Peixe-elétrico #05: Silviano
()
Sobre este e-book
Em um segundo ensaio, relendo seus próprios textos, SILVIANO SANTIAGO analisa o fenômeno da autoficção na literatura contemporânea.
Jamaicano radicado nos EUA, GARNETTE CADOGAN mostra um pouco de seu projeto de fenomenologia da caminhada. Ao andar por bairros constrastantes em Nova York, Cardogan discute a dinâmica das mudanças culturais em cenários urbanos, a partir do olhar de quem caminha e observa. Racismo, luta de classes, urbanismo e violência, são lidos de muito perto.
Em um texto refinado, ANA PAULA PACHECO analisa o filme "Iracema – uma transa amazônica", observando como a modernidade chega em espaços abandonados, trazendo consequências de toda ordem. A experimentação formal dos diretores cria uma ficção documental até hoje valiosa e significativa para a compreensão do nosso atraso.
FLAVIO RICARDO VASSOLER, com estilo forte e bastante erudição (sem falar na experiência de quem conhece o Império russo pessoalmente) analisa a obra de Svetlana Alexievich, a mais recente Prêmio Nobel de Literatura, notando tanto a originalidade de sua obra como a força de denúncia que ela traz no bojo de vozes desencontradas e perdidas em meio a um Império em franca decadência.
RICARDO LÍSIAS resenha o livro "Sermões" de Nuno Ramos e a partir dessa leitura procura elementos que organizem a obra literária e visual do artista paulistano.
Em um texto fragmentário e errante, BRUNO RODRIGUES retoma as questões que seu primeiro texto publicado na Peixe-elétrico (edição # 2) já apresentava: as exclusões que o cânone literário representa, o elitismo que persiste em muitas questões literárias e a militância urgente que nosso tempo parece recusar. Aqui, o ensaio assume um lugar corrosivo e de contestação.
"O triunfo do leitor", de THIAGO BLUMENTHAL, analisa o novo status que a figura do leitor parece estar assumindo em um tempo em que mais do que ler, é preciso mostrar esse ato, declará-lo ao mundo e, ainda mais, ilustrar-se publicamente com os efeitos dessa leitura.
Esta edição é toda ilustrada por flagrantes de Nova York clicados pelo militante e talentoso fotógrafo RUDDY ROYE.
Relacionado a Peixe-elétrico #05
Títulos nesta série (11)
Peixe-elétrico #01: Piglia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #02: Jameson Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #04: Terror Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #03: Sarlo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #05: Silviano Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #06: Arcadio Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #07: Loser Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #09: END Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico Bob Dylan: Edição especial Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #08: Guerra Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico Plataforma da nova geração: Edição especial Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Ebooks relacionados
Sobre Lima Barreto: Três ensaios Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #01: Piglia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs deuses têm sede Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #06: Arcadio Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTomada de Posse Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPeixe-elétrico #09: END Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuplemento Pernambuco #186: A poesia é um gás Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRonda da noite Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBichos contra a vontade Nota: 5 de 5 estrelas5/5Viola de bolso: Mais uma vez encordoada Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO pão e a pedra Nota: 0 de 5 estrelas0 notasMais longa vida Nota: 0 de 5 estrelas0 notasGris Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuplemento Pernambuco #193: Deixa ele entrar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuplemento Pernambuco #194: Sylvia Plath, 90 anos, e os ecos de uma poeta do futuro. Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTarde Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSeleta - Por pior que pareça Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuplemento Pernambuco #201 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasBagageiro Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEu que chorei este mar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasViver e traduzir Nota: 0 de 5 estrelas0 notasMar azul Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDomingo Eu Vou Pra Praia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Isca Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm operário em férias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCidade Velha Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA arte de Eliseu Visconti e a modernidade na Primeira República Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO cego e o trapezista: Ensaios de literatura brasileira Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTextamentos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs que ficam Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Ciências Sociais para você
