numa evolução teleológica em que a cronologia marca uma fase da vida e em que, especialmente, a definição da educação se dá em torno da transformação das crianças nos homens do amanhã, numa atualização de suas potencialidades.

    Com Foucault é possível e necessário pensar em outras formas de infância. Novas potências infantis, outros modos de ser criança, desencadeados pela experiência, pelo acontecimento, pela singularidade, pelo devir.

    De novo, recorrendo a outras palavras de Manoel de Barros, esse poeta das infâmias e das coisas pequenas e inúteis:

    Eu não gostava que botassem data na minha existência.A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A a gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio.

    […] Hoje estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora estou quando infante.

    […] Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas,com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Porque o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte.²

    Desejo que as ideias, as partilhas, os diálogos, as palavras e as coisas escritas neste livro sejam o quando agora em nós para refletirmos sobre a infância e o que estamos fazendo dela em nosso tempo presente, que seja uma experiência, uma atividade crítica que possa nutrir nossas ações, nossas escolhas. Que este livro represente um pouco de possível no nosso mundo de (educadores) adultos.

    ¹ BARROS, Manoel de. Manoel de Barros. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. p. 139-140.

    ² BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010. p. 133.

    Capitulo 1

    Governando crianças e jovens:escola, drogas e violência

    ¹

    Acácio Augusto

    No século XXI a escola continua ocupando um lugar inquestionável. Quase todas as pessoas sabem o que é uma escola, pois viveram, por certo tempo de sua existência, uma experiência escolar. Passar pela escola, na vida de qualquer pessoa, é um fato quase natural. Depois da família, com seus castigos e zelos, a escola é o lugar privilegiado do governo das crianças e dos jovens. A cultura do castigo, que se exerce desde a mais tenra idade de uma criança, tem seu complemento e reforço decisivo na experiência escolar voltada para transformar crianças arteiras em adultos ordeiros.

    Para isso se destinam os saberes da Pedagogia e da Psicologia, que se estendem em regras, preceitos e recomendações em torno das noções histórico-psicológicas de infância e adolescência. Mesmo em um momento em que se valoriza a liberdade e a criatividade dos pequenos entre os muros escolares, não se abre mão do governo dos corpos e das mentes para dar a justa medida da liberdade desse homem a ser formado e formatado. Nesse jogo de liberdades medidas se produz algo diverso da liberdade, que é do âmbito das desmedidas, se expande no mais ordinário dos atos o seu contrário, a busca paranoica por segurança.

    Na sociedade de controle vive-se uma experiência escolar estendida e contínua. Houve um tempo em que chegava a hora de se despedir da escola, seja para se inserir no mercado de trabalho, seja porque ocorrera um corte brusco na experiência educacional ou para adentrar a universidade. Esse tempo não é mais o mesmo. Agora, estamos endereçados à escola do nascimento à morte; nas empresas e nas universidades só se fala em formação continuada e avaliação contínua. Essa é uma verdade que o saber contemporâneo construiu para ser consensualmente aceita e incorporada como inevitável.

    A escola não é mais o lugar de uma etapa necessária ao desenvolvimento da criança e do jovem, transmutado em adolescente, estabelecida pelos pais, sob o controle do Estado, para uma educação de conhecimentos regulada por pedagogos e psicólogos e/ou psicopedagogos. Ela perdeu o status de lugar especial, de etapa a ser cumprida ou estágio a ser vencido para se atingir a vida adulta como um indivíduo preparado e um cidadão de bem. Tornou-se um lugar familiar para toda a vida. Em seu interior se aprendem conhecimentos e obediências, mas, também, é para lá que se dirige a vida do bairro, das redondezas, da comunidade. A escola passou a ser um lugar de convívio onde se estuda, se desfruta de lazer e se decidem coisas da vida entre os habitantes do local.

    A despeito de sua presença contínua, se alguém disser a qualquer jovem: amanhã, você irá para a escola, ele ainda responderá quase instantaneamente: que droga!. Mas, mesmo avesso ao complexo disciplinar, mais ou menos aberto, ele irá de qualquer maneira, porque entende o que se espera dele. Ainda desgostoso, se mostra pronto para tornar isso menos doloroso, sem que tenha que enfrentar mais desconfortos derivados do regime disciplinar que lhe é insuportável. Contudo, a escola permanece sendo um lugar inquestionável. Basta puxar na memória para constatar que raramente houve alguém que falou contra a escola. Fala-se em reformá-la, modificá-la ou mesmo torná-la um lugar melhor, nunca em aboli-la em favor de uma experiência outra que os envolvidos podem descobrir ou inventar para educar crianças e jovens. Embora desagradável, mesmo para um jovem que odeia a escola, ela se impõe como indispensável, ou um mal necessário, até mesmo quando a vê, sob as novas condições, como lugar de lazer e cultura, decisões compartilhadas, ou refúgio de uma vida familiar violenta.

