A Extensão dos Limites Objetivos da Coisa Julgada: a importância do instituto
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A Extensão dos Limites Objetivos da Coisa Julgada - Abner Teixeira de Carvalho
Bibliografia
CAPÍTULO I. APONTAMENTOS HISTÓRICOS
1. HAMURABI
O instituto da Coisa Julgada é muito mais antigo do que comumente se pensa, e isto acontece porque normalmente partimos dos estudos desenvolvidos pelos romanos, deixando de considerar que existem históricos que remontam mais de 3.700 anos.
Jordi Nieva-Fenoll³ cita como recompilação legal mais antiga o chamado Código de Hamurabi
(século XVIII a.C), sendo que neste antigo texto já se encontra registros que determinam a evidente adoção do instituto da Coisa Julgada como a conhecemos.
Claro, não da forma específica como se conhece o instituto no direito moderno, mas já se apontava a evidente preocupação de que os problemas solucionados não mais voltassem a ser discutidos.
Algo extremamente importante, pois os pilares do que se entenderia como a Coisa Julgada são facilmente reconhecidos neste antigo registro histórico.
A compilação de regras que acabou recebendo a denominação de Código de Hamurabi, já determinava que se o juiz que julgasse determinada causa novamente, alterando o que foi decidido, sofreria a pena de exclusão do cargo, não lhe sendo possível voltar a julgar qualquer outra causa⁴.
Muito embora não haja menção expressa sobre o instituto da Coisa Julgada, se verifica claramente que se trata do instituto em questão, sendo que, no caso, se impõe àquele que a ofende severa pena.
A importância dada ao que fora decidido era tanto que o juiz que a desrespeitasse perderia o cargo de julgador, proibindo-lhe de julgar qualquer outra causa que fosse.
Os doutrinadores do direito, por sua vez, não registraram outra referência histórica que guardasse relação com o que se entende hoje por Coisa Julgada no período que vai do Código Hamurabi até os primeiros registros do direito romano, tanto que Nieva-Fenoll, quando aborda os textos históricos, lembra que nem mesmo nos textos bíblicos se pode verificar registro de instituto que pudesse se assemelhar ao que hoje conhecemos como Coisa Julgada⁵.
Deste registro histórico tão antigo se retira a importância de se garantir que as decisões tomadas pelo governante deveriam ser de tal magnitude que não mais voltassem a ser discutidas, pois, evidentemente, enfraqueceria o poder do governante, causando, portanto, a insegurança.
Retira-se, também, o nível de regulamentação jurídica que se praticava há quase quatro mil anos, demonstrando a importância de instituto jurídico que trouxesse segurança para as decisões emanadas do poder constituído.
O pensamento de se garantir a segurança do que foi decidido pelo órgão governante transpassou o tempo e pôde ser mais bem registrada nos documentos deixados quando do Império Romano.
2. DO DIREITO ROMANO AO DIREITO MODERNO
O direito romano, em seu período clássico (149 – 126 a.C), já apresentava indicações de que adotava algo semelhante ao instituto da Coisa Julgada como a conhecemos hoje.
Documentos antigos demonstravam a proibição de que as questões decididas voltassem a ser renovadas, editando regra de direito que proibia a renovação da ação
⁶.
Os romanos, já organizados socialmente, visando solucionar os conflitos entre os seus jurisdicionados, criaram instrumentos administrativos onde se daria o ingresso da pretensão do interessado e, seguida, de determinada resposta governamental.
Esta forma de se levar os conflitos à solução se desenvolvia por um verdadeiro processo de julgamento característico deste período clássico romano, pois tinha início nas mãos do poder público (litis contestacio) e era finalizado nas mãos de um árbitro particular (que não integrava o Estado), que apresentava seu convencimento sobre o direito então em discussão.
Era um processo que tinha início no público e solução no privado por assim dizer, quando se reconhece que o primeiro período deste processo, o litis contestacio, se estabelecia a controvérsia
, tanto no aspecto subjetivo da disputa (as pessoas que estavam litigando) como no aspecto objetivo (sobre o que se estava litigando), ocasião em que se firmavam as bases para o reconhecimento futuro de que a lide havia sido decidida e não mais poderia voltar a ser submetida a novo julgamento⁷.
Verifica-se que as bases do que seria julgado e assim entendido como algo semelhante a Coisa Julgada eram fixadas na fase em que o Estado comandava o processo, ficando clara a preocupação de não se deixar ao particular (que era responsável pela segunda fase) determinar os limites subjetivos e objetivos do processo que, ao final decidido, não mais poderiam voltar à discussão.
