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O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo
O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo
O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo
E-book501 páginas7 horas

O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo

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Sobre este e-book

Em Frida Kahlo, as relações entre a criação artística e a vida, ou seja, entre o processo criativo e a experiência corporal, são intercambiáveis, traduzidas uma na outra, são sistemas de um mesmo processo. Nessa relação íntima entre o gesto criador e o grito de dor do corpo, as imagens de dentro e as de fora traduzem sua criadora, como se suas experiências tomassem conta de suas imagens, ou suas imagens tomassem conta de suas experiências, tanto no sentido de cuidado como de apoderamento. Imagem da existência da criadora, nós de significações, eixo, centro e mestre do espaço, receptáculo de toda a visibilidade é o corpo nos processos criativos de Frida Kahlo. Poeticamente, partido, ironicamente, nu, vestido, metaforicamente, lastimado, ironicamente, como possibilidade, fantasia, ficção ou realidade, o corpo é, na obra de Frida Kahlo, uma fonte inesgotável a jorrar imagens.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mar. de 2020
ISBN9788573913149
O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo

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    O movimento criativo e pedagógico de Frida Kahlo - Odailso Berté

    reflexiva.

    A FRIDOMANIA POP

    Nestes tempos da veloz reprodução em série e intensa propagação de imagens, tenho me questionado acerca do papel e da importância do artista, do criador, da criação artística, do processo criativo. Na atual conjuntura neoliberal, na qual o capitalismo criativo dita formas e regras, muito bem contabilizadas e direcionadas, instigando a inescrupulosa lu-criatividade, como considera Gielen (2015), a figura do criador, assim como concebido pela tradição das artes, vem perdendo, consideravelmente, sua relevância. Ou ainda, como lamenta Hobsbawm (2013), na era da indústria cultural, o artista à moda antiga tornou-se supérfluo, virou pop; a criação individual perdeu seu espaço; a arte perdeu seus valores.

    Quando as obras de arte foram tomadas pela avalanche desgovernada da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2012), ou seja, passaram a ser reproduzidas e propagadas em série, a arte perdeu sua aura sagrada, seu status de unicidade e originalidade. As artes visuais parecem ter existido sempre dentro de uma redoma, lugares físicos, meio mágicos, sagrados, caverna, igreja, museu, galeria. A experiência da arte, que a princípio era a experiência do rito, foi apartada da vida, precisamente para que fosse capaz de exercer poder sobre ela (BERGER, 2016, p. 32, tradução minha). Um pouco mais adiante na história, a redoma sagrada se tornou uma espécie de redoma social, ou seja, a arte passou a fazer parte da cultura dominante, sendo fisicamente isolada para adornar as paredes de casas e palácios. Ao longo de sua história, a autoridade da arte parece ter andado de mãos dadas com a autoridade da redoma.

    Ainda com Berger (2016), percebo que os meios modernos de reprodução, propagação e consumo têm ofuscado a autoridade da arte e arrancado-a, ou melhor, arrancado as imagens de qualquer redoma. Nesse turbilhão, as imagens artísticas de Frida Kahlo, quadros, desenhos, fotografias, parecem tornar-se efêmeras, onipresentes, corriqueiras, acessíveis, inconsistentes, quase sem valor, livres. Elas entraram na vida cotidiana e nos rodeiam sem cessar; entraram na corrente capitalista e, em decorrência desta, na corrente da pirataria, de modo que não há mais controle, poder, autoridade capaz de detê-las.

    Frida Kahlo, uma imagem popularizada

    É possível que hoje qualquer sujeito minimamente informado, seja por estudos, pela televisão, por proximidade a alguma discussão sobre questões de gênero ou política, por simpatia às artes, mesmo que por hobby ou por adesão à cultura pop, diante de uma imagem de Frida Kahlo, sabe que aí está a pintora sofredora; a mulher de bigode e ‘monocelha’; a bissexual; o cartão postal do nacionalismo mexicano internacionalizado; a esposa de Diego Rivera. Em diversas partes do globo esses tópicos, que já são senso comum, mais ou menos alusivos à vida da artista, compõem um imaginário mundialmente compartilhado, quase um inconsciente coletivo acerca de quem foi Frida Kahlo. Há um fantasma gigante de Frida, um mito, que, ao contrário de assustar, encanta, a cada dia, mais e mais seguidores, fãs, admiradores que vão desde celebridades ricas e abastadas a anônimos pobres e simplórios.

    Luna (2013) nos ajuda a pensar Frida como uma artista convertida em um dos ícones laicos na pós-modernidade que, diferentemente de outros e outras artistas, não permaneceu lembrada apenas nos círculos dos especialistas. Livros, filmes, documentários, boneca Barbie, desfiles e coleções de moda, admirações de ícones pop publica e amplamente manifestadas, emojis, páginas web e o alto preço de seus quadros dão conta da arrojada onipresença da artista no século XXI. A que poderíamos atribuir a onipresença de Frida Kahlo no contexto sociocultural contemporâneo mundial? Ao fato de artistas como a cantora pop Madonna terem adquirido alguns de seus quadros? A presença significativa de Frida depende de sua pintura? O que torna Frida tão atrativa a sujeitos das mais diferentes posições sociais, culturais e contextuais?