Um Olhar Junguiano Para o Tarô de Marselha Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSegredos Sexuais Revelados Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm Poder Chamado Persuasão: Estratégias, dicas e explicações Nota: 5 de 5 estrelas5/5Manual das Microexpressões: Há informações que o rosto não esconde Nota: 5 de 5 estrelas5/5O livro de ouro da mitologia: Histórias de deuses e heróis Nota: 5 de 5 estrelas5/5A perfumaria ancestral: Aromas naturais no universo feminino Nota: 5 de 5 estrelas5/5O Manual do Bom Comunicador: Como obter excelência na arte de se comunicar Nota: 5 de 5 estrelas5/5Detectando Emoções: Descubra os poderes da linguagem corporal Nota: 4 de 5 estrelas4/5As seis lições Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTudo sobre o amor: novas perspectivas Nota: 5 de 5 estrelas5/5A Bíblia Fora do Armário Nota: 3 de 5 estrelas3/5A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações Nota: 5 de 5 estrelas5/5Liderança e linguagem corporal: Técnicas para identificar e aperfeiçoar líderes Nota: 4 de 5 estrelas4/5Apometria: Caminhos para Eficácia Simbólica, Espiritualidade e Saúde Nota: 5 de 5 estrelas5/5Psicologia Positiva Nota: 5 de 5 estrelas5/5Verdades que não querem que você saiba Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPele negra, máscaras brancas Nota: 5 de 5 estrelas5/5O Ocultismo Prático e as Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria Nota: 5 de 5 estrelas5/5O corpo encantado das ruas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Seja homem: a masculinidade desmascarada Nota: 5 de 5 estrelas5/5Mulheres que escolhem demais Nota: 5 de 5 estrelas5/5A máfia dos mendigos: Como a caridade aumenta a miséria Nota: 2 de 5 estrelas2/5A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens Nota: 5 de 5 estrelas5/5Quero Ser Empreendedor, E Agora? Nota: 5 de 5 estrelas5/5Fenômenos psicossomáticos: o manejo da transferência Nota: 5 de 5 estrelas5/5O marxismo desmascarado: Da desilusão à destruição Nota: 3 de 5 estrelas3/5
Avaliações de Peixe-elétrico #05
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
Peixe-elétrico #05 - Ana Paula Pacheco
Sumário
Capa
No outro lado – Os editores
Hélio Oiticica em Manhattan – Silviano Santiago
Norte magnético – Garnette Cadogan
Meditação sobre o ofício de criar – Silviano Santiago
Réquiem e utopia – Flávio Ricardo Vassoler
destroços: um romance – Bruno Rodrigues
Iracema, uma transa amazônica – Ana Paula Pacheco
O tom de Nuno Ramos – Ricardo Lísias
O triunfo do leitor – Thiago Blumenthal
Operação Tobias – Sérgio Tavares
Nova York lado B – Radcliffe Roye
Quem faz
No outro lado
Quando publicamos o último número da Peixe-elétrico, a Câmara dos Deputados ainda não havia votado a aceitação do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Uma parte grande dos nossos representantes legislativos citou Deus enquanto diziam, como em procissão, sim, senhor presidente!
. Depois de Deus, a família foi a entidade mais lembrada. No dia seguinte, as garotas de programa que trabalham nas dependências do Congresso Nacional disseram que de jeito nenhum se sentiam enciumadas: Ficamos com o melhor deles
. No caso, só pode ser o dinheiro...
Aliás, a advogada e professora da USP (sic) Janaína Paschoal ainda não tinha protagonizado sua impressionante dancinha em frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. A coreografia bizarra foi imortalizada em vídeos milhares de vezes acessados. Aos berros, exige o impeachment e se contorce daqui para lá, em um ritual que lembra os exorcismos transmitidos pelos canais evangélicos. No caso, a professora doutora é a endemoninhada.
Michel Temer, o presidente interino, formou um ministério inteiramente entregue à assim chamada bancada BBB: boi, bala (de revólver) e Bíblia. O Poder Legislativo mais conservador da história do Brasil republicano conseguiu estender seus tentáculos para o Poder Executivo. Algumas pérolas são dignas de nota: a nova Secretaria da Mulher
é comandada por uma pessoa que se diz contra o direito de aborto mesmo em caso de estupro; o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, declarou ainda ontem que o uso de drogas deve ser reprimido pela polícia, retrocedendo algumas décadas na política de saúde pública que hoje é praticamente consensual no mundo todo quando o assunto é o vício, seja de que natureza for.