A questão é que as relações jurídicas, na medida do desenvolvimento social, foram ganhando complexidade, o que levou a alteração do sistema até então adotado, em que se iniciava o processo pelas mãos do poder público e o seu julgamento se dava nas mãos do particular escolhido.
Não é difícil concluir que o número de causas aumentou e o sistema adotado demonstrou-se não tão eficaz como outrora.
De fato, pode-se imaginar a dificuldade em se respeitar as decisões já estabelecidas, justamente pela ausência de segurança jurídica quanto aos registros das decisões privadas, sem o que não se poderia ter a certeza do alcance e do que foi efetivamente decidido.
A partir de então, se estabelece o que foi chamado de período formular, em que a segunda fase de decisão passou para as mãos, também, do poder público, o que, de fato, elevou a segurança jurídica das decisões, vez que tanto a definição da lide como seu julgamento ficariam registrados pelos órgãos do poder estatal.
Daí concluirmos que o elemento determinante para a mudança destas fases do processo romano, onde antes tinha início por determinação do poder público (que estabelecia quais partes litigariam e qual o objeto do litígio), mas era decidido pelo particular escolhido, para tão somente o poder público dar início e fim ao processo, era a busca da maior segurança jurídica do que seria decidido, aumentando a garantia de que a discussão não voltaria a ser travada.
Um maior controle, portanto, das decisões que resolviam as questões postas ao poder público, ou seja, maior centralização e confiabilidade do que fora apresentado para solução do poder constituído.
É a segurança jurídica como elemento de estabilidade social, pois as decisões tomadas pelo poder constituído seriam respeitadas pelo próprio poder constituído, o que, por certo, fortalecia o julgado⁸.
A força do julgado, que representava a proibição de novamente ser rediscutida a mesma controvérsia já poderia ser tomada como um primeiro efeito da consolidação do que fora decidido, pois ficaria o próximo julgador, ao se deparar com a mesma discussão, proibido de voltar a analisá-la.
Um verdadeiro efeito negativo da coisa julgada, como a conhecemos hoje em nossa legislação.
José Ignácio Botelho de Mesquita registrou que aludida posição adotada pelos romanos se fundava na exceção da coisa julgada (exceptio rei judicatae), onde se garantia que o julgado primitivo estaria seguro e não poderia voltar a ser discutido⁹, demonstrando a força do instituto da Coisa Julgada já em seu princípio.
O Império Romano representou o domínio de inúmeras regiões do mundo antigo, o que levou sua cultura administrativa, social e jurídica para uma infinidade de povos que estariam sob sua autoridade.
O direito romano, assim, foi disseminado para vários povos, muitos deles que sequer tinham chegado a desenvolver sua estrutura de solução de litígios, ou seja, muitos deles nem mesmo se utilizavam de meios próprios e previamente estabelecidos na solução dos conflitos porventura gerados entre os seus jurisdicionados.
E, mesmo com o fim do Império Romano, boa parte do que foi construído pelo direito então empregado perdurou, mesmo porque a fragmentação deste império não ocorreu repentinamente e muito dos institutos que haviam sido levados aos povos dominados seguiu incorporado ao novo cotidiano.
A fragmentação do império, aliada à ocupação de grande parte do território europeu pelos povos de origem germânica, resultou na combinação da cultura romana somada a cultura germânica, inclusive nos institutos jurídicos¹⁰.
Podemos citar o imperador bizantino Justiniano, que com base no Digesto do direito romano, formulou uma série de leis onde o instituto da Coisa Julgada é elemento fundamental e já se apresentava com características muito parecidas com as do instituto como o conhecemos hoje¹¹.
Portanto, já se podia falar no instituto da Coisa Julgada com as características que conhecemos atualmente, como os limites de seu alcance sobre as pessoas que participaram da lide, o alcance sobre o que foi efetivamente pretendido, bem como, a correlação entre o pedido formulado pelo autor e a decisão do julgador.
A nova geografia política da época não resultou no desaparecimento de certos institutos de direito até então existentes. Estes institutos acabaram sendo integrados aos vários textos legais trazidos pelos então invasores
, em especial os povos de origem germânica¹².
O direito romano, desta forma denominado, continuou a influenciar toda Europa, mesmo com o fim do Império Romano, demonstrando a força dos institutos desenvolvidos, dentre eles podemos citar a Coisa Julgada, que como já pontuamos, teve sua teoria no passado fundamentada, ganhando, com o tempo, todos os contornos teóricos atuais.