    O fato é que suas imagens já são parte do imaginário coletivo do mundo globalizado, de tal modo que sua onipresença imagética pode ser vista como potência para se refletir sobre o lugar dos processos de criação artística na era em que arte pode ser facilmente reproduzida tecnicamente, pirateada, copiada e colada, tatuada na pele, na roupa, em acessórios, em muros e ainda ser constantemente reprogramada e viralizada no ciberespaço.

    Há abismos profundos que dividem o mar de adoradores de Frida – um manancial de imagens a jorrar diversos significados para distintos e distantes admiradores. Vidal (2016), no livro intitulado Frida Kahlo: a moda como a arte de ser (Frida Kahlo: fashion as the art of being), produz um impactante e cativante manancial imagético, aproximando e entrecruzando imagens da artista com imagens de coleções de moda de renomados estilistas, imagens de filmes hollywoodianos e de estrelas da cultura pop que nela se inspiram. Com essas comparações estelares, a autora pergunta o que torna Frida Kahlo imortal? e propõe que a artista é uma dose única que condensa atributos como a autoinventividade de Coco Chanel, o drama de Maria Callas, a coragem de María Félix, a bissexualidade andrógina de Marlene Dietrich, a rebeldia de Amy Winehouse, a extravagância de Lady Gaga, a afronta de Madonna, a iconoclastia de Kate Moss.

    Quem sou eu para negar ou reafirmar a proximidade de Frida com essas personalidades e imagens femininas bastante em voga nos últimos cem anos. Todavia, penso que seria ofuscar, reduzir e até distorcer a imagem e a trajetória de Frida Kahlo não dizer que, talvez, antes de todas as estrelas citadas, ela condensa a bravura, a simplicidade, o pertencimento e amor à sua terra, povo e cultura das índias e matriarcas mexicanas (as tehuanas) como quem ela tanto gostava de se vestir. Ela condensava, em seus modos de ser e se vestir, os costumes de sua mãe, Dona Matilde Calderón, natural do estado de Oaxaca, figura importante que, nas afamadas biografias da pintora, foi quase invisibilisada e afastada da filha como uma mulher rígida e fachada nos princípios católicos.

    O insipiente das apropriações industrializadoras que o capitalismo tem feito de Frida é o encobrimento dos elementos primordiais que constituem seu processo criativo, seu engajamento político, sua postura irreverente perante os padrões de gênero, seu amor à cultura popular e indígena mexicanas, sua atuação docente. São provocativos os questionamentos de Canclini (2011) sobre a dificuldade de separar as reinterpretações do trabalho de Frida propostas nas galerias da Tate Modern das que são exibidas em lojas londrinas, ou separar os livros de investigação sobre Frida do filme com o qual Salma Hayek concorreu ao Oscar de melhor atriz em 2002. Com Canclini, cravo mais fundo a navalha da interpelação: a obra da artista é favorecida ou prejudicada quando se recorda sua militância comunista? A apresentação e propagação da sua imagem em números especiais de revistas como a Vogue, para fomentar o look Frida, enfraquece seu nacionalismo feminino do uso das vestimentas indígenas? Como distinguir os espartilhos italianos que têm o nome de Frida ou os espartilhos da coleção criada por Jean Paul Gaultier do corset que Frida usou na tentativa de restabelecer sua coluna danificada, e no qual desenhou o símbolo comunista com a imagem da foice e do martelo?

    Uma sensação indagativa semelhante, para percepções atentas, pode surgir quando se entra no espaço anexo do Museu Frida Kahlo onde está a exposição temporal Las apariencias engañam: los vestidos de Frida Kahlo. O primeiro recinto trouxe-me a sensação de um vento gelado, pois, quase como uma sala de flagelos, a expografia abriga as muletas, a perna mecânica e os corsets ortopédicos usados pela artista. Em couro e metal, cinzentos, cor crua envelhecida, e vermelho... Instrumentos que presentificam os momentos de tortura vividos por Frida. O recinto seguinte traz uma sensação de calor e aconchego, pois é habitado pela textura e pelo colorido das combinações vivas de seus vestidos, blusas, saias, xales, bordados, babados, rendas, gregas. Na sequência, suas joias, sapatos (adaptados para equivaler ao tamanho da perna mais curta), brincos, colares, frascos de perfume. E, por último, uma sensação que mistura estagnação e encantamento com as peças e imagens de criações de estilistas como Ricardo Tisci, Jean Paul Gaultier e Givenchy, inspiradas nos corsets e obras de Frida.