Vale lembrar que além de resumir os interesses defendidos por boa parte dos nossos deputados, as iniciais BBB também representam o reality show de maior audiência do país, o Big Brother Brasil. As coisas estão interligadas: a votação pela abertura do processo de impeachment foi um espetáculo vulgar e patético, dirigido a um público igualmente vulgar e patético..
Aqui, porém, há um problema: o Brasil seria então em sua maioria um país de gente grosseira, voltada ao cinismo e ao espetáculo? Evidentemente, não. O fato é que a política aliou-se ao espetáculo, adotando um discurso de moral religiosa – como bem sabemos, falsa – para garantir a manutenção dos velhos privilégios da classe economicamente dominante. Não estamos falando de gente simples, abandonada pelo Estado, que vai atrás das igrejas evangélicas porque não tem acesso a nenhum outro tipo de conforto ou amparo de qualquer natureza. É preciso estar muito abandonado para confiar naqueles pastores-deputados.
Não é o caso, porém, de professores da Universidade de São Paulo... O espanto da Peixe-elétrico está no fato de Janaína Paschoal fazer parte do corpo docente da principal universidade do país. Se não temos como julgar sua produção acadêmica, é possível afirmar que a união que ela propõe entre religião e política não é apenas bizarra: parece-nos próxima à barbárie. Sem falar na incrível deselegância daqueles gestos tresloucados.
Estamos no outro lado.
Os editores
Hélio Oiticica em Manhattan
Silviano Santiago
Alguém que conheça apenas o trabalho artístico de Hélio Oiticica não pode imaginar que ele tenha sido uma pessoa de passo cadenciado e comportamento retilíneo. Durante os anos da década de 1970 em que morou em Nova York, passava os dias trepidantes e laboriosos no quarto andar do número 81 da Segunda Avenida. O apartamento estava situado ao lado do Fillmore East, nome dado em 1968 ao antigo The Village Theater, por assimilação ao famoso Fillmore West, de São Francisco. O novo templo do rock’n’roll ficava também na Segunda Avenida, no East side, perto da rua 6. Foi ali que assisti no verão de 1971 ao espetáculo circense de Frank Zappa. A partir de 1968 até 1971, quando fechou as portas, The Doors, Janis Joplin, The Jefferson Airplane e tantas outras bandas se apresentaram no Fillmore. Em fins dos anos 1970, o teatro voltou a ser réplica, uma discoteca bem rastaquera. Réplica do milionário e glamoroso cabaré Studio 54. E Hélio estaria daí a pouco de volta ao Brasil.
Por causa do preço do aluguel, Hélio elegera o East Village. Este era o primo pobre do West Village (The Village, como era conhecido na época) e estava sendo descoberto e tomado de assalto pelos jovens alternativos que aos borbotões desaguavam na cidade. Escolhera um prédio baixo, fino e macambúzio, sem zelador, com um único apartamento por andar. A parte social do loft (não havia paredes de separação) estava arrumada como ninhos
e a parte dos fundos, a por assim dizer cozinha, era escritório com mesa de arquiteto e imensos arquivos metálicos.
Os ninhos eram semelhantes a beliches de navio, com acortinados de filó. Lá dentro, a sensação era a de aconchego materno, como, aliás, na maioria dos labirintos idealizados por Hélio na época, logo transformados em maquetes. Via-se o entorno como que esfumaçado.
Nunca vi o Hélio transpor as portas do Fillmore East. O espetáculo estava em casa. Hélio era um wired man. Tudo funcionava ao mesmo tempo. Sentado à moda ioga ou deitado, passava os dias nos ninhos. Televisão, câmara fotográfica, projetor de slides, rádio-gravador, fitas cassete, telefone. Eterno tilintar. Um contínuo desfilar de pessoas.
Havia algo no espaço criado no loft da Segunda Avenida que questionava a idéia clássica de ateliê de artista. Favorecia um tipo de ambiente ideal para o trabalho artístico coletivo, em que a celebridade Haroldo de Campos não excluía o irmão mais novo de Waly Salomão, então ganhando dinheiro como engraxate na rua 42. Irmanados pelo chão comum deviam interagir.
