Gaia Educação: Arte e Filosofia da Diferença
De Paola Zordan
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Gaia Educação - Paola Zordan
Sumário
PRESENÇA
ESTUDAR A TERRA
PROVAS
MATÉRIAS
PONTOS, LINHAS, CORES
MANEIRISMO
MESTRES
FRAGIL MAGISTER
M♀ MÁQUINAS DE VÊNUS
PELES
RODAR
REFERÊNCIAS
PRESENÇA
Este livro apresenta-se na presença de Gaia, variação do nome grego para a mãe de todos os deuses, Géia, a Terra. Essa palavra, para os romanos, herdeiros da cultura grega, também tinha relação com o adjetivo caio
, alegre. No classicismo europeu, a palavra ganha o sentido da leveza da vida pastoril e trabalhos ao ar livre, esta contrastada com o trabalho intelectual recluso, grave, advindo dos rigorosos exercícios e ascese que a vida entre os signos numéricos e escritos envolve. Quando Nietzsche escreve A Gaia Ciência, provoca um equilíbrio nesse contraste, ainda que seja pernicioso pensar que há um conhecimento superior e verdadeiro
perante a simplicidade de quem vive no campo. A obra de Niezsche criticou a cultura livresca, a erudição e a pretensa superioridade dos letrados. Diferente daquele que vive confinado aos livros, o livre pensador aprende com a própria Terra, com as forças da natureza, com tudo aquilo que os próprios filhos da Terra provocam em seu gigante corpo, átimo molecular na imensidão. Desse modo, aqui, os conceitos a serem apresentados só podem ser demonstrados se na superfície da Terra operarem, mesmo quando conjecturados ao espaço para além da superfície. Pensar Terra, Géia, Gaia, é viver a intensidade de todas suas matérias e do espaço que a circunda. Geoplástica, as cores, texturas, ritmos, pulsos e formas da Terra se compõem num corpo de muitas forças, onde trilhões de corpos se encontram, reproduzem-se e se desviam.
Gaia Educação implica a Terra a fim de utilizar suas matérias da melhor maneira possível para deixar seu corpo saudável. Trata-se da condução para uma Grande Saúde de Nietzsche, a qual exprime a plenitude dos corpos, a alegria de estar vivo, em comunhão com a natureza, aceitando as dificuldades inerentes à vida. Também diz respeito a uma independência dos valores propagados e exigidos pela civilização, tais como excesso de coisas, preocupações morais, consumismo, crenças ignóbeis. Cerce de 150 anos depois de Nietzsche, valores tacanhos, pautados em lucros e produção, trazem-nos a uma vida doente, egoísta, centrada no prevalecimento humano, alheia às forças de Gaia. Estes valores geraram ameaçadoras quantidades de lixo, uma imensidão de resíduos polímeros, metais e compensados de madeira com severo tratamento químico, uma grande quantidade de materiais processados a tal ponto que o corpo da Terra não mais consegue absorver dejetos. Nessa paisagem, o ser humano está centrado em sua própria imagem, preso a crenças que o fazem com que se julgue superior aos demais seres. Pensar Gaia como um corpo vivo, interagindo com os demais corpos, é tirar o humano do centro de atenção e compreender que todos os corpos criados se interconectam num único ser. A Terra é a pele final, um esqueleto exógino e, ao mesmo tempo em que corpo e espírito não se separam, endógeno, que consiste no planeta junto ao qual se estrutura a vida humana e uma miríade de outras vidas, as quais constituem matéria para tudo o que pensamos. Agir em prol do planeta é parar de pensar somente no humano, abrindo a perspectivas de pensamento em que máquinas criadas pelos humanos e as forças da natureza possam coexistir sem que a humanidade se sobreponha à saúde planetária.
Desse modo, trazer a arte, em seu aspecto geoplástico, possibilita um outro modo de pensar, uma outra filosofia. Trata-se da filosofia da Diferença, a qual, a partir do pensamento de Gilles Deleuze, mostra que, ao invés do par amizade
, filo, e saber
, sofia, base das tradições filosóficas, parte do amor, com todas as suas contradições e paixões, e da arte, em cujo plano de consistência nem tudo é passível de ser sabido. Chamado por Deleuze, e por seu parceiro Félix Guattari, de plano de composição
, o pensamento próprio da arte é imanente às matérias com que, para que a arte exista, manejamos. Pensar com arte é pensar com as matérias da terra, com suas formas, com modos de expressão que jamais se apartam dos corpos dos instrumentos e elementos dos quais a que arte se faz valer em suas mais variadas manifestações. Para tanto, isso implica abandonar os apaziguamentos das relações amistosas e assumir os perigos das paixões, tendo em vista que, tanto no amor, quanto nas relações com o corpo cheio de intempéries, explosões, erosões e deslizamentos de Gaia, não há grandes possibilidades de controle. Será preciso enfrentar perigos, encarar o desconhecido, ultrapassar a perspectiva humana que tanto quer saber de tudo e dominar a terra.