    É como ver uma versão têxtil do dito das tripas, coração, a dor transformada em glamour e exposta em vitrines. Um dos elementos com que Frida criou arte é a experiência da dor, todavia, sua arte não apaga o drama da vivência dolorosa e o amplia para questões políticas e socioculturais de gênero, corpo, identidade etc. Esse contexto visual de ver Frida na vitrine, entre dor e glamour, inspira-me uma estranha associação imagética entre o seu quadro Aparador en una calle de Detroit (1931), (Vitrine em uma rua de Detroit), e a primeira exposição de Andy Warhol nas vitrines da loja Bonwit Teller (1961). Enquanto Frida pinta uma vitrine com símbolos e motivos festivos do patriotismo norte-americano, incluindo um retrato de George Washington e atrás deste, na parede, ao fundo, um diminuto mapa dos Estados Unidos e uma ponta do México, Andy posiciona atrás das manequins quadros que aludem a figuras de super-heróis, insatisfações com proporções corporais, próteses para modificações, um anúncio da antiga marca Pepsi-Cola. As manequins trajam vestidos semelhantes aos usados por Jacqueline Kennedy, estilo da típica mulher americana da transição entre a década de 50 e 60.

    Frida, ainda em vida, iniciou um processo de disseminação de sua imagem que ia desde os murais de Diego Rivera, seus autorretratos até as icônicas fotos de Nickolas Muray e Toni Frissell para a revista Vogue. Os flertes de Frida com os meios de reprodução técnica da imagem de sua época podem ser vistos como indícios da conivência da artista, voluntária ou não, com a fridomania. Em vez de supor que Frida buscava vender sua imagem, opto por refletir sobre as afeições da artista para com a imagem enquanto artefato cultural e sobre os modos como ela usou diferentes formas de imagens em seus processos criativos.

    Esses atravessamentos entre arte, imagem e moda me fazem pensar: ao fim do percurso da exposição Las apariencias engañam: los vestidos de Frida Kahlo, será que as pessoas ainda recordam da sala dos flagelos? A glamorização (e)ditada por determinados setores da indústria cultural poderia ir aos poucos apagando o sofrimento de Frida e os significados políticos de sua vida e obra do imaginário social? Embora exista um nivelamento da média de gostos, muito bem articulado por setores especializados da indústria cultural, cada corpo tem a capacidade de perceber, produzir associações e interpretar o que vê de acordo com suas experiências e referenciais. Mas toda atenção ainda pode ser insuficiente para certas artimanhas neoliberais.

    O atravessamento de imagens em meio ao qual vivemos é estarrecedor, capaz de nos deixar aturdidos. É como se o refluxo do devastador tsunami do fenômeno da estetização da cultura – o desbordamento do estético do campo das artes para diversos contextos culturais (AGUIRRE, 2011) – e da sociedade do espetáculo (DEBORD, 2011) tivesse rompido a redoma das artes, alagado a sociedade toda e voltado para naufragar as instituições de arte que ainda restaram. É curioso notar como instituições tradicionais do sistema artístico, que criticam a fridomania vociferando os pesados e mofados discursos da austeridade e da autoridade da arte, têm se aliançado com setores do sistema capitalista – que produzem a fridomania e contabilizam lucros com ela. A fridomania também está, se não em primeira instância, dentro da própria casa de Frida.

    Frida adquiriu uma notoriedade mundial tão grande que sua imagem pode ser comparada à de uma Nossa Senhora de Guadalupe pós-revolucionária. O caricaturista mexicano Manuel Ahumada (1956-2014) criou um desenho intitulado Las Patronas, o qual, parodiando o quadro Las dos Fridas, coloca Frida Kahlo e Nossa Senhora de Guadalupe sentadas uma ao lado da outra, de mãos dadas, aludindo a essa equiparação contemporânea em que ambas as imagens se encontram.

    Nesse contexto de equiparação de fama e sacralidade laica de imagens femininas, não surpreende outra comparação, feita por Vidal (2016), desta vez entre Frida Kahlo e a cantora pop norte-americana Madonna, que curiosamente leva o nome de Nossa Senhora, no idioma italiano. Segundo comenta a autora, ambas, no início de suas carreiras, decidiram apresentar-se como dissidentes do mainstream, usando de suas desvantagens físicas e de aparência para forjar sua imagem pública. Expressaram seus pontos de vista, defenderam sua originalidade e estilo inconfundíveis e até alardearam sua extraordinária habilidade em tornar sua imagem pública uma declaração viva e controversa. É possível que o séquito de seguidores de Madonna seja hoje bem próximo ao de Frida, se é que não seja compartilhado.

    Em uma entrevista concedida à revista Harper’s Bazaar de novembro de 2013, Madonna declarou as dificuldades vividas no início de sua carreira, antes de se tornar a estrela pop que é hoje, e aponta Frida como sua inspiração:

    Eu era impetuosa. Determinada a sobreviver. Mas a vida era difícil, solitária. Às vezes eu sentia pena de mim e chorava no meu quartinho minúsculo, com vista para um muro. E me perguntava se valia a pena. Então, me recompunha e olhava o cartão-postal com uma imagem de Frida Kahlo que ficava grudado na parede, e a visão daquele bigode me consolava. Porque ela era uma artista que não ligava para o que as outras pessoas pensavam. Eu a admirava. Ela foi ousada. As pessoas lhe proporcionaram tempos difíceis. A vida deu a ela momentos ruins. Se ela conseguiu, eu também conseguiria (MADONNA, 2013, p. 252, tradução minha).

