Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Lugar nenhum
Lugar nenhum
Lugar nenhum
E-book135 páginas1 hora

Lugar nenhum

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nos derradeiros anos da ditadura civil-militar brasileira, uma família de artistas se reúne em sua casa de praia, antiga fazenda colonial na região de Paraty, litoral fluminense, por ocasião do aniversário de Antonio, estudante de medicina que deseja seguir a carreira dos pais – a atriz Teresa, que vive crise em sua carreira, e o cineasta Jonas, que, apesar de respeitado entre seus pares do Cinema Novo, não produziu obra de sucesso. Ao lado de agregados e empregados, os personagens se encontram na iminência de uma crise familiar, que se acentua em meio a discursos inflamados, discussões e acusações.

Escrita em 2018, em comemoração aos vinte anos da Companhia do Latão, Lugar nenhum inspira-se nos diários de trabalho e nas obras de Anton Tchékhov. À maneira de uma peça-ensaio, são exploradas as contradições e a paralisia de parte da intelectualidade brasileira frente às mudanças históricas que o país então vivia no fim da década de 1960. A aparência apática dos personagens é traço central que revela os entraves ideológicos entre arte, política e classe social.

A partir do modelo do autor russo, a peça propõe uma reflexão atual sobre aspectos que acompanham a sociedade brasileira desde o período colonial: a exploração do trabalho, o racismo, a violência institucional, entre outros elementos que culminam nas práticas naturalizadas de extermínio das populações periféricas, negras e indígenas no país.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de set. de 2020
ISBN9786587243078
Lugar nenhum

Leia mais títulos de Sérgio De Carvalho

Relacionado a Lugar nenhum

Ebooks relacionados

Artes Cênicas para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Lugar nenhum

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Lugar nenhum - Sérgio de Carvalho

    Capa

    Rosto

    Apresentação

    Sérgio de Carvalho

    Lugar nenhum

    Posfácio

    Um lugar muito familiar

    Maria Rita Kehl

    Notas sobre o processo

    A dança da morte, ninguém frequentava

    Helena Albergaria

    Anexos

    Ficha técnica da estreia

    Partituras

    Sugestões de estudo

    Sobre a Companhia do Latão

    Sobre o autor

    Notas

    Créditos

    Editora

    Landmarks

    Cover

    Title Page

    Table of Contents

    Rear Notes

    Copyright Page

    Colophon

    Apresentação

    Sérgio de Carvalho

    A gente só aprende imitando.

    (Fúria Santa, personagem de O pão e a pedra, citando Aristóteles)

    Em seus últimos anos de vida, já na companhia de teatro Berliner Ensemble, quando se vê diante da necessidade de organizar uma pedagogia artística para o teatro épico-dialético, Bertolt Brecht incorpora em seu vocabulário a ideia de modelo artístico. Suas obras de teatro deveriam, ao serem publicadas, mostrar o trabalho teatral contido nelas, algo que ultrapassaria a ação de uma única pessoa e de um resultado formal. É o trabalho de muita gente que conecta uma obra a seu passado e a seu futuro. Sua possível atitude clássica, como observou certa vez meu querido amigo José Antonio Pasta, se liga a sua imitabilidade e à capacidade de dialogar com realizações de muitas épocas. Brecht produziu, assim, modelos de encenação para serem copiados por outros artistas, o que causa estranheza na medida em que parece contrariar o ideal de uma livre invenção estética. Como bom dialético, o dramaturgo considerava que o processo de cópia engendra sua própria negação ao se dar como arte, o que está de acordo com a tradição da arte pré-burguesa. Por saber que não é possível um acesso puramente teórico aos métodos do teatro dialético, considerava que o melhor processo de aprendizado para um dramaturgo ou encenador é a cópia, no domínio da prática, desde que ele seja capaz de tornar a cópia uma arte.[1] Sua intenção, ao fim das contas, era estimular que outros encenadores produzissem visões próprias a partir do nível de elaboração atingido pelo modelo, o que só pode ser feito com uma compreensão totalizante de seu processo gerativo.