    É extensa a produção de artigos, livros, estudos, dissertações e teses que criticam esse ou aquele modelo de ensino, o sistema educacional ou a estrutura escolar. Inúmeras propostas e experiências são sugeridas e criadas para tornar a escola mais humana, mais atrativa, mais eficiente. No entanto, nenhuma delas ousa tocar na continuidade da escola.²

    Muito se diz e escreve sobre seus problemas, mas quase nunca se questiona a necessidade da escola. Ao contrário, encontram-se meios, hoje em dia, para ampliar as suas funções e atrair os alunos para seu interior, ao mesmo tempo em que as crianças devem ser escolarizadas desde pequeninas, frequentando diversas escolinhas de complementação para a formação física e de iniciação em idiomas e artes.

    O Estado não admite a educação de crianças pelos próprios pais, assim como regulamenta o funcionamento de todas as escolas. Estas se tornaram, sob a rubrica educação, um monopólio de Estado, cuja procedência jurídica vem da Constituição de 1824, passando por várias revisões que levaram ao Ministério da Educação e Saúde no Estado Novo e às várias Leis de Diretrizes e Bases em 1961, 1971 e 1996. No texto tanto da Lei Federal mais recente (nº. 9.394 de 1996) quanto de sua complementação (nº. 12.061 de 2009), a educação é entendida como monopólio do Estado em suas atribuições de oferecimento de instituições específicas e de fiscalização em instituições particulares, e extensiva ao mundo do trabalho e à prática social (art. 1º, parágrafo segundo). Esse imperativo se justifica com base no reconhecimento das limitações da escola, da necessidade de reformas, da introdução de novas ideias, pedagogias e atividades, que, no entanto, não estimulam uma reflexão a respeito das suas inutilidades.

    A escola é uma instituição analisada e reformada sempre pelo que lhe falta, pelo que deve ser acrescido, e raramente pelo que produz e faz funcionar. Ao preencher lacunas, empreende-se o itinerário de reformas dos sistemas de ensino, currículos e prédios escolares. Investe-se na capacidade de fazer da escola uma plataforma de lançamento criativa e novas utilidades inteligentes e capitalização das liberdades criativas do sujeito.

    Uma breve história do presente escolar

    A escola é o lugar da disciplina. Ela serve para ensinar obedecer às regras e seguir conhecimentos determinados por padrões curriculares nacionais. Num passado não muito distante, ela não se dispensava dos castigos físicos como meio para obtenção de uma boa formação. A palmatória, a humilhação diante dos colegas, as separações e as demarcações claras entre bons e maus alunos no interior das salas de aula compunha os castigos de toda sorte. De certa maneira, eles ainda habitam o imaginário dos adultos escolarizados e de alguns professores saudosos dos tempos passados quando a rigidez pedagógica era sinônima de progresso e de acesso à educação universal.

    A autoridade do professor era amada e temida, e cada aluno via nele uma poderosa autoridade moral capaz de castigá-lo e, ao mesmo tempo, um benfeitor que zelava por sua boa formação.

    Em meio à organização disciplinar da escola, que no Brasil data do começo do século XX e remete a uma tradição jesuítica de ensino, estabeleceu-se uma cadeia de comandos pela qual as decisões eram transmitidas da diretoria ao aluno, passando por uma escala hierárquica que atravessava inspetores, professores e a autoridade reconhecida entre os próprios educandos que zelavam pelas regras estabelecidas na escola. Essas decisões contavam com o consentimento de cada aluno uniformizado e obediente, que garantia e reproduzia o bom funcionamento escolar.

    O problema aparecia quando um estudante quebrava esse circuito, desacatava o professor, ignorava o bedel, burlava a boa apresentação do uniforme ou infringia uma ou mais regras. Nesse momento, nascia o grande problema a ser equacionado, que era identificado, imediatamente, pelas autoridades escolares como indisciplina.

    Fabricava-se o problema que justificava e reiterava a necessidade da aplicação e reprodução do castigo, em favor da disciplina para aqueles que não tinham sido capazes de introjetar a conduta correspondente às regras de bom comportamento, que serviam para prepará-lo para uma vida adulta de trabalhador e cidadão corretos e respeitosos das leis e normas da sociedade.

    Essa indisciplina, que emergia como uma forma de resistência ao imperativo disciplinar, era, ao mesmo tempo, seu produto direto, para o qual a escola já tinha uma resposta imediata, sob a forma de punição direcionada, cujo objetivo era o de corrigir a anormalidade ou o desvio. Pelo combate ao aluno indisciplinado, instituíam-se os dispositivos disciplinares que governavam a vida e a conduta do conjunto dos alunos, tivessem eles infringido a norma ou não.

    Ao esgotar as aplicações de castigos físicos, broncas, advertências, suspensões e comunicações à autoridade familiar, cessava o regime disciplinar com suas previsíveis tolerâncias e a criança ou o jovem indisciplinado era expelido do prédio e da convivência escolar. Restava-lhe o encaminhamento a outra escola, ou ganhar, definitivamente, as ruas. Ficava disponível a outras transgressões e a se tornar o perigo que rondava a porta da escola, muitas vezes associado ao uso de drogas e outros comportamentos moralmente reprováveis, como a incitação sexual. Perambulando pelas ruas, becos e avenidas, vivenciando múltiplas condutas inquietas e muitas vezes ilegais, tornava-se suspeito até ser novamente encarcerado em outra instituição disciplinar, agora destinada aos jovens infratores.

