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A constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula
A constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula
A constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula
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A constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula

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Em "A constituição traída: da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula" estão três dos discursos mais marcantes de nossa história política recente: o de Ulysses Guimarães, quando da promulgação da Constituição; o de Dilma Rousseff, no dia em que o Senado ratificou seu impeachment sem crime; e o de Lula, em São Bernardo, logo antes de se dirigir à Polícia Federal para seu cárcere. Estão, também, entrevistas com personagens fundamentais no processo político da Assembleia Nacional Constituinte, que destrincham os jogos de força que permearam a disputa pela redação final da Constituição Cidadã. E estão, por fim, quinze ensaios e artigos de destacados intelectuais de áreas como o Direito e a Economia, que procuram nos escombros a razão de nossa falência democrática.
A pergunta a se responder é, pois, das mais difíceis: como a Carta Constitucional de 1988, fruto de tamanha mobilização social, e que parecia ter tão bem exprimido a correlação de forças do Brasil de outrora, pôde ser escamoteada e jogada no lixo passados pouco mais de trinta anos? O que mudou? Que porta da barbárie não foi completamente fechada?
A democracia brasileira jaz, colapsada. As instituições inspiram pouca senão nenhuma confiança. O jogo democrático, aviltado por um fascismo que apela às nossas emoções mais primitivas, se dá por calúnias disseminadas pelo poder das redes. Os Três Poderes se batem, decapitados, procurando no vácuo de poder a oportunidade para seu predomínio: a lei nada vale. Fazer o balanço de tal panorama só seria possível em uma obra tão múltipla, em formas, conteúdos, tempos e propósitos quanto esta. Ao sopesar superações e reminiscências de nosso passado autoritário, "A constituição traída" se coloca enquanto um esforço monumental e necessário de destrinchar um momento tão difícil do Brasil, e que, ao apontar para as insuficiências de nosso último grande esforço democrático, pavimenta o caminho para as próximas lutas que virão.
IdiomaPortuguês
EditoraHedra
Data de lançamento27 de jul. de 2020
ISBN9788577156351
A constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula

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A constituição traída - Hedra

brasileiro.

Prefácio

Paulo Pimenta¹

Trinta anos após a Constituição mais avançada que o Brasil construiu – e, ainda assim, bem aquém do que pretendia e merecia o povo brasileiro no processo constituinte – ao longo de quase dois séculos enquanto nação independente, vivemos um cenário muito semelhante ao da Velha República.

A consolidação da modernidade civilizatória esperada para o século XXI foi freada e revertida bruscamente por um novo pacto das elites, fenômeno que já vivenciamos algumas vezes na nossa história. Voltamos a ser governados, como na virada do século XIX para o XX, por prepostos dos coronéis da Casa Grande, devidamente vigiados e protegidos por jagunços, que hoje também atendem pela alcunha de milicianos.

Aos inimigos da ordem pública, que reivindicam alternativas políticas ao status quo, a solução empregada é a polícia, tal qual como na época dos oligarcas do café e do leite. Agentes públicos de alguns setores do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal – especialmente magistrados, procuradores e policiais envolvidos na Operação Lava Jato – são apenas a versão contemporânea das forças de repressão dos nossos primeiros tempos de República.

Está mais atual do que nunca a frase atribuída ao presidente Washington Luís: A questão social é caso de polícia. Se depender do bloco de poder que governa o Brasil hoje, movimentos sociais – cujas contribuições para um mundo mais justo, democrático e solidário são reconhecidas internacionalmente – serão tratados como terroristas.

A presente obra, com a qual honrosamente contribuo por meio deste prefácio, é um documento histórico de extrema relevância e, mais do que isso, trata-se de libelo em defesa da democracia, do Estado de Direito e das garantias e liberdades fundamentais, hoje ameaçadas pela associação perversa entre o neofascismo e a agenda ultraneoliberal posta em curso desde o afastamento ilegal da presidenta Dilma Rousseff.

Desde 2015, com a assunção de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados, esta Casa tornou-se a arena central da disputa política brasileira. Na condição de parlamentar, inclusive de líder da Bancada do PT em 2018 e 2019, pude testemunhar de muito perto todas as manobras feitas para derrocar o governo da presidenta Dilma Rousseff, para atacar o significado político e histórico do Partido dos Trabalhadores e, pior de tudo, para destruir todo o alicerce de direitos trabalhistas e sociais conquistado pela sociedade brasileira em mais de um século de lutas.

Os discursos que abrem esta coletânea, composta de textos de importantes lutadores e protagonistas da história do Brasil, são leituras obrigatórias para se compreender o caminho percorrido pelo país nas últimas três décadas.