Tudo o que se faz para a terra, fazemos para os seres que nela vivem. Separar resíduos, tratar do lixo, especialmente o químico, ter conhecimento e precauções para lidar com tóxicos, cuidar de composteiras, adubar a vegetação, limpar as praias, os bosques, as montanhas, as florestas, tudo isso requer uma educação, uma educação para a saúde da terra. Os seres humanos estão sendo educados para consumir itens, criar lixo, trabalhar com sucata e não mais com matérias primas. As coisas estão sendo feitas pelas máquinas, as mãos humanas não passam de operadoras e não mais as criadoras das coisas. Como reverso, precisam catar e destinar adequadamente tudo aquilo que produzem, regenerando a terra, todas as suas paisagens adulteradas e os corpos adoecidos dos seres que habitam territórios destruídos, contaminados e dilapidados. Esses são os princípios de José Lutzenberger, leitor de Nietzsche, que defendeu a ecologia e sabia que profundas modificações em prol da saúde da Terra dependiam de transformações radicais no pensamento humano. Além de seu livro Gaia: o planeta vivo, suas obras, práticas, convicções e projetos ambientais fazem parte das práticas geoeducacionais almejadas. Em busca dessa mudança, os ensaios filosóficos que consistem Gaia educação: arte e filosofia da diferença operam num plano conceitual, com a intenção de, ao invés de reiterar os paradigmas sistêmicos que tratam dessas questões, partir para o empirismo transcendental da diferença filosófica. Isso implica tratar das questões ecológicas de ponta cabeça, com o corpo, não se prendendo em identidades, classes, reinos e sim percorrendo territórios. Uma análise das múltiplas combinações possíveis nos territórios do pensamento, fora dos paradigmas estabelecidos, atenta às peles e às sensações.
Aqui retomo a tese¹ que defendeu o dionisíaco e seus transes como aprendizagem, almejando um sistema educacional ético, mais venusiano do que marcial, sem moralidades e moralismos, sem a busca de um conhecimento superior
, acima do que a terra e seu manejo adequado podem ensinar. Para tanto, o que se intitulou, apressadamente, de Arte e Geo-educação: perspectivas virtuais precisou, acima de tudo, defender um maneirismo ao invés de um método², afirmar um corpo antes de um conceito, criar figuras e paisagens antes de se ater nas palavras. Sua síntese, o texto Tópicos para uma geo-educação, foi publicada com o título Geo-educação: arte e paisagens virtuais, no livro Linhas de Escrita, em composição com textos de Sandra Corazza e Tomas Tadeu³. Com Félix Guattari, o que hoje se afirma como Gaia Educação é uma perspectiva que se assume ecosófica, imanente às ecologias terrenas e às ecologias subjetivas interpessoais que envolvem produções geoplásticas. Essas produções implicam tanto obras de arte de cunho expositivo quanto atitudes prosaicas, como aprender com um seringueiro analfabeto. O que quer se afirmar é um ethos institucional e doméstico, posturas dialogais em sala de aula, uma estética existencial que promova novos valores nas relações entre o que humanos fazem e o que a terra nos oferece.