    Chegava-se, assim, ao produto direto da disciplina como maneira de produzir um bom cidadão, em que o fracassado escolar se juntava aos que nem à escola chegaram: os destinados desde o nascimento a preencher a margem complementar do insuportável para a escola. Esses marginalizados compunham um duplo com os indisciplinados para justificar mais proibições, repressões e ampliar a rede de castigos. Aos que não atingiam o rompimento restava o exercício regular dos castigos cotidianos e o medo, misturados com o fascínio em passar para o outro lado. Nesse circuito de violências, segundo a disciplina escolar, o desvio vinha de fora, e devia ser identificado e expelido.

    Esse foi um tempo em que a violência e as drogas estavam do outro lado dos muros; eram demônios a rondar as mentes de pais, professores e funcionários, e a provocar sedutoras tentações na mente e no corpo dos alunos bem-comportados. Demônios a serem expelidos para a rua: o espaço a ser desfrutado apenas como passagem e com muito cuidado, evitando a sedução dos satânicos agentes de drogas e violências.

    A rua era vista como livre e perigosa, por admitir os itinerários do jovem egresso da escola devido a seu comportamento indisciplinado e até mesmo o do inocente, mas suspeito, vendedor ambulante que poderia oferecer bem mais que balas ou pipocas para os indefesos alunos uniformizados. Os agressivos, indisciplinados e drogados eram identificados como perigosos e desajustados a serem afastados do convívio com os que estavam sendo preparados para serem cidadãos de bem e de bens.

    Foi o tempo em que escola para todos era uma utopia liberal em vias de se efetivar num futuro que, naquele momento, ainda estava distante. As escolas deveriam ser preservadas da sujeira, do perigo e da miséria que rondava as ruas, até chegar o momento de se abrir para acolher os pobres e melhor educá-los para o trabalho. Nesse momento ainda se restringia a função disciplinar positiva assinada por Michel Foucault, em Vigiar e punir, como local produtor de indivíduos úteis economicamente e dóceis politicamente.

    Antes de tudo isso, no início do século XX, em especial no Brasil, as experimentações anarquistas em educação criaram outros espaços, onde os operários analfabetos e seus filhos estudavam alheios ao regime das disciplinas. Educavam-se dispensados de castigos, separações etárias ou por sexo, e divisões disciplinares de saberes e suas exigências de docilidade e utilidade. Inventavam uma maneira de existir e educar na luta contra a ordem, produzindo uma infinidade de jornais, revistas e livros, em qualquer lugar, e em função da realização de sua utopia de sociedade livre e igualitária. Inventavam um mundo no qual educar era também educar-se para a luta e na luta contra as explorações e as dominações.

    A disciplina, entretanto, deixou suas marcas nos corpos e na memória dos alunos da escola tradicional. Ainda que as novas tecnologias de ensino e aprendizagem pretendam suprimir os castigos físicos, o aspecto externo dos prédios permanece e os castigos físicos e morais exercidos pela família em nome de uma boa conduta escolar seguem como constantes na educação de crianças e jovens. Além disso, a disposição espacial interna em salas de aula celulares, ainda que com carteiras móveis e não mais necessariamente enfileiradas, continua semelhante à prisão, ao hospital ou a uma antiga fábrica, apesar das quadras, salas de projeção, auditórios coloridos, computadorizados e compartilhados.

    A escola e seus problemas…

    Entre os problemas tratados como um dos mais recorrentes na vida escolar está o uso de drogas e o comportamento violento dos estudantes com autoridades de ensino e entre eles mesmos. São problemas colocados como prioritários, geralmente relacionados à violência exterior e à contemporânea difusão do uso de drogas ilícitas. Todavia, a escola fecha os olhos para o uso cotidiano de medicamentos prescritos, segundo diagnósticos feitos a partir do desempenho escolar ou com base na identificação de transtornos que interferem no rendimento do aluno ou na convivência com os outros colegas.

    Ao mesmo tempo, a escola combate a violência interna, segundo um conjunto de normas repressivas. Dessa maneira, a violência está fora, as drogas estão do lado de fora, a administração de medicamentos é responsabilidade dos pais e os entrechoques internos são respondidos de acordo com os regramentos reformulados com base no castigo.

