Lugar nenhum
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Sobre este e-book
Escrita em 2018, em comemoração aos vinte anos da Companhia do Latão, Lugar nenhum inspira-se nos diários de trabalho e nas obras de Anton Tchékhov. À maneira de uma peça-ensaio, são exploradas as contradições e a paralisia de parte da intelectualidade brasileira frente às mudanças históricas que o país então vivia no fim da década de 1960. A aparência apática dos personagens é traço central que revela os entraves ideológicos entre arte, política e classe social.
A partir do modelo do autor russo, a peça propõe uma reflexão atual sobre aspectos que acompanham a sociedade brasileira desde o período colonial: a exploração do trabalho, o racismo, a violência institucional, entre outros elementos que culminam nas práticas naturalizadas de extermínio das populações periféricas, negras e indígenas no país.
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Pré-visualização do livro
Lugar nenhum - Sérgio de Carvalho
Capa
Rosto
Apresentação
Sérgio de Carvalho
Lugar nenhum
Posfácio
Um lugar muito familiar
Maria Rita Kehl
Notas sobre o processo
A dança da morte, ninguém frequentava
Helena Albergaria
Anexos
Ficha técnica da estreia
Partituras
Sugestões de estudo
Sobre a Companhia do Latão
Sobre o autor
Notas
Créditos
Editora
Landmarks
Cover
Title Page
Table of Contents
Rear Notes
Copyright Page
Colophon
Apresentação
Sérgio de Carvalho
A gente só aprende imitando.
(Fúria Santa, personagem de O pão e a pedra, citando Aristóteles)
Em seus últimos anos de vida, já na companhia de teatro Berliner Ensemble, quando se vê diante da necessidade de organizar uma pedagogia artística para o teatro épico-dialético, Bertolt Brecht incorpora em seu vocabulário a ideia de modelo artístico
. Suas obras de teatro deveriam, ao serem publicadas, mostrar o trabalho teatral
contido nelas, algo que ultrapassaria a ação de uma única pessoa e de um resultado formal. É o trabalho de muita gente que conecta uma obra a seu passado e a seu futuro. Sua possível atitude clássica, como observou certa vez meu querido amigo José Antonio Pasta, se liga a sua imitabilidade e à capacidade de dialogar com realizações de muitas épocas. Brecht produziu, assim, modelos de encenação para serem copiados por outros artistas, o que causa estranheza na medida em que parece contrariar o ideal de uma livre invenção estética. Como bom dialético, o dramaturgo considerava que o processo de cópia engendra sua própria negação ao se dar como arte, o que está de acordo com a tradição da arte pré-burguesa. Por saber que não é possível um acesso puramente teórico aos métodos do teatro dialético, considerava que o melhor processo de aprendizado para um dramaturgo ou encenador é a cópia, no domínio da prática
, desde que ele seja capaz de tornar a cópia uma arte
.[1] Sua intenção, ao fim das contas, era estimular que outros encenadores produzissem visões próprias a partir do nível de elaboração atingido pelo modelo, o que só pode ser feito com uma compreensão totalizante de seu processo gerativo.
Brecht gostava de anunciar que sua dramaturgia nasceu da cópia
do teatro japonês, elisabetano e grego. Foi essa a verdade de seu aprendizado, reinventado a cada peça. É muito comum, entretanto, que jovens dramaturgos, quando se valem do mesmo procedimento, enxerguem apenas aspectos estilísticos das obras que admiram. Reproduzem uma dimensão mais externa e visível da forma, ignorando a relação provocada com o público de seu tempo, sua atitude geral, também feita do tema e da postura ideológica. A utilização do trabalho de um grande artista como modelo exige sempre algo mais do que a apreciação de suas conquistas estéticas: é preciso também realizar a sondagem dos sentidos nem sempre explicitados na forma. O exercício da cópia exige, portanto, o enfrentamento e a desmontagem de um conjunto de valores que se transmitem do modelo à nova obra. Caberá ao artista aprendiz verificar em que medida concorda ou discorda da visão de mundo contida na obra (seus enunciados visíveis e invisíveis), tendo em vista interesses atuais.
Lugar nenhum surgiu para mim de uma admiração imensa pela obra do escritor russo Anton Tchékhov. Por anos pensei em encenar uma de suas peças e sempre esbarrei nas dificuldades técnicas da realização e na exigência de condições quase impraticáveis hoje: longo tempo de elaboração, tranquilidade produtiva, conjunto da equipe com maturidade artística e pessoal. Por outro lado, ao estudar sua obra, sempre a considerei, pela radicalidade de sua configuração dialética, modelar e quase inimitável, o que é uma contradição.
Não obstante, Tchékhov é dos autores mais influentes do teatro do século XX. Gerou muitas cópias que, com frequência, incidiram em aspectos parciais e contribuíram para a impressão de que a dramaturgia tchekoviana é aquela composta por um grupo de vítimas
. Nessa vulgata, figuras culturalizadas se encontram numa situação de confinamento, quase sempre acidental. Entre a melancolia e a ironia, elas demonstram autoconsciência sobre a própria inação e incapacidade de superar o impasse geracional. Acabam por solicitar a identificação e complacência do público. Essa imagem superficial pouco corresponde à verdade das peças. Não por acaso, chega a inspirar certa cena pós-dramática
atual, em seus arranjos estetizados de vítimas-performativas.
Com o passar dos anos, já menos sujeito ao culto estético à melancolia
que também me acometeu, fui criando gosto pelo lado mais material, historicizante e patético da dramaturgia de Tchékhov. Um lado pouco afeito à autocomiseração. Já podia ver que o drama de seus personagens se inscreve numa situação de classe e numa encruzilhada histórica e geográfica muito precisas. A despeito da dor que deveras sentem
, seu falatório bêbado e desesperado surge distanciado pelos mundos silenciosos do trabalho que rondam a peça, por chás em samovares servidos por empregadas, pelas rondas noturnas, preparação de malas e cavalos feitas por ex-servos que tudo observam. Nesse estranho e complexo jogo de contradições, a própria forma dramática faz parte do problema.
A chave artística das obras-primas de Tchékhov, por sua vez, nasceu também de um processo de livre cópia
. Em A gaivota, peça onde parece delinear de vez seu método teatral, há uma prática imitativa de Hamlet, de Shakespeare. Há ali um protagonista de consciência excessiva e fora de lugar, movido por uma paixão ambígua e condenatória em torno do comportamento da mãe, e uma reflexividade que corresponde a gestos estabanados e destrutivos. Mais do que isso, Tchékhov observa em Shakespeare uma tragicidade negativa que se totaliza, feita de individuações problemáticas. E que contagia não só os protagonistas mas o todo do conjunto social.
Ao enfatizar a dimensão mercantil dessas expectativas e tratá-las à luz da realidade social de seu tempo, o modelo shakespeariano é, porém, completamente adulterado. Tchékhov conhecia de perto o comportamento da elite culturalizada russa, compreendia as razões objetivas de sua aversão a se considerar pequeno-burguesa, e partilhou do sentimento de desterro de tantos intelectuais de países periféricos, em face do mundo senhorial e servil do qual fazem parte. Pôde descrever, assim, em contos e no teatro, a tendência de uma classe culturalizada