O texto Estudar a Terra traz algumas linhas em torno do que vem a ser mostrar o pensamento na escrita, desenvolvendo, como nas artes plásticas, gráficas e visuais, um estilo. Provas é um ensaio que trata da devoração do pensamento envolvida na criação dos conceitos, trazendo a antropofagia e o canibalismo teórico com a geofilosofia de Deleuze e Guattari nos campos problemáticos que os conceitos percorrem. Pontos, linhas, cores apresenta o perspectivismo de Nietzsche em demonstrações visuais quase matemáticas, a fim de compreendermos como o ínfimo e o imperceptível são necessários para sairmos das perspectivas homogêneas e absolutas da fácil visualização. Matérias pensa uma educação para a terra e o próprio conceito de matéria a ela imanente, tratando da infinitude e explicando conceitos geofilosóficos. Maneirismo faz um apanhado dos acontecimentos que criaram campos separados para as matérias da arte e da ciência, a fim de reverter tais compartimentalizações epistêmicas. Em Mestres, trago o modo de pensar daqueles professores, poetas e clínicos que deram as costas para as tradições filosóficas e, a partir de Nietzsche, com estudos dos mais diversos autores e campos de conhecimento, atravessaram as grandes noções ditas verdadeiras
em prol de um pensamento com múltiplas perspectivas, procurando se deixar invadir pelos devires estranhos, malditos, assustadores, inspirados pelo híbrido extravagante cujas quatro mãos escreveram O que é filosofia? e Mil Platôs. Monstro que choca as pessoas com o cu luminoso que caga e fode já na primeira página do anti-Édipo. Essa junção de cérebros inventou um professor feito macaco, feito lagosta, feito universo, feito vida
, personagem conceitual, o professor Challenger é aquele que fez a Terra berrar e que ensina a impossibilidade de distinguir a matéria das formas e dos conteúdos, sendo o próprio personagem macaco-lagosta sua expressão. Fragil magister pensa a educação a partir daquele ponto oscilante, no qual a Educação se racha nas experiências do magistério e vira outra coisa, deixando de ser educada para se tornar território de aprendizagens transversais. Traz os conceitos apolíneo
e dionisíaco
que Nietzsche desenvolve em O Nascimento da Tragédia, a fim de compreendermos o revezamento entre as forças complementares do pensamento. Opera com o conceito frágil, adjetivo substancializado para dar conta de uma série de poéticas e questões trabalhadas artisticamente por mim há mais de uma década e ao que venho pensando em torno da vida magisterial, cuja etimologia indica a relação do trabalho com signos e da magia. Em M♀ Máquinas de Vênus, parto do conceito esquizoanalítico de máquina de guerra para tratar de uma máquina criadora, na qual, com a arte, nos permite experimentar o limite impreciso do corpo, transpondo a pele que o envolve num esparramar de suas sensações por toda a paisagem. Peles desenvolve o conceito de derme pictórica, criado para dar conta de um corpo sem órgãos (CsO) imagético. CsO consiste num conceito-chave, que Deleuze e Guattari trazem de Antonin Artaud, para tratar tanto do pensamento quanto da matéria ao pensar imanente. No composto de imagens e da matéria própria às artes visuais, trago essa derme como chão
para uma Gaia Educação geoplástica. Por fim, Rodar é um ensaio definitivo, pelo menos ao que se compõe neste conjunto, na proposição, sempre aberta e mutável, de uma educação dionisíaca, sem programas rígidos, sem bases curriculares pré-estabelecidas, sem conhecimentos ditos verdadeiros e obrigatórios. Para tanto, retoma os sentidos trágicos da arte e, novamente, Nietzsche.
Pensar com arte, atuando diretamente na matéria, é muito diferente do que pensar filosoficamente, conceito sobre conceito, valendo-se de linguagens e palavras. Os desenhos que acompanham os blocos textuais valem-se de esquemas, figuras e diagramas advindos das anotações manuscritas feitas junto às leituras indicadas no desenrolar do pensamento. Junto a um atlas de anatomia, as imagens de Mil Platôs, o segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia e ilustrações alquímicas⁴, traço diagramas junto a figuras estéticas a fim de dar corpo aos conceitos e demonstrações filosóficas que consistem no substrato de um pensamento geoplástico. O diagrama (p.19) apresenta o que o artista Hundertwasser traz no esquema das cinco camadas, as quais chama de peles, sendo a Terra a quinta e última das peles a partir da primeira, situada na pele do nosso próprio corpo, lócus da vida. A atenção às árvores, elementos essenciais na relação casa e cidade, participa do esquema que, a partir de Hundertwasser, aqui se mostra. Roupa, casa e cidade formam as camadas intermediárias, sendo estas invenções humanas, os estratos subjetivos, nas quais a educação para civilidade ainda impera. As camadas subjetivas que nos vestem, abrigam e garantem uma existência em comum, essa vida em cidades, com estoques e abastecimentos, com demandas de consumo e dejetos para serem resolvidos. Sem modificar o pensamento de modo a Terra ser pensada antes das invenções em prol das necessidades meramente humanas, comprometemos o andar das camadas subjetivas, sem as quais já não mais conseguimos viver. Com Guattari podemos apresentar nosso planeta como uma molécula gigante, que engloba a estratosfera com sua superfície mineral, vegetal e animal, a esfera relacional e a noosfera, relativa ao pensamento. Na busca de um balanço de forças, concentrar-se na carne e na terra é procurar as camadas extremas, totalmente inabaláveis na sua constituição. Moradias, carros, veículos, animais, cesta básica, todas essas coisas, as quais requerem signos específicos e costumes que se moldam, podem ser modificadas pela educação. Não se educa uma tempestade, mas somos educados a resistir ao dano que uma borrasca pode causar ao nosso corpo. Educamos nosso corpo para aguentar