    Ao se perguntar sobre o problema das drogas e da violência nas escolas hoje, é preciso estar atento à sociabilidade que ela engendra entre os estudantes, aos fluxos que atravessam a escola e a experiência escolar, à política que rege a vida dos estudantes, professores e funcionários e, por fim, a quanto dessa violência não é produzido por uma sociedade extremamente escolarizada. E mais: a quanto a escola não se constitui como violência, moral e física, dosada, posologicamente, sobre os corpos e as mentes de crianças e jovens. Não é possível que se acredite, ainda hoje, que atos de extrema violência entre jovens altamente escolarizados, como os noticiados regularmente nas escolas e seu entorno, seja fruto apenas de uma mente perturbada, uma vida familiar fracassada ou uma alegada perversão psíquica a ser regulada pelos saberes psiquiátricos.

    A primeira evidência está na multiplicação dos programas³ paraescolares e nas ações chamadas extracurriculares, realizados por ONGs, institutos e fundações. Estes atuam dentro e fora das escolas, próximos das Secretarias de Educação e Cultura, e implementam programas destinados, em grande medida, à formação complementar e contínua de alunos, professores e funcionários, não raramente preocupados com a violência e as drogas nas escolas e em seu entorno.

    São problemas tratados de forma estendida e contínua, operando segundo as utopias de paz, tolerância, segurança e proteção que devem ser construídas e produzidas com o envolvimento dos pais e da comunidade em torno das escolas, num fluxo que inclui governos e sociedade civil em escolas estatais e privadas.

    Entre os diversos exemplos imediatos e contemporâneos estão programas como Escola da Família e o Sistema de Proteção Escolar, desenvolvidos pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo; o Programa Nacional de Resistência às Drogas (Proerd), realizado pelas polícias militares de quase todos os estados da federação; o Amigos da Escola, programa de voluntariado escolar, de abrangência nacional, do Sistema Globo de Telecomunicações. Enfim, há uma variedade de programas que abarcam governos, empresas, mídias, fundações, institutos, corporações policiais e a comunidade para governar a salvação da escola dos males das drogas e da violência, para produzir o cidadão participativo, organizado, incluído, integrado e com compaixão cívica.

    Seus objetivos giram em torno de

    [...] promover um ambiente escolar saudável e seguro, propício à socialização dos alunos, por meio da prevenção de conflitos, da valorização do papel pedagógico da equipe escolar e do estímulo à participação dos alunos e sua integração à escola e à comunidade […] Reafirmando a escola como um espaço privilegiado para a construção da cidadania participativa e o pleno desenvolvimento humano.

    Os programas pretendem difundir práticas que celebrem esse envolvimento solenemente, certificando e criando rituais de compromisso, como na descrição da formatura dos alunos que participam do Proerd, no qual todos recebem um certificado de conclusão do curso, quando o aluno formando presta o compromisso diante da família e autoridades presentes, a resistir às drogas e à violência; celebra-se assim, a parceria entre a Escola, a Polícia Militar e a Família.

    Esses são alguns exemplos de como os chamados problemas das drogas e da violência são tratados como conflitos a serem equacionados, por meio do diálogo e da participação democrática. Com isso, amplia-se a variedade dos comportamentos que se tornam alvo de uma sentença, não mais restrita ao exercício da autoridade escolar, mas compartilhada pelos pedagogos, psicólogos e até juízes associados aos integrantes da comunidade escolar e do entorno do bairro.

    Busca-se produzir uma educação para o perdão, como anunciam as notícias sobre os programas de justiça restaurativa em São Paulo e no Rio Grande do Sul.⁷ Os eventos que se restringiam ao ambiente escolar e eram definidos pela quebra das normas da escola agora são passíveis de serem tratados como eventos de justiça criminal e recebem uma sentença da comunidade, acompanhada do perdão, pela qual reafirma a sua ascendência sobre as crianças e os jovens, por meio da escola.

    Essa expansão do tribunal na escola como forma de resolução de conflitos encontra na justiça restaurativa sua mágica e milagrosa solução. No dia 15 de março de 2012, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo anunciou a celebração de um contrato de cooperação com o Ministério Público Federal para um projeto de capacitação de professores voltado ao aumento da segurança nas escolas. O resultado desse contrato não foi, até o momento, a redução da violência, mas a transmutação da figura mais temida em um tribunal, o promotor de justiça, em educador de professores.

    Segundo nota publicada no jornal O Estado de S. Paulo, que revelou, em 2010, uma taxa de 62% das escolas estaduais com registro de violência: O objetivo é que mil educadores façam um curso presencial de conceitos introdutórios de Justiça Restaurativa, modelo de resolução pacífica de conflitos, ministrados pelo promotor Antonio Carlos Ozório Nunes, especialista no tema. O promotor explica que esses educadores atuarão como multiplicadores.

    A minúscula nota de jornal vai além ao mostrar a abrangência e multiplicidade da parceria na formação de professores-multiplicadores:

    Haverá também curso à distância sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e Direitos Humanos para 3 mil diretores, vice-diretores, professores-mediadores e representantes regionais do Sistema de Proteção Escolar. A secretaria também organizará 15 encontros regionais entre promotores e profissionais das diretorias de ensino, para fortalecer parcerias locais. Cerca de 200 escolas com histórico de violência serão visitadas. Também serão promovidas três videoconferências, destinadas a até 3 mil educadores que não tenham participado das capacitações, além de outros eventos.