Em seu pronunciamento emblemático de uma era que tinha início a 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães ressaltava o valor da coragem, afirmando que ela é a matéria-prima da civilização. Essa virtude foi muito bem personificada por Dilma Rousseff ao enfrentar cara a cara, sem subterfúgios, em sessão do Senado Federal, aqueles que não traíram apenas o seu mandato conquistado nas urnas, mas, sobretudo, a expressão legítima e soberana da vontade popular depositada nas urnas em outubro de 2014.

Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam, registrou a presidenta naquele 29 de agosto de 2016. A sua consciência estava – e segue até hoje – tranquila diante da conspiração armada por diversos atores políticos que não podiam mais aceitar que seus interesses, subalternos e entreguistas em âmbito internacional, fossem deixados de lado para que prevalecessem os anseios do povo brasileiro, corporificados nos princípios e direitos sociais inscritos na Carta Magna.

Este documento promulgado a 5 de outubro de 1988 teve a contribuição decisiva e direta da Bancada do Partido dos Trabalhadores. Embora contasse com apenas 16 parlamentares, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, foi graças à intensa e qualificada atuação dos petistas, sempre articulados e fortalecidos pela sociedade civil, que foram aprovados os artigos que promovem direitos da cidadania frente aos objetivos mercantis do que Ulysses Guimarães apontou como campanha mercenária daqueles que tinham suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações.

O deputado Lula, eleito para a Assembleia Nacional Constituinte com a maior votação do país, mostrou ao Brasil que era possível fazer política tendo como bússola a superação dos problemas crônicos de uma sociedade extremamente desigual e injusta.

Anos depois, e após três derrotas eleitorais, o presidente Lula transformou em realidade a esperança de dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros que sonhavam por uma vida melhor. Renda mínima para garantir o direito à alimentação e erradicar a fome; universidades e escolas técnicas federais; energia elétrica em todos os rincões do país; moradia digna subsidiada pelo Estado; crédito facilitado para a agricultura familiar; infraestrutura para alavancar a economia e o desenvolvimento regional; crescimento sólido do PIB com acelerada distribuição de renda e diminuição da extrema pobreza, entre tantas outras ações, premiadas e replicadas no mundo inteiro, são marcas indeléveis do legado de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República.

O maior líder popular da história política brasileira foi também o mais importante chefe de Estado que o país já teve. Essa opinião é aceita até mesmo por adversários políticos. Mais do que isso, tal tese é amplamente reconhecida pela comunidade internacional e pela população que foi diretamente beneficiada pelas políticas públicas dos governos Lula e Dilma.

A mesma percepção se dá quanto às condenações sem provas – bem como a prisão ilegal e toda uma série de arbitrariedades – impostas contra o ex-presidente, vítima do lawfare, estratégia política de perseguição jurídica que vem sendo largamente utilizada na América Latina na última década e tem como objetivos centrais a destruição da imagem pública e o cerceamento de direitos políticos de lideranças populares.

A perseguição contra Lula é abordada de forma profunda e detalhada neste livro, mas vale parafrasear Ulysses Guimarães, que citou ao final do seu discurso icônico na promulgação da Constituição o deputado Rubens Paiva, sequestrado pela ditadura militar inaugurada em 1964 e desaparecido político: A sociedade é Lula, não os facínoras que o prenderam.

Boa leitura, que será também uma cátedra de História, de Ciência Política e de Direito, dada a qualidade dos autores dos textos contidos nesta obra.


Jornalista, técnico agrônomo, deputado federal e líder do PT na Câmara dos Deputados (2018-2019).

Apresentação

A Constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e prisão de Lula é um livro que surgiu da necessidade de analisar a ruptura institucional que o país atravessa, consolidada no impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, e aprofundada na aprovação da desreforma trabalhista e do congelamento dos gastos sociais por 20 anos, e em mais um golpe dentro do golpe: a sentença do parcial juiz Sérgio Moro, confirmada pelos três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que manteve a condenação e ampliou a pena de prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex no Guarujá.

Um julgamento comprovadamente sem crime, sem provas e recheado de nulidades jurídicas, em que o Supremo Tribunal Federal, ao rejeitar o pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, negou-lhe o direito da presunção de inocência que é cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, rasgando-a: lê-se, no Artigo 5º, inciso LVII, que Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por algum tempo, nutrimos a esperança de que a Constituição de 1988 tivesse encerrado o ciclo de instabilidade política no país; de que a democracia estava consolidada e caminhávamos para um aprimoramento permanente das nossas instituições. Ledo engano na interpretação do nosso processo histórico.

No ano que relembramos os 30 anos da promulgação da Constituição Brasileira, é importante rememorar o discurso histórico de Ulysses Guimarães em 5 de outubro de 1988, marca na história e na memória do povo brasileiro. Posso até imaginar que Ulysses antevia que não podemos descumprir a Constituição: A nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.