O denominado direito canônico, principalmente durante a Idade Média (476 – 1492 d.C.), período entre a fragmentação final do Império Romano e o início da formação dos Estados mais modernos, influenciou diretamente o desenvolvimento do direito não só no que diz respeito à religião, mas de uma forma geral, e pelo fato de ser o único direito escrito da época, sua propagação se viu facilitada pelas sociedades da Europa.
A exemplo desta influência, podemos dizer que determinadas regras postas na codificação canônica diziam respeito a um razoável número de condutas sociais, dentre elas, por exemplo, as obrigações do casamento, o que levou até mesmo as pessoas que não professavam a fé cristã a seguirem seus ditames de forma mais direta e natural, visto que as condutas foram sendo incorporadas ao cotidiano social.
Podemos imaginar a sociedade medieval seguindo regras de conduta social advindas do direito canônico e impostas até aos povos que não professavam a fé católica, mas devido a tais condutas estarem incorporadas socialmente, passaram a aceitá-las e a respeitá-las.
Nesta rapidíssima evolução do direito se chega ao século XVI, onde os codificadores, com base no direito romano e na influência germânica, acabaram por impor diretamente o direito como o realizavam aos povos que eram por eles colonizados.
Estamos falando, por exemplo, dos portugueses e os espanhóis, que levaram toda a base do seu direito aos povos que colonizaram.
Não podemos deixar de considerar que com o nascimento dos Estados, com a estrutura mais próxima do que conhecemos atualmente, acabou por influenciar o direito, e aqui se incluem as influências específicas dos governantes e dos povos, que com seus costumes e necessidades desenharam cada uma das legislações¹³.
Somavam-se ao direito advindo da sociedade romana-germânica, as influências do direito canônico, bem como a própria natureza e costumes dos governantes e povos que a recebiam, o que resultava no direito de cada Estado, daí a singularidade de cada legislação quando a comparamos.
Mas o instituto da Coisa Julgada apresentava, com todas estas influências, a forma de segurança jurídica que os romanos a deram, sofrendo apenas algumas alterações das influências mencionadas.
De todo o desenvolvimento do instituto da Coisa Julgada, o que podemos sentir como o marco divisório entre a doutrina chamada de antiga e a nova se deu com a vinda do magistério de Friedrich Carl von Savigny, que aprimorou o instituto da coisa julgada, em verdadeira evolução sobre a forma com que era entendida.
Chamado de salto doutrinário
por Celso Neves¹⁴, que reconheceu a evolução da construção doutrinária onde se passou a tratar a Coisa Julgada de forma tão ampla e dinâmica que impulsionou os estudos sobre a força e influência.
Savigny, dentre as inúmeras contribuições que deu ao direito, com relação à Coisa Julgada, passou a discutir as razões de se dar segurança jurídica a decisão em detrimento de eventuais injustiças, trazendo à discussão o dilema jurídico entre segurança e justiça, concluindo pela necessidade de que a segurança das relações jurídicas deve ser maior que as eventuais injustiças sofridas pelos maus julgamentos.
Ainda, pelas mãos de Savigny, surgiu a teoria que iria combater a anteriormente aceita, afastando o pensamento da presunção da verdade
como explicação da coisa julgada, para a teoria da ficção
, como veremos na apresentação das teorias a ela vinculadas.
Outras se seguiram, aprimorando o instituto, sem deixar de lembrar que no direito brasileiro relevantes doutrinadores, partindo justamente do até então debatido, desenvolveram e adequaram a Coisa Julgada até nossos dias.
Ademais, a segurança jurídica é elemento mais do que fundamental para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, daí sua relevância e o número de pensadores que se debruçaram sobre seu estudo durante muito tempo, como se viu.
3 NIEVA-FENOLL, Jordi. Coisa Julgada. Tradução: Antonio do Passo Cabral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 29.
4 Se um juiz julgou uma causa, pronunciando sentença (e) depositado o documento selado, se, em continuação, muda a sua decisão, se ficar provado que o juiz mudou a sentença que havia ditado, pagará até doze vezes a quantia que motivou a causa. Ademais, publicamente, será obrigado a retirar-se de seu assento de justiça (e) não voltará mais. Nunca mais poderá sentar-se com os Juízes em um processo
. NIEVA-FENOLL, Jordi. Coisa Julgada. Tradução: Antonio do Passo Cabral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 30.
5 Como é sabido, o Código de Hammurabi influenciou em boa parte outros Direitos antigos (prévios ao Direito romano), que seria complexo reproduzir aqui e que, ademais, apenas tiveram uma transcendência conhecida no nosso Direito. Não obstante, nos que podem ter tido certa influência não se encontram mais alusões à coisa julgada. Pelo que pude pesquisar, no que sabemos das leis assírias e hititas, não se encontram alusões a respeito. Tampouco no Direito contido na Bíblia podem-se encontrar referências, apesar de ter sido claramente influenciado pelo Código de Hammurabi em várias passagens. Ao longo de todo o Pentateuco, não se alude diretamente, em nenhuma ocasião, a nada parecido com a coisa julgada
. NIEVA-FENOLL, Jordi. Coisa Julgada. Tradução: Antonio do Passo Cabral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 33.