    Da mesma maneira, os casos de vínculos com o tráfico de drogas e violência contra crianças são encaminhados aos Conselhos Tutelares. Estes funcionam como delegacias para questões envolvendo crianças e jovens, sem abrir mão da intervenção da polícia repressiva e compondo, enfim, processos de judicialização que se escoram, preferencialmente, nas escolas, constituindo um tribunal da comunidade e produzindo casos para o sistema penal.

    Essas práticas e programas compõem um conjunto de flexibilizações democráticas que salvam a escola de uma implosão da rigidez da autoridade disciplinar, ampliando suas funções e criando novas demandas de atuação. Ao mesmo tempo, fazem da escola um lugar querido na comunidade, que deve ser amado e respeitado por todos desde pequeninos. São maneiras, enfim, de ampliar o controle escolar e manter a escola necessária e inquestionável, não apenas como acesso aos conhecimentos universais, mas como o indispensável lugar de educação para a paz, a justiça, o castigo e o perdão como verdades do princípio de governo para cada um, a comunidade e o bairro. Espraia, assim, o governo de crianças e jovens para além dos muros da escola, mas a partir da própria escola.

    Drogas e violência nas escolas de hoje

    O tempo das disciplinas na escola não passou. Ele continua, mas hoje está atravessado por vários fluxos de controles e isso também modifica a relação com as drogas e a violência. Os governos tomam forma de maneira a incorporar os próprios governos nas ações de controle de condutas, como controle de si e dos outros num entendimento da educação para cidadania como formação do cidadão-polícia.

    Se antes interessava expelir os que traziam o mal para o convívio escolar, a flexibilização das práticas disciplinares austeras e a democratização do acesso ao ensino mudaram a relação da escola com as drogas e a violência. Serão outros os perigosos a serem combatidos, e outra relação da escola com a indisciplina se estabelece.

    Permanecem o castigo e a disposição disciplinar dos corpos no espaço, mas se o que estava em questão era expurgar o demônio das drogas e da violência, agora as práticas escolares se voltam para a administração dos conflitos como prevenção à violência e outra relação com as drogas lícitas e ilícitas. Há, nas atuais práticas escolares, uma elastificação dos controles que respondem às metamorfoses das tecnologias de governo, que respingam os novos meios pelos quais se conduzem condutas por uma racionalidade neoliberal, como analisada e exposta por Michel Foucault (2008) em curso de 1978-1979.

    Diferente do que se passava na sociedade disciplinar, o indisciplinado, na sociedade de controle, não se resume ao desajustado que deve ser corrigido pelo castigo ou expulso em favor da conduta correta e da observância das normas. A escola, com acesso e método democratizados, criou dispositivos de inclusão, absorvendo os antigos marginalizados.

    A austeridade da autoridade escolar se flexibiliza em favor da expansão dos controles para uma variedade de sujeitos incluídos em modulações de condutas esperadas e de rápida absorção, regulada ao funcionamento da instituição. A professora austera cede lugar aos gentis professores que operam num regime de amabilidades em que o exercício do castigo não se faz no momento decisivo de sua aplicação, mas num processo contínuo de avaliação que visa promover a adesão às condutas e a cumplicidade no exercício e produção das regras, como bem explicita os investimentos em justiça restaurativa.

    A obtenção da obediência escolar se torna, assim, mais eficiente ao envolver os alunos com a flexibilização da autoridade, ao mesmo tempo em que se expande a centralidade dos controles. Os comandos dos programas se sobrepõem à palavra de ordem da autoridade, e o que produz docilidade e assujeitamentos não é mais, necessariamente, o reconhecimento e a obediência à autoridade, mas a composição e o compartilhamento do processo. Arriscaria, na conversa entre pesquisadores e trabalhadores da educação, num processo democrático e socioconstrutivista da obediência, que não se furta às dissimulações e hipocrisias por parte de professores e alunos.

    A separação dos alunos por sexo e faixa etária cedeu lugar à administração de competências pelos processos de avaliação contínua. O uniforme permanece como marca indispensável, mas agora é produzido com a colaboração dos próprios alunos por meio de concursos de design e logomarcas. Aceitam-se, com maior ou menor complacência, os adornos que localizam subgrupos e identidades transitórias.

    O bedel agora conta com uma torre de monitoramento televisivo, que atualiza sua antiga ronda de sala em sala, lembrando a todos que tudo está sendo gravado. Enfim, os alunos antes divididos em obedientes, perigosos e desajustados são incluídos em sequenciamentos diferenciados, que abarcam do encrenqueiro ao portador de deficiências metais ou físicas.

    O espaço se encontra mapeado e disponível a adaptações e acessibilidades a regras administradas por profissionais da Assistência Social, da Psicologia e da Pedagogia, como gestor escolar, sem deixar de recorrer, quando necessário, à polícia comunitária e ao Conselho Tutelar.