Não aceitamos a perseguição e manipulação da justiça para tirar o ex-presidente Lula da disputa eleitoral de 2018. Todo o processo movido contra ele é uma farsa partidária de setores do sistema judicial, orquestrado pela Rede Globo, com o objetivo de tirá-lo do processo eleitoral.

Um golpe político, midiático e judicial do capital financeiro nacional e internacional, que se esforça para ostentar uma aparência de observância das mesmas regras jurídicas que viola, deixando clara a fragilidade da nossa democracia.

***

O presente livro traz um conjunto de análises no campo político, jurídico, econômico e sindical das principais vozes que têm combatido o bom combate da defesa da democracia, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e contra o estado de exceção que estamos vivendo.

Contribuem com seguintes textos os intelectuais da luta democrática, cada um na sua trincheira de luta pela restauração do Estado Democrático de Direito:

Educação da Constituição Cidadã ao Golpe de 2016. De Heleno Araújo, presidente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação);

A Constituinte e o capitalismo brasileiro. De Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas;

A fotografia constitucional de 1988. De José Eduardo Cardozo, advogado e professor de Direito. Foi Ministro da Justiça e Advogado-Geral da União, além de ter defendido a presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment;

Morreu na contramão atrapalhando o sábado – A Constituição, o golpe e as reformas. De Maria Goretti Nagime, jurista;

A Constituinte, as mulheres e o Golpe. De Vivian Farias, Dirigente Nacional do Partido dos Trabalhadores e da Fundação Perseu Abramo;

A Constituição Federal de 1988 e a efetividade dos direitos sociais. Dos juristas Wilson Ramos Filho e Nasser Ahmad Allan;

Desdobramentos hermenêutico-constitucionais do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff no contexto da pós-democracia. De Bruno Galindo, jurista e professor de Direito da UFPE;

A Atuação política do Juiz: Uma análise à luz da Operação Lava Jato. De Mariana de Carvalho Milet, Juíza do Trabalho;

A defesa desvirtuada – 30 anos da Constituição Brasileira. De Ademar Rigueira Neto, advogado e jurista;

A Constituição Federal das garantias dos direitos sociais e o golpe político desconstitutivo do trabalho no Brasil. De Marcio Pochmann, economista e presidente da Fundação Perseu Abramo;

Justiça de transição e usos políticos do Poder Judiciário no Brasil em 2016: um golpe de Estado institucional? De José Carlos Moreira Filho, jurista e professor da PUC/RS;

Réquiem para a Constituição de 1988. De Rafael Valim, jurista e professor de direito da PUC/SP;

A classe trabalhadora e a luta em defesa intransigente da Constituição Brasileira. De Carlos Veras, presidente da CUT/Pernambuco;

Os 30 anos da Constituição Brasileira. De Carmen Foro, vice-presidenta nacional da CUT;

"O fenômeno do Lawfare sobre as óticas do direito e da política: Uma análise do caso Lula". Do jurista Victor Fialho.

Por fim, o livro A Constituição traída: Da abertura democrática ao golpe e prisão de Lula inclui na íntegra as entrevistas que compõem o documentário Constituinte: 1987–1988, lançado em 2012 e publicado em livro em 2016 pelo CFOAB (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil). Foram entrevistados: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Marco Maciel, Mauro Benevides, Nelson Jobim, Fernando Lyra, Paulo Paim, Vicentinho, Cristovam Buarque, Roberto Freire, José Genoíno, Egídio Ferreira Lima, Maurílio Ferreira Lima, Marcos Terena, Jair Meneguelli e o cientista político David Fleischer, de forma a desvendar os bastidores do processo que elaborou a Constituição Brasileira de 1988.

É possível percorrer nas entrevistas relatos inéditos de como tudo ocorreu. Entre as várias etapas, expõe episódios do governo Sarney e de sua relação com o congresso, da elaboração do regimento interno, a composição dos partidos políticos, a participação popular, as emendas populares, da virada regimental com a criação do Centrão, reforma agrária, movimento sindical, entre outros.

O momento atual é propício para o resgate histórico da Assembleia Nacional Constituinte, que foi um dos eventos mais importantes da história política do país. Nossa Constituição encerrou um ciclo de instabilidade política no Brasil e a democracia parecia consolidada, até o inicio da ruptura institucional iniciada no impeachment sem crime de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, e o aniquilamento da Constituição Brasileira, feita pela condenação e prisão sem provas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornando-lhe preso político.