    Hoje, as imagens de Frida que Madonna admira em sua parede são os quadros Mi nacimiento (1932) e Autorretrato con mono (1938) que compõem sua coleção privada. Essa forma pública e notória com que uma pessoa como Madonna declara sua admiração por Frida e compra seus quadros por preços exorbitantes contribui para a propagação da imagem e inflação da fama da pintora no mundo. A cantora Madonna, a revista Vogue, a indústria cinematográfica hollywoodiana, a empresa Mattel, a Walt Disney, entre outros setores e personalidades, têm se interessado por Frida e produzido diferentes versões dela, formas de adoração, contato, consumo, uso, através de uma vasta produção de imagens e outros artefatos culturais (filme, desenho animado, bonecas, fotografia, campanhas, desfiles, coleções etc.), que, por sua vez, vão criando imagens-ideias no imaginário popular e coletivo. Imagens, umas replicando outras, confrontando-se, disputando espaços e afetos nos corpos.

    Monsiváis (2004) possibilita a evocação da imagem Las Patronas, de Ahumada, ao abordar a possibilidade de a fridomania ser uma espécie de culto paracristão: seria Frida uma Virgem dolorosa, mexicana, feminista, quase beirando o status da padroeira da América Latina, Nossa Senhora de Guadalupe? O autor persegue a ideia de como a ‘indústria da metamorfose’ é capaz de tomar uma artista, exemplo de dissidência moral e política, criadora de simbologias populares, cósmicas, corporais e dolorosas; agitar a memória coletiva e transformar esse conjunto em uma avalanche de biografias, capas de livros e revistas, calendários, bonecas, marionetes, peças de teatro, espetáculos de dança, filmes, camisetas, calçados, cofrinhos em forma de porco, artigos de grife, coleções de moda, cartões postais, documentários, documentários dramatizados, quadros que incluem citações de seus quadros, análises pós-modernas, declarações adoradoras de Madonna e Salma Hayek, preços avassaladores em leilões, emojis para redes sociais, restaurantes temáticos, um possível posto na corte de princesas da Walt Disney... E a lista é de perder o fôlego... Assim instaura-se um mito.

    Em sentido estrito, a fridomania é, a princípio, proposta de Frida e Diego, com o involuntário e o voluntário do caso (MONSIVÁIS, 2004, p. 17, tradução minha), pois ambos contaram com a cumplicidade dos meios eletrônicos e de comunicação, especialmente a fotografia, jornais e revistas, que, por volta da primeira metade do século XX, estavam em plena expansão. Diego pinta Frida em murais que entram para o arsenal de obras da história mexicana; Frida se pinta repetidas vezes em autorretratos que aos poucos vão ganhando espaço mundo afora; Frida é clicada por fotógrafos renomados que disseminam sua efígie além-fronteiras; Frida muda sua data de nascimento de 1907 para 1910 intitulando-se filha da revolução mexicana.

    Esses elementos, entre outros, germinam uma explosão mitológica que ocorre na conjugação de diversos aspectos como: a condição de mulher forte e militante de causas pós-revolucionárias de esquerda que algumas correntes feministas recuperam; os ardentes romances com Diego e outros homens e mulheres; a Casa Azul, quase um templo de circuito turístico, como a Basílica de Nossa Senhora Guadalupe; o trágico acidente de bonde; o martírio experimentado e pintado; os boatos sobre seu alcoolismo e a dependência de drogas medicinais; a criação de imagens fortes e icônicas calcadas em suas experiências dolorosas e no seu cotidiano; o fato de ser uma deficiente física que edita sua aparência criando uma imagem icônica tanto com trajes e adereços típicos femininos mexicanos quanto com calças, camisas, paletós e outras peças de roupas masculinas. Frida vive, morre, ressuscita e se transfigura em todas essas combinações de imagens, instaurando uma espécie de continuidade na arte e na vida. Conforme resume Monsiváis (2004, p. 17, tradução minha), ela é a tragédia que, de tanto sobreviver a si mesma, se torna o oposto [...], ela é o personagem único que consiste numa multidão de imagens, transformações, produtos e significações.

    A qualidade icônica ou mitológica de Frida vem desde o princípio, ou seja, desde ela própria e seu contexto de vida. Desde o ano em que se conheceram, e em outros momentos ao longo de sua relação, Diego pintou-a em diferentes murais localizados em importantes instituições e repartições públicas do México e dos Estados Unidos. Desse modo, é possível pensar que a imagem de Frida entra para a iconografia da linha histórica oficial. Sua imagem segue gravada no mural Corrido de la revolución proletária y agraria, localizado no terceiro piso da Secretaria de Educação Pública; no mural esquerdo das escadarias do Palácio Nacional que narra a história do México; no mural Sueño de un domingo en la Alameda Central, pintado originalmente numa das paredes do Hotel del Prado e posteriormente transladado para o Museu Mural Diego Rivera, onde permanece até hoje. Nesse mural, Frida aparece ao lado da Catrina de José Guadalupe Posada, alcançando, como esta, um nível de propagação e notoriedade imagética que a constitui como um dos principais símbolos históricos e populares do México. O mural Pan American Unity, pintado no City College de São Francisco, Estados Unidos, também leva a imagem de Frida, em pé, de corpo inteiro, vestindo um dos seus imponentes trajes de índia tehuana. E Frida apareceu ainda no último mural pintado por Diego, Pesadilla de guerra, sueño de paz, cujo paradeiro é desconhecido.