    São novas maneiras de intervenções, negociações e tratamentos em favor da boa saúde e da boa educação para potencializar o que as teorias administrativas chamam de capital configurado na criança.¹⁰ No exato instante em que o aluno se viu mais livre dos castigos disciplinares, ele passou a avaliar, racionalmente, que cometer uma indisciplina lhe será desfavorável, não pela punição que viria da autoridade superior, mas pela revelação de sua falha e de como isso pode lhe anunciar, no futuro próximo, a vida de perdedor. Ensina-se, além da obediência, a operação de um cálculo racional de perdas e ganhos que o aluno levará para sua vida adulta como referência de sua conduta parametrada pelo sucesso. Se a escola continua sendo o local onde se ensina a obediência aos futuros cidadãos de bem, hoje, suas reformas apontam para uma conduta obediente e eficiente com referência aos investimentos em capital humano.

    A democratização do acesso à escola e a participação nos métodos de ensino ampliou o raio de controle para dentro e para fora. A escola se torna o lugar de visibilidade total com a capacidade de absorver e administrar uma variada combinação de assimetrias, em seu interior, na comunidade e no bairro.

    A droga também está incluída num regime de sequenciamento e distribuição de usos e abusos que vão dos analgésicos autoadministrados e do álcool tolerado em festinhas colegiais à posologia de remédios prescritos para as novas doenças escolares como a dislexia, hiperatividade e o transtorno de déficit de atenção, e até o atravessamento do tráfico de drogas no interior da escola.

    O mesmo ocorre com a violência entre alunos e seus grupos dentro da escola e, por vezes, contra os professores. Ela encontra explicações e justificativas psicológicas e sociológicas, que vão do atual bullying, o mais recente objeto de preocupação de pedagogos, psicólogos e trabalhadores da educação, até intervenção policial contra gangues, chamadas de bondes, e suas ligações e proximidades com a conduta e atuação das chamadas organizações criminosas.

    Não está mais em jogo expurgar esses demônios do convívio escolar e expulsá-los da escola. Ao contrário, há uma política voltada para criar dispositivos capazes de mantê-los próximos, à vista, monitorados e, de preferência, funcionando a favor do indispensável papel da escola como espaço de convivência da comunidade. Assim, entende-se o uso, cada vez mais comum, de sistemas de aprovação continuada e convocação à participação dos alunos para a produção de regras escolares, e é nesse momento que o problema individual vira a solução exemplar para todos, revelando a eficiência do castigo introjetado, democratizado e compartilhado.

    A escola encontrou seu caminho seguro e tranquilo para seguir sua existência inquestionável, sua função indispensável na formação de cada cidadão. No entanto, a amável e democrática maneira de funcionar mostra sua face macabra. A despeito de tanta compreensão, ciência, diálogo e participação, ou exatamente pela presença deles, nunca se noticiaram tantos eventos de violência entre jovens escolares.

    Num rápido exercício de memória recente, não será difícil recordar alguma notícia que remeta a uma humilhação registrada por celulares e disseminada, rapidamente, em redes sociais. Pode ser a morte ou hospitalização de algum jovem escolar em meio a uma festinha colegial, por consumo excessivo de álcool ou por uma briga envolvendo parceiros sexuais, divulgada entre colegas. Pode ser a morte ou hospitalização, por linchamento ou uso de arma branca ou de fogo, de algum jovem escolar após um entrevero na porta do colégio, pelos motivos mais banais, estampada nas mídias e compartilhada entre usuários de celulares inteligentes e internet. E assim chegaremos, finalmente, à constatação que os serial killers, como os da escola de Columbine, não são uma produção exclusiva da cultura bélica estadunidense, mas efeito da escolarização continuada na produção de seus losers e seus winners.

    Diante disso, é preciso que cada um, professor ou estudante, se pergunte: como democracia, diálogo e compreensão favorece essa incrível disseminação de condutas fascistas cotidianas?

    E resta um paradoxo. Na nova escola, enquanto os alunos indisciplinados se ajustaram pelo aprendizado do controle de si diante de regras produzidas conjuntamente, é o professor arrojado capaz de instigar revolta e mostrar com seus gestos os limites dessa encenação democrática e participativa que se torna insuportável. E nessa hora, não há voz de aluno que se sobressaia ao poder do gestor escolar que sumariamente o demite, sob o olhar conivente e aprovador dos pais.

    O imperceptível e o estranho aos controles

    Cabe a cada estudante entregue a essa variedade de controles e regulações, e disponível aos diversos dispositivos de participação que o convoca a ser o delator e o juiz de seu colega de sala, de seu amigo de intervalo ou de futebol, até mesmo de seu professor, se perguntar ao que ele está sendo levado a servir. Como suportar tamanha exposição e visibilidade que redundam em violência a esse cara que está ao seu lado? Como se satisfazer com o desejo maluco de fazer parte do sistema escolar, apontando para um alvo que, no dia seguinte, pode ser você?