Siglas e abreviações

ANC – Assembleia Nacional Constituinte

BASA – Banco da Amazônia

BNB – Banco do Nordeste do Brasil

CD – Câmara dos Deputados

CEBs – Comunidades Eclesiais do Brasil

CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CNBB – Conferência Naciona dos Bispos do Brasil

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CUT – Confederação Geral dos Trabalhadores

CN – Congresso Nacional

DANC – Diário da Assembleia Nacional Constituinte

DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar

DVS – Destaque para Votar em Separado

FCO – Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste

FNE – Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste

FNO – Fundo Constitucional de Financiamento do Norte

FUNDEB – Fundo de manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de valorização dos profissionais da educação

INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social

IPI – Imposto sobre Produto Industrializado

IR – Imposto de Renda

PROCON – Programa de Orientação e Proteção ao Consumidor

SF – Senado Federal

STF – Supremo Tribunal Federal

SUS – Sistema Único de Saúde

TSE – Tribunal Superior Eleitoral

UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas

UDR – União Democrática Ruralista

UNE – União Nacional dos Estudantes

Partidos políticos

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PCdoB – Partido Comunista do Brasil

PFL – Partido da Frente Liberal

PDC – Partido Democrático Cristão

PDS – Partido Democrático Social

PDT – Partido Democrático Trabalhista

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

PL – Partido Liberal

PMB – Partido Municipalista Brasileiro

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSC – Partido Social Cristão

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

PSDB –Partido da Social Democracia Brasileira

Discursos

Ulysses Guimarães

Discurso do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em 5 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal¹

Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal, Humberto Lucena; Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Rafael Mayer; Srs. Membros da Mesa da Assembleia Nacional Constituinte; eminente Relator Bernardo Cabral; preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas; insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno; Exmos. Srs. Ministros de Estado; Exmos. Srs. Governadores de Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembleias Legislativas; dignos Líderes partidários; autoridades civis, militares e religiosas, registrando o comparecimento do Cardeal D. José Freire Falcão, Arcebispo de Brasília, e de D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes de confederações, Sras. e Srs. Constituintes; minhas senhoras e meus senhores:

Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. Dois de fevereiro de 1987: Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou.

A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.

Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes.

Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim.

Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.

A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.

Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação.

A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões.

Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações.

Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final.

A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.

Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.

A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O Estado de Direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.

Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no art. 5º., de 77 incisos e 104 dispositivos.

Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: a Constituição Cidadã.

Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram.

No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado. É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas. Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente.

Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração.

A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil. As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las.

A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos estados e dos municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.

A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.

Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo.

O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos contemporâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário.

Eis outro imperativo de governabilidade: a coparticipação e a corresponsabilidade. Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem.

Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, astante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção.

A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: Vamos votar, vamos votar, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos.

Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do senador ao Vereador.

A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização.

A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos.

Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los.

Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos.

É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar. Sr. Presidente José Sarney: V. Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V. Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a Assembleia Nacional Constituinte.

A Emenda Constitucional nº26 teve origem em mensagem do Governo, de V. Exa., vinculando V. Exa. à efemeridade que hoje a Nação celebra.

Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa. Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V. Exa. O imperativo de Muda Brasil, desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente Muda Justiça, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V. Exa. Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1º de fevereiro de 1987 a Assembleia Nacional Constituinte.

Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha Presidência.

O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública.

Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida.

Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto.

O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações.

Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembleias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. Os Líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina.

Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática.

Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País. Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes.

A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições.

Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado — da Gráfica e do Prodasen.

Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador.

Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração.

Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados.

Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles.

Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno.

Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.

Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores, A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado.

O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo.

O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei.

O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os achados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros.

O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou.

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.

Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.

Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar.

A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.

A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.

Que a promulgação seja nosso grito:

— Mudar para vencer! Muda, Brasil!


Anais da Assembleia Nacional Constituinte – CEDI (Centro de Documentação e Informação da Câmara Federal).

Dilma Rousseff

Discurso em julgamento do impeachment no Senado, em 29 de agosto de 2016¹

Excelentíssimo senhor presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, excelentíssimo senhor presidente do Senado Federal Renan Calheiros, excelentíssimas senhoras senadoras e excelentíssimos senhores senadores, cidadãs e cidadãos de meu amado Brasil, no dia 1º de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos. Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso.

Sempre acreditei na democracia e no Estado de Direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo. Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram. Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade. Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros. Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados. Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia. Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça. Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.

Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram. Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública. Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto. Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.

Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram. E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir. Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país, pelo seu bem-estar.

Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos. Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder, que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.

Hoje, o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment. No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado. O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada República do Galeão, que o levou ao suicídio. O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças. O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas. Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.

As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica. Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.

São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas. São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador. A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.

Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras nenhum direito a menos. O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição. O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria. O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso país no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns. O que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paralimpíadas. O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população. O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.

Senhoras e senhores senadores, no presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime. Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo conjunto da obra. Quem afasta o Presidente pelo conjunto da obra é o povo, e só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora

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