    Conforme Canclini (2011, p. 26) Frida não foi alheia à invenção biográfica e político-cultural que hoje a promove. [...] Nenhum mito é inventado sem o seu consentimento. O mito Frida, a personagem Frida e a Frida mesmo – que já não se sabe se é possível dissociar ou compreender fora desse ciclo – é de uma atualidade deslumbrante. Ela não é só uma referência à sua pintura e nem exalta o heroísmo da condição feminina. Conforme Monsiváis (2004, p. 29, tradução minha), Frida pode ser vista como o símbolo de si mesma, o semblante no qual o observador pode ver a aparição que nada tem a ver com os milagres, é o encontro dos pincéis e o amor à vida na sala de cirurgias. Com seu processo criativo e prática cultural de repetir e exceder sua própria imagem, multiplicando-se em diferentes formas, suportes e meios de propagação (pintura, desenho, fotografia, murais), Frida deixa canais em aberto para a propagação dos seus traços únicos na era da reprodutibilidade técnica das imagens e de sua propagação massiva.

    Falar de Frida é falar de "uma das criadoras do século XX que começa sendo uma anotação muito marginal e termina alojada no que já adquire o nome internacional de mainstream" (MONSIVÁIS, 2007a, p. 52, tradução minha). Celebrada e ‘celebrizada’ Frida Kahlo foi, e hoje o é mais ainda, o que denominamos celebridade sem fronteiras. Entre fama e lendas, esse ser frágil e poderoso chamado Frida Kahlo é um mito que representa valores e emoções para pessoas e coletividades muito diversas. Frida Kahlo é um conceito, contexto, imagem, um complexo de alcance visual e existencial que se reparte e transmuta em muitos e variados estímulos, sentidos, significados.

    Conforme reflete Fernández (2010, p. 372, tradução minha), os espectadores são os intérpretes e testamenteiros de sua celebridade, digam o que disserem os críticos da arte e da cultura, são esses sujeitos que articulam diversas e inusitadas formas de uso e reinvenção das imagens e histórias de Frida. Inspiração, fetiche, comércio, idolatria, são formas de uso que circundam e atualizam o mito Frida Kahlo no contexto contemporâneo, possibilitando a insurreição de artefatos culturais que têm sua fonte no contexto da primeira metade do século XX. Reproduzidos, consumidos e usados hoje, reposicionam tempos e espaços, atravessando cotidianos e imaginários, perdendo, ganhando e transmutando sentidos.

    Frida tem vivido diferentes e inusitadas sessões de ressurreição desde o ano de sua morte, 1954. Essas ressurreições equivalem ao testemunho de cada geração, aos usos que são realizados com sua imagem cotidianamente, em tantas partes do mundo, por diferentes sujeitos. Como reflete Certeau (2012), são contabilizados os produtos vendidos, mas não os diferentes movimentos de uso e construção de histórias originais que são realizados de forma sub-reptícia em tantos confins e recantos, articulando invenções de tantos cotidianos. Monsiváis (2007a, p. 63, tradução minha) destaca que Frida é muito mais que uma figura singular ou uma artista inusitada que na falta de outro tema retrata a si mesma de forma obsessiva, Frida é um retrato de época e é, a seu modo, uma época de curta duração no tempo e de ressonâncias intermináveis. Viveu pouco, 47 anos, a duras penas, mas a intensidade de sua disseminação cultural já atravessou a fronteira entre dois séculos e segue movendo redes, mercados, opiniões, estudos, cotidianos e afetos.

    Ainda que as reproduções de suas pinturas e fotografias sejam abundantes, no ciberespaço ou impressas em camisetas, bolsas, sapatos, cadernos, xícaras, biografias, revistas e outros artefatos, a atualidade do simbolismo de Frida, conforme a reflexão de Monsiváis (2007a), talvez não resida estritamente na pintura, nem na sua militância, na sua condição feminina ou no amor a um monstro sagrado como Diego Rivera, mas em tudo isso ao mesmo tempo. Seja no vértice da fridomania ou da institucionalização de sua imagem, Frida é o semblante onde se crê ver uma aparição que questiona sua própria origem devocional, embaralhando uma hierarquização errante entre suas obras e as reproduções dessas.

    O culto à Frida, a moda Frida, ou seja, a fridomania, é determinada pela permanência do gosto e do amor das gerações que a ressuscitam, usam e reposicionam no mundo. O conceito Frida Kahlo inclui essas incalculáveis formas de amor, gosto e uso que, em termos amplos, podem ser coletivas, familiares, individuais, por vezes neutras, interesseiras e intertextuais, agenciadas pelos afetos dos sujeitos que selecionam desde as obras para uma exposição ou a imagem para estampar uma camiseta. Acompanhando a reflexão de Monsiváis (2007a), é possível compreender a fridomania como um culto contemporâneo a denotar que os santos dessa época já não surgem da abnegação das experiências do corpo, tampouco de intervenções sobrenaturais. As imagens e personagens, hoje venerados, surgem de corpos, histórias, experiências e cotidianos que mesclam organicamente dimensão artística, autodestruição, originalidade e radicalidade existencial.