    Se mesmo as ruas, que atiçavam a curiosidade ao desconhecido, estão codificadas, onde estará a possibilidade de escapar aos controles, de se educar para uma vida livre, liberada dos castigos, das acusações mútuas, das avaliações contínuas e das condutas dissimuladas e compartilhadas de uma obediência transparente?

    Referências

    ESCOLAS utilizam mecanismos de justiça restaurativa para resolver conflitos. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2010.

    FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO – FDE. Sistema de Proteção Escolar. Disponível em: <http://www.fde.sp.gov.br/PagesPublic/InternaSupervisao.aspx?contextmenu=supprot>. Acesso em: 13 fev. 2014.

    FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-79). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002.

    PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.

    PASSETTI, Edson; AUGUSTO, Acácio. Anarquismos e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

    SALDAÑA, Paulo. Parceria busca mais segurança nas escolas. Disponível em: . Acesso em: 8 jun. 2013.

    SÃO PAULO quer ampliar prática de justiça restaurativa nas escolas. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2010.

    SCHULTZ, Theodore W. O capital humano. Investimentos em educação e pesquisa. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

    SENNETT, Richard. Carne e pedra. Tradução de Marco Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 2003.

    POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Proerd. Disponível em: <http://www.proerd.rn.gov.br/contentproducao/aplicacao/sesed_proerd/principal/enviados/index.asp>. Acesso em: 13 fev. 2014.

    ¹ Texto originalmente publicado na Revista Verve com o título Escola, uso de drogas e violência. Revisto e modificado, incorporando discussões decorrentes da apresentação oral no colóquio realizado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

    ² Das diversas propostas que buscam reformar e ampliar a escola como maneira de administrar indisciplinas e salvar as funções sociais dessa instituição, a Escola da Ponte, projeto para escolas estatais do educador português José Pacheco, e a Internacional Democratic Education Conference (IDEC), que inclui, no Brasil, a escola Lumiar, são as experiências que levam mais longe a democratização e a gestão compartilhada da vida escolar. Para uma análise mais detalhada das implicações de controle e governo das escolas democráticas, ver Passetti e Augusto (2008, p. 74-77).

    ³ A palavra programa é aqui utilizada, para além de como eles mesmos se denominam, como traço característico das tecnologias de governo na sociedade de controle (PASSETTI, 2003).

    ⁴ Refiro-me à noção encontrada em Sennett (2003, p. 300-306).

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    ⁷ Como é possível verificar nos sites do Movimento Nossa São Paulo () e no Observatório da Educação ().

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    ¹⁰ O investimento estatal e familiar em saúde e educação, como maneira e fomentar o capital humano, toma como ponto de partida e elemento chave o capital configurado na criança, formado por elementos da educação familiar, formal e características hereditárias: A formação do ‘capital configurado na criança’ pelo lar, pelo marido e pela mulher começaria com a educação dos filhos e prosseguiria ao longo de sua educação por todo período da infância (SCHULTZ, 1973, p. 9).

    capítulo 2

    Por uma ontologia política da (d)eficiência no governo da infância

    Alexandre Filordi de Carvalho

    Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício.

    Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

    (D)eficiência e nosopolítica no governo da infância

    Mediocridade dourada é a expressão que Nassim Taleb (2009) cunhou para se referir à sociedade pós-iluminista, permeada pela noção de média. A média firmou-se, desde então, na busca idealizada por relações sociais equilibradas e harmônicas. O homem médio de Quételet é o exemplo perfeito. Ao que escapasse da média, portanto do equilíbrio em jogo, pesava toda sorte de tentativa de correção e de retorno para a média. Do contrário, seria um desvio, um desvio do padrão, divergência da média, erro, anormalidade. A noção do homem médio é calcada na cultura que assistiu ao nascimento da classe média europeia (Taleb, 2009, p. 304), cultura avessa aos riscos, ansiosa por segurança e, não à toa, disposta a criar todo tipo de estratégias para modelar as incertezas.

    Coextensiva à aurea mediocritas da cultura ocidental emergiu as combinações entre média e hierarquização de grupos de indivíduos mais capazes e menos capazes; séries combinadas de distribuições entre todo tipo de desvio de um referencial médio qualquer: território mais saudável e mais insalubre, regiões mais seguras e perigosas, grupos dos indivíduos mais produtivos e grupos dos vagabundos, a fixação de padrões para indivíduos saudáveis e não saudáveis, os códigos socionormativos determinantes dos cidadãos exemplares e dos pulhas e perigosos à sociedade. A consolidação das necessidades das estratégias de governo, por derivação, veio a se cristalizar, sob tal cenário, por intermédio do efeito das justificativas de ligações preferenciais com a média normal capaz de reivindicar todo tipo de proteção à sociedade. Era preciso, assim, criar mecanismos para defender a sociedade de todo tipo de desvio da norma.