    Brecht gostava de anunciar que sua dramaturgia nasceu da cópia do teatro japonês, elisabetano e grego. Foi essa a verdade de seu aprendizado, reinventado a cada peça. É muito comum, entretanto, que jovens dramaturgos, quando se valem do mesmo procedimento, enxerguem apenas aspectos estilísticos das obras que admiram. Reproduzem uma dimensão mais externa e visível da forma, ignorando a relação provocada com o público de seu tempo, sua atitude geral, também feita do tema e da postura ideológica. A utilização do trabalho de um grande artista como modelo exige sempre algo mais do que a apreciação de suas conquistas estéticas: é preciso também realizar a sondagem dos sentidos nem sempre explicitados na forma. O exercício da cópia exige, portanto, o enfrentamento e a desmontagem de um conjunto de valores que se transmitem do modelo à nova obra. Caberá ao artista aprendiz verificar em que medida concorda ou discorda da visão de mundo contida na obra (seus enunciados visíveis e invisíveis), tendo em vista interesses atuais.

    Lugar nenhum surgiu para mim de uma admiração imensa pela obra do escritor russo Anton Tchékhov. Por anos pensei em encenar uma de suas peças e sempre esbarrei nas dificuldades técnicas da realização e na exigência de condições quase impraticáveis hoje: longo tempo de elaboração, tranquilidade produtiva, conjunto da equipe com maturidade artística e pessoal. Por outro lado, ao estudar sua obra, sempre a considerei, pela radicalidade de sua configuração dialética, modelar e quase inimitável, o que é uma contradição.

    Não obstante, Tchékhov é dos autores mais influentes do teatro do século XX. Gerou muitas cópias que, com frequência, incidiram em aspectos parciais e contribuíram para a impressão de que a dramaturgia tchekoviana é aquela composta por um grupo de vítimas. Nessa vulgata, figuras culturalizadas se encontram numa situação de confinamento, quase sempre acidental. Entre a melancolia e a ironia, elas demonstram autoconsciência sobre a própria inação e incapacidade de superar o impasse geracional. Acabam por solicitar a identificação e complacência do público. Essa imagem superficial pouco corresponde à verdade das peças. Não por acaso, chega a inspirar certa cena pós-dramática atual, em seus arranjos estetizados de vítimas-performativas.

    Com o passar dos anos, já menos sujeito ao culto estético à melancolia que também me acometeu, fui criando gosto pelo lado mais material, historicizante e patético da dramaturgia de Tchékhov. Um lado pouco afeito à autocomiseração. Já podia ver que o drama de seus personagens se inscreve numa situação de classe e numa encruzilhada histórica e geográfica muito precisas. A despeito da dor que deveras sentem, seu falatório bêbado e desesperado surge distanciado pelos mundos silenciosos do trabalho que rondam a peça, por chás em samovares servidos por empregadas, pelas rondas noturnas, preparação de malas e cavalos feitas por ex-servos que tudo observam. Nesse estranho e complexo jogo de contradições, a própria forma dramática faz parte do problema.

    A chave artística das obras-primas de Tchékhov, por sua vez, nasceu também de um processo de livre cópia. Em A gaivota, peça onde parece delinear de vez seu método teatral, há uma prática imitativa de Hamlet, de Shakespeare. Há ali um protagonista de consciência excessiva e fora de lugar, movido por uma paixão ambígua e condenatória em torno do comportamento da mãe, e uma reflexividade que corresponde a gestos estabanados e destrutivos. Mais do que isso, Tchékhov observa em Shakespeare uma tragicidade negativa que se totaliza, feita de individuações problemáticas. E que contagia não só os protagonistas mas o todo do conjunto social.

    Ao enfatizar a dimensão mercantil dessas expectativas e tratá-las à luz da realidade social de seu tempo, o modelo shakespeariano é, porém, completamente adulterado. Tchékhov conhecia de perto o comportamento da elite culturalizada russa, compreendia as razões objetivas de sua aversão a se considerar pequeno-burguesa, e partilhou do sentimento de desterro de tantos intelectuais de países periféricos, em face do mundo senhorial e servil do qual fazem parte. Pôde descrever, assim, em contos e no teatro, a tendência de uma classe culturalizada

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1