    Para Conde (2007a, p. 42, tradução minha), é elementar e contraproducente maquiar de efeitos complacentes uma mulher que, entre outros traços notáveis, teve a capacidade de pensar em imagens [...] com a precisão de um bisturi manejado por mão sábia. Refletindo com essa autora, é possível perceber como as contingências da vida de Frida foram convertidas em índices de luta pela superação; suas simpatias e afinidades políticas são vistas como posturas radicais; seu sentido de humor, que beirava o limite do macabro e por vezes lhe servia como mecanismo de defesa, é hoje tomado como manifestação de alegria perene, afirmação e vitalidade. A autora enfatiza as possibilidades de ofuscamento, redução e distorção que acontecem quando se exalta Frida de uma maneira devocional dotando-a de uma extrema excepcionalidade em que todos os seus atributos são enfatizados como admiráveis e dignos de louvor.

    Frida é sua biografia ou o que extrai dela cada pessoa, destaca Monsiváis (2007c, p. 31, tradução minha). As figuras mitológicas são constituídas tanto de elementos que se aproximam da sua história como de aspectos que vão sendo explorados, inventados e acrescidos à sua imagem. As imagens mitológicas são passíveis de enchimentos e esvaziamentos, conforme os graus de importância que lhes vão sendo atribuídos por diferentes gerações em diferentes contextos. As longas filas de visitantes que esperam para entrar e ver a Casa Azul e as exposições de obras de Frida Kahlo em muitos lugares do mundo podem ser explicadas não apenas pela imagem idealizada da pintora e do exotismo atribuído à cultura mexicana, mas também como busca por identificação, afeição e afirmação.

    Conforme reflete Estrada (2013, p. 35, tradução minha), em Frida se pode ver uma artista que teve a possibilidade de atrever-se a enfrentar os estereótipos sociais e que criou seu próprio personagem. Com isso, as buscas em massa por Frida podem ser vistas como buscas por outros tipos de identidade, de proximidade com o feminino. Identificações com uma mulher destemida que, apesar das peripécias, rompe e segue adiante, que é intelectualmente inquieta, sensível e rápida para a ironia, para a brincadeira consigo mesma e com os outros. Frida é uma imagem que vincula variados significados que vão desde a vanguarda feminista à condição submissa da mulher, à monogamia patriarcal e à dissidência sexual e de gênero, à secularização do ex-voto e à icônica presença mexicana que, com rapidez e fulgor, se torna tão popular quanto a Catrina de José Guadalupe Posada. Referindo-se à relação de um artista com a sociedade nacional e internacional, Monsiváis (2007a) enfatiza que

    Nenhum artista mexicano alcançou a fama de Frida Kahlo. É uma referência visual e biográfica que já não é possível de se omitir e é a transformação de uma obra de qualidade inegável em cultura popular, algo só alcançado, e de uma maneira muito distinta e parcial, por Diego Rivera, José Clemente Orozco, David Alfaro Siqueiros e Rufino Tamayo

    (MONSIVÁIS, 2007a, p. 35, tradução minha).

    Entre os artistas latino-americanos, Frida é a que tem as obras avaliadas entre os mais altos valores. Tanto no mercado das imagens reproduzidas tecnicamente como no mercado das imagens originais de arte, ela é um ícone constantemente reiterado e reposicionado a nível mundial. A fridomania não se restringe ao campo das imagens reproduzidas em série e popularizadas, ela abrange também a lei das ofertas e das procuras do mercado de arte. Do museu ao quarto de um fã, do leilão de arte à feira de suvenires, se estende a fridomania, enlaçando mais e mais seguidores, vendedores e compradores.

    Para Miyada (2015, p. 46), Frida Kahlo é parte fundamental do amadurecimento do imaginário na arte mexicana, tendo corporificado em sua pessoa e em sua obra simbologias potentes do sincretismo cultural mexicano. Frida consagrou-se como artista de qualidade reconhecida por diferentes artistas e profissionais da arte e, concomitantemente, tornou-se um singular ícone pop difundido pela indústria cultural em muitas partes do mundo. O grande público sente-se envolvido e cativado pelas possíveis aproximações entre determinadas e inquietantes imagens em sua obra com passagens de sua vida, atravessada de dores e amores. O meio artístico, que vem abrindo espaço para formas narrativas, discursivas e simbólicas, desde as décadas de 1980 e 1990, enaltece a habilidade evocativa de suas obras, as combinações de emoções, conflitos e imaginários em imagens que expressam muito de suas experiências vividas. Para outros sujeitos, ainda, seja em espaços artísticos ou em movimentos socioculturais, a artista e sua obra podem ser vistas como bandeiras de afirmação da autonomia criativa, intelectual e sexual de mulheres, sujeitos LGBTT e pessoas com deficiência. Isso se associa à irreverência de Frida perante as convenções sociais de gênero de sua época e à sua habilidade em editar sua aparência na tentativa de conviver com suas deficiências físicas.