    As pesquisas de Foucault (2001, 2002, 2004a, 2004b) demonstram a importância dos múltiplos segmentos e das formas de governo em torno dos objetivos de se assegurar o equilíbrio social por intermédio da eficácia da normalidade. A partir do final do século XVIII, com a incontornável busca pela média, explode em nossa história quantidade inesgotável e sempre aperfeiçoada de artes de governo. Governar o homem não se tratava mais de um problema meramente jurídico, circunscrito às ordenanças do direito e dos domínios soberanos do Estado. Nas artes de governo, o homem passou a ser reunido, ordenado, classificado, distribuído, utilizado e produzido por forças associativas e excludentes conforme cada papel e finalidade a ele propostas.

    Com a multiplicação das artes de governar, entramos na era da governamentalidade: tudo o que diz respeito à existência humana, de maneira individual ou coletiva, tornou-se passivo de objeto de comando, de ordenação, de alinhavo, de controle, de saberes, de gestão, de medida e de cálculo, de organização e de aperfeiçoamento das funções preestabelecidas pelos dispositivos de governo. Podemos dizer, de modo bem amplo que, para Foucault, a questão das formas de governo se dispôs na seguinte dimensão: como governar crianças, como governar os pobres e os pedintes, como governar a família, a casa, como governar exércitos, como governar diferentes grupos, cidades, estados, como governar o próprio corpo, como governar a própria mente (1996, p. 384).

    A especificidade de cada forma de governo, desde então, coincide com o refinamento de suas respectivas finalidades na medida em que passamos a testemunhar a prevalência da nosopolítica, conforme expressão de Foucault (1994b), enquanto modus operandi de se forjar tipos distintos de classificação entre indivíduos e grupos humanos. A nosopolítica é a arte de governar os homens pela classificação, uma vez que, em nossa sociedade, foi introduzida irremediavelmente as diferenciações entre os indivíduos para efeitos classificatórios. Apenas assim foi possível emergir governos múltiplos em intenções as mais variadas possíveis.

    Tomemos um exemplo. Para haver governo da infância, foi necessário criá-la como objeto de análise, de classificação e de diferenciação. A nosopolítica que contorna a infância e a governa é a mesma que vai lhe autorizar uma nosoinfância: infância classificada em etapas, em processos, em condições determinadas; proposições de limites para o seu início e o seu término, reunião de médias igualitárias e, por consequência, hierárquicas – crianças sadias, doentes, delinquentes, exemplares, bons e maus futuros cidadãos, crianças normais e anormais; infância coligida nas estratégias de governo, pois é preciso defender a infância, conceder a ela o que lhe é de direito – mas não tudo – educar a infância, tratar a infância, socializá-la, medicalizá-la, lançá-la nas estatísticas de governos, enfim, fazer a infância existir.

    Mais do que um exemplo, o governo da infância coexiste em nossa história de modo privilegiado. Segundo a abordagem de Foucault, a infância foi o foco precípuo de todas as estratégias de governo. Em primeiro lugar, pelo fato de ela emergir correlacionada à população e aos interesses socioeconômicos de se produzir um número conveniente de indivíduos conforme a distribuição das energias demandadas a todo tipo de produção social: geração e gestão de riqueza, da saúde, da aplicação de saberes, de distribuição e aproveitamento das forças de trabalho, enfim, infância como promessa de renovação política dos códigos convenientes à construção de uma sociedade normal. Nesta sociedade, a infância consolida-se na população. Ambas, neste caso, são objetos de vigilância, de análise, de intervenções, de operações modificadoras (Foucault, 1994b, p. 18). Por isso mesmo, a infância deriva-se das equações associadas ao projeto de uma tecnologia da população:

    [...] estimativas demográficas, cálculo de pirâmide das idades, diferentes expectativas de vida, taxas de morbidade, estudo do papel que desempenha, um para o outro, o crescimento das riquezas e o da população, diversos estímulos ao casamento e à natalidade, desenvolvimento da educação e a formação profissional (

    Foucault

    , 1994b, p. 18).

    No coração da população, a infância soava como prenúncio de sua possível renovação, espécie de dobradiça entre o velho e o novo. Desde cedo, juntamente com a saúde, um dos primeiros objetos de atenção da família, célula maior da sociedade. Uma das razões de ter sido assim foi o fato de que, paralelamente a tal dimensão, em segundo lugar, a infância passou a prenunciar o que Foucault designou de armadilha de pegar adultos (2001, p. 387). Sagradas as estratégias de normalização social pelos mecanismos de controle individuais e coletivos, justificados por intermédio das grandes ordens de saberes normalizadoras, tais como a Medicina, o Direito, os discursos formadores presentes nos aparelhos de correção, de ensino, de trabalho, de conduta, a infância começou a aludir sobre o adulto e o adulto, sobre a própria infância.

    Corrigir, educar, controlar, medicalizar a criança é evitar o descaminho do adulto virtual que nela há. O contrário é verdadeiro. Qualquer possibilidade de desvio normativo por parte do adulto, como Foucault demonstrou em Os anormais (2001), é o suficiente para que os olhares perscrutadores busquem na infância do adulto a origem de seus desvios. Dessa forma, o corpo da infância nunca se apaga no corpo do

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