6 "A regra bis de eadem re ne sit actio já constituída no período clássico, vetus proverbium, de tão remota consagração que QUINTILIANO não alcançava o seu verdadeiro e original significado. Acredita-se que a vedação tenha sido objeto de uma lei anterior às Doze Tábuas, mantida consuetudinariamente e que a interpretativo iuris civilis relacionou à litis contestacio, como salienta COGLIOLO, para quem a regra significava: ‘Sobre uma e mesma relação jurídica não pode ocorrer duas vezes a ação da lei, ou seja, um processo’. [...] Pertencente ao direito romano antiquíssimo – diz COGLIOLO – a velha parêmia exige interpretação por conceitos jurídicos do seu tempo, constituindo erro grave, nas pesquisas históricas, a interpretação de fatos de uma época mediante conceitos próprios de outra mais avançada. E deste erro não se teria forrado BEKKER, ao procurar explicar toda a teoria da consumpção processual pela regra bis ne sit actio. Também KLEINSCHROD e KRÜGER intentaram dar à palavra actio um significado preciso e conforme às suas teorias, prossegue COGLIOLO, para rematar: più semplicemente diciamo che actio indicava la legis actio, e questa l’inteiro processo". NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 10.
7 "O problema de saber-se a que fato do processo se relacionava a velha regra preocupou os juristas romanos que fixaram na litis contestacio o momento processual de sua eficácia, asseverando que um direito não mais podia ser submetido a novo juízo desde que já deduzido em processo anterior, embora ainda não julgado. COGLIOLO vê, para esse entendimento, várias razões, acentuando a distinção existente, já no período das legis actiones, entre o procedimento in iure e o procedimento in iudicio, para assinalar que somente aquele se refere a legis actio, atinente à atividade do Estado, em contraposição à atividade privada específica do iudex. Daí a vinculação da regra à litis contestatio que define o termo final da legis actio, ou seja, do procedimento que implica a autoridade do Estado e não se repete. Com a atuação do poder público expressa no procedimento in iure e consumada pela litis constestatio – que define, objetiva e subjetivamente, a controvérsia – cessava a função estatal de que dependia a atividade ulterior do juiz, de caráter privado e limitava à alternativa de um sim ou um não, a um iustum vel iniustum sacramentum. A decisão do iudex, como expressão final da sua atividade privada, dependia, pois, de atividade estatal anterior que se exauria com a litis contestatio. Compreensível, portanto, que a esta se relacionasse o seu efeito consumptivo, expresso pela regra obstativa de nova legis actio.". NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 11.
8 "Com o contínuo aumento e a crescente complexidade das relações jurídicas, ao unus praetor, passou a ser, em muitos casos, quase impossível apurar a identidade dos litígios, tornando-se então necessário, nesses casos, transferir ao iudex a solução dessa questão prejudicial – de que dependia o exercício da ação – mediante uma sponsio praeiudicialis, elo evolutivo, nesse particular, entre o sistema das legis actiones e o formular." NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 13.
9 "Em um segundo momento, ter-se-ia dado a transformação deste instituto, passado aquela exceptio a referir-se, não apenas à existência da sentença, mas ao seu conteúdo; com isto, diz [Friedrich Carl von] SAVIGNY, a exceptio rei judicatae teria assumido a categoria de instituto tutelar do conteúdo das sentenças, que, assim, ficaria protegido contra qualquer processo ulterior e garantido tanto ao primitivo autor como ao réu. Com este entendimento, a coisa julgada assumiria uma forma positiva consubstanciada na afirmação ou negação incontestáveis do direito pretendido pelo autor, expressão direta da ficção da verdade atribuída ao conteúdo do julgamento (res judicata pro veritate habetur)." MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A Autoridade da Coisa Julgada e a Imutabilidade da Motivação da Sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 12.
10 Não se trata apenas da usual menção aos conhecidos eventos do ano de 476 d.C., no viés de
queda" do Império Romano, com deposição de Rômulo Augusto por Odoacro. A questão não será a de abrupta queda, porém, a de uma lenta dissolução civilizacional. Trata-se, portanto, da percepção da ocorrência de profundas alterações nas grandes estruturas do poder até então consolidadas no mundo romano. Por