    Suas imagens tremendamente locais transitam pelos impulsos e cliques elétricos do ciberespaço, multiplicando aceitações e rechaços. Em um mundo onde se tem a homogeneização de modas, edifícios, centros comerciais e alimentos, encontrar Frida é encontrar a sarça ardente, vislumbrar um mundo emocionante que tem algo novo a dizer (LUNA, 2013, p. 169, tradução minha).

    No turbilhão contemporâneo de imagens que extravasaram os limites do campo das artes, avançando para inusitados recantos da vida cultural e cotidiana, as imagens de Frida têm algo a dizer de crítico, político, humanístico e estético que se diferencia da mercadoria? Segundo Conde (2007b), a pós-modernidade incrusta nos corpos o desejo de algo que seja penhorável, pois assim como o ícone pop, as relíquias de santos e ídolos se tornam fetiches. A auréola que coroa o mártir ferido pode tocar qualquer ser pensante, por mais insensível que seja, submetendo-o, através de diferentes reiterações, aos inúmeros holocaustos da condição humana.

    Nesse complexo industrial e cultural de imagens, Frida corre o risco de perder suas potências política, crítica e de reivindicação pelo direito e pelo respeito à diferença, aspectos esses que a mim são preponderantes em sua vida e obras. Essa é a sarça ardente de Frida, a chama que a mantém viva e revolucionária para o mundo contemporâneo que, em vez de progredir no respeito, valorização e preservação da vida e dos direitos humanos, parece retroceder aceleradamente.

    Ao fazer um estudo sobre as muitas fotografias de Frida Kahlo hoje conhecidas, divulgadas e reproduzidas, Casanova (2007, p. 93, tradução minha) destaca que como fenômeno midiático a imagem de Frida se sobrepõe à obra de Frida. Ao longo de sua vida, a artista posou para a lente de diferentes profissionais e aficionados por sua imagem, possibilitando a criação de uma imagem de si mesma que tem sido a base para a Frida que hoje conhecemos. Esse ser público de Frida, que mistura valores emocionais de pessoas e coletividades muito diversas, lendas, anedotas e histórias a seu respeito, nem sempre corresponde a fontes exatas. São tantos atrelamentos em torno da imagem e da fama que Frida tem adquirido que toda a análise que se pretenda exata, verdadeira e rigidamente crítica, se equivoca.

    A fama que rodeia Frida Kahlo tem colocado a pintora na perigosa fronteira que divide a honra merecida do frívolo estar em voga que, como indica a palavra, depende de quanto se está disposto a remar para manter à tona a atualidade da personagem. O perigo mais imediato talvez seja apenas um, mas de consequências graves, que já estamos presenciando: que se acabe por criar uma aversão ignorante à vida e obra de uma das figuras artísticas da maior importância para o século XX mexicano (FRANCO, 2007, p. 169, tradução minha).

    Franco (2007) prossegue refletindo sobre o perigo de que o adjetivo de artista superavaliada, usado frequente e impunemente, se anteponha para definir a uma das pintoras que têm tornado possível construir uma ponte entre a arte contemporânea do México e a cultura do Ocidente. Uma ponte que vem ampliando o reconhecimento das produções artísticas mexicanas e latino-americanas como parte relevante da cultura ocidental, enriquecendo essa com novas e peculiares formas de expressão. É interessante perceber os modos como o conjunto de tradições simbólicas, procedimentos formais e demais elementos da chamada arte culta por vezes contrasta com os elementos midiáticos das indústrias culturais. Segundo argumenta Canclini (2015), a cultura massiva, ao lidar com elementos da chamada arte culta, por vezes substitui a obra por episódios da vida do artista, por formas de indução ao gozo que consiste menos na fruição dos textos que no consumo da imagem pública.

    Qualquer que seja o sucesso de um artista, ele não é relacionado às condições econômicas atuais do mercado de artes, mas apenas à ambição pessoal e à perseverança. Os altos preços pagos por suas obras têm tudo a ver com a exuberância de sua vida particular, extensivamente coberta pela mídia. A predileção da mídia pela personificação também explica, a propósito, porque ela ainda abraça a imagem obsoleta do artista boêmio. [...] A mídia de massa desvia nossa atenção das falhas do sistema para o comportamento imoral dos indivíduos, permitindo que o sistema permaneça como está. Este é o moralismo da mídia de massa (GIELEN, 2015, p. 76).

    Frida Kahlo passa por esse processo de midiatização que, mais que a reflexão sobre seu trabalho criativo, exacerba aspectos de sua biografia, intimidade, vida pública. Todavia, não esqueçamos que a obra de Frida já traz formas de relação com suas experiências de vida, marco estruturante de seu processo criativo. Nesse sentido, quais as possibilidades de pensarmos a obra de Frida como mídia de sua vida? Ou, quem sabe, conforme a reflexão de Katz (2004), vermos a própria Frida como corpomídia de seu tempo? A noção de mídia nessas questões não se restringe à transmissão e ao armazenamento de informações, mas trata de um processo de reconstrução e troca de informações que transforma o corpo. Sobre isso trataremos nos capítulos a seguir. Por enquanto, deixemos o cursor intermitente, para adiante aprofundar essa reflexão.

    Os sistemas de divulgação midiática têm realizado diferentes formas de uso de elementos das artes visuais e de outras formas de arte para aprimorar suas estratégias de alcançar os afetos dos corpos. Conforme Aguirre (2011), a estética, com sua capacidade de dar significado a objetos transformando-os em conceitos, estilos de vida e disposições corporais, é convertida em instrumento para gerar estratégias de ativação do desejo nos e dos corpos. Esse processo de estetização cultural – o transbordamento do estético dos limites do campo das artes para diversos campos da cultura – e, nesse caso, o sistema midiático, mudou não só a hierarquia oficial entre Diego e Frida, como também os modelos estéticos. Canclini (2015) destaca que quando alguns especialistas já vinham pondo de lado as noções de criação excepcional e do artista genial, nos meios de comunicação ressurgem relatos que exaltam a excepcionalidade das personagens, aspectos polêmicos, boatos que soam como informações novidadeiras, referenciados em suas biografias.

    Com Canclini (2011) podemos dizer que Frida faz parte de um pequeno grupo de artistas contemporâneos dos quais, quando se trata de decidir o que incluir ou não numa exposição, surgem algumas dificuldade e dúvidas. Frida é uma artista da qual parece não ser possível fazer uma exposição apenas com as obras. Exemplo disso é a exposição Frida Kahlo: me pinto a mí misma, realizada de julho a dezembro de 2017, pelo Museu Dolores Olmedo, da Cidade do México, onde a relação com as obras ou a interpretação dessas parece estar intimamente associada com suas cartas, fotografias, performances públicas, com o seu diário e com outros documentos nos quais aparecem amantes, amigos, personagens dos seus quadros e profissionais que promoveram seus trabalhos e sua imagem.

    Polissemias interpretativas

    Temos aí vários nós, difíceis de desatar, especialmente se pensarmos que os produtos artísticos são condicionados por um tecido de relações socioculturais que implicam a trama de experiências do criador, ou seja, a sua biografia. E em se tratando de uma artista como Frida Kahlo, suas experiências de vida são fatores determinantes de suas escolhas e procedimentos artísticos, mais que os padrões estéticos vigentes na sua época. Nesse sentido, se trata de esconjurar ou de sobrepor a biografia da artista na relação com suas obras? Qual a estratégia a ser tomada quando o atravessamento arte e vida parece simbiótico?

    Ao realizar o estudo e observação de uma exposição de Frida Kahlo e da fotógrafa Tina Modotti, realizada em 1983, no Palácio de Belas Artes, Cidade do México, Canclini (2015, p. 144) reflete sobre como é produzido o sentido do ponto de vista dos receptores e como elaboram sua relação assimétrica com a visualidade hegemônica. Refletindo sobre as reações de jovens e estudantes perante as obras de Frida, o autor destaca que em vez de articularem juízos calcados nos valores estéticos das obras, a tentativa desses sujeitos era de relacioná-las à biografia da artista ou a fatos cotidianos. A importância do acesso biográfico à obra manifestou-se pela atenção maioritária prestada às cartas e às fotografias que, segundo disseram, completam a mostra (CANCLINI, 2011, p. 24). Em função da orientação pedagógica que haviam recebido antes de visitar a exposição ou da tradição oral compartilhada acerca de Frida Kahlo, os estudantes comentavam sobre a relação da pintora com a história do México, o seu gosto pela cultura pré-hispânica, o seu trágico acidente, as operações, a saúde instável e a relação tortuosa com Diego Rivera.

    No turbilhão imagético provocado pelo fenômeno da estetização cultural convivem, não sem atritos, mais ou menos explícitos, tanto as estratégicas midiáticas da indústria cultural, quanto determinados aspectos do pensamento visual moderno como o realismo, a centralidade do corpo na arte, a relação da arte com a história e a habilidade técnica do artista para expressar seus sentimentos. Presentes no contexto contemporâneo e vazados do sistema das artes, Canclini (2015) salienta que esses elementos são usados e articulados por diversos setores com sintaxe perceptiva e valorativa própria. A confrontar-se e conformar-se cotidianamente com essas formas de readaptação do estético na vida da cultura, estão possibilidades de uma estética da recepção que questiona a existência de interpretações únicas, corretas ou falsas. Nessa compreensão de uma estética da recepção, ou, de um movimento criativo que liga a ação do criador à interpretação do observador, a arte é infestada de espaços em branco, silêncios, interstícios, nos quais se espera que o observador, espectador, leitor produza sentidos, usando dos referenciais que possui e os aprofundando em busca de alargar sua capacidade interpretativa.

    [...] na estética contemporânea, analisar a arte já não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a interação entre os membros do campo gera e renova o sentido. [...] Democracia é pluralidade cultural, polissemia interpretativa. Uma hermenêutica ou uma política que fecha a relação de sentido entre artistas e público é empiricamente irrealizável e conceitualmente dogmática (CANCLINI, 2015, p. 151-156).

    As assimetrias entre emissão e recepção perpetradas pela alta cultura são falhas. Nós corpos não somos recipientes de discursos,

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