Como a Fábrica, que Andy Warhol montara nos anos 1960, o apartamento acrescentava ao ateliê clássico um salão de encontros, os ninhos, onde as mais ousadas experiências com palavras & outras armas letais eram feitas. O ambiente era humano, demasiadamente humano. Pessoas ao vivo e em cores. Tratava-se de um legítimo laboratório artístico contemporâneo nosso, já que o humano e a cultura estavam à prova graças aos princípios duma estética da aventura camarada e do risco.
O melhor desenredo do laboratório – para retomar o conto de Guimarães Rosa − está nos tapes e cartas enviados por Hélio aos amigos no estrangeiro. Certa feita, ele escreveu: Sempre gostei do que é proibido, da vida de malandragem, que representa a aventura, das pessoas que vivem de forma intensa e imediata, porque correm riscos. São tão inteligentes essas pessoas. Grande parte da minha vida passei visitando meus amigos na prisão
.
O West Village vira nascer e crescer as grandes gerações artísticas da primeira metade do século e tinha um jornal tão prestigioso quanto o New York Times − o Village Voice. Enquanto isso, ao lado, o East Village ia acolhendo os imigrantes desclassificados da Europa central, em particular os judeus,¹ e bem ao norte, ao lado do campus da Universidade de Columbia, o Harlem tinha virado o lar dos negros. Por baixo dos luxuosos prédios da parte central de Manhattan, as duas extremidades leste da ilha se comunicavam pelo metrô da avenida Lexington, os de número 5 e 6.
O East Village e o Harlem tinham pouco a ver com a milionária Manhattan e mais a ver com o Brooklyn e o Bronx. Um colega meu de universidade dizia que havia dois tipos de família judia. A que imigrava com o violino e a que imigrava sem ele. Os clãs judaicos sem violino e os restaurantes da Segunda Avenida, transplantados familiarmente da milenar Europa central, atestavam sobre o passado da região, pobre e sem futuro. Naquela época, aprendi a conhecer a história recente do East Village lendo os contos de Bernard Malamud, suas parábolas, que foram reunidas em The magic barrel (1954).
À noite, era infernal o movimento de hippies e groupies nas adjacências do Fillmore East. Por volta das dez horas, Hélio descia os três lances de escada do prédio (não havia elevador). Deixava o local para ir trabalhar num escritório de tradução de documentos comerciais, lá pela rua 53, quase esquina da Quinta Avenida. Ao raiar do dia, regressava ao apartamento do East Village. Como Holly Golightly, o personagem inesquecível de Truman Capote interpretado por Audrey Hepburn no cinema, Hélio admirava as belas vitrinas minimalistas da Tiffany’s, onde ambos tomavam o breakfast simbólico. (Andy Warhol tinha mostrado as suas primeiras pinturas na vitrina da loja Bonwit Teller, em 1961.)
De tal modo ficou envolvido com a joalheria que, em tempos de bonança, lá comprou alguns dos valiosos apetrechos de Cosmococa.
Lembro-me de uma caixinha de pílulas em prata legítima. Ela tinha a forma de dado e rolava pelo colchão do ninho até encontrar outras mãos. Podia-se escutar: Les jeux sont faits (nome da peça de Jean-Paul Sartre), ou Um lance de dados jamais abolirá o acaso (nome do poema de Mallarmé). Hélio gostava das flores retóricas da literatura, como gostava também de citar o verso de Arthur Rimbaud, "Nous avons foi au poison [Temos fé no veneno]. Tinha ainda comprado na Tiffany’s um canudinho, também em prata. Servia para
aspirar ao grande labirinto".
Auto-exilado em Nova York, tendo sido em 1968 saudado como gênio pelos críticos ingleses que foram ver seu trabalho na galeria Whitechapel, Hélio era pouco afeito aos jogos do establishment e da burocracia artística, por isso, ao terminar o estipêndio da bolsa Guggenheim que ganhara, a sobrevivência financeira lhe chegaria às mãos pelo árduo e disciplinado trabalho noturno de tradução. Manejava com conhecimento quatro línguas: português, inglês, francês e espanhol. Permutava essas línguas na tradução de cartas comerciais e de documentos legais.
Ao examinar o imenso e notável material escrito e colecionado por Hélio na Segunda Avenida, há que perguntar: por que uma pessoa de passo cadenciado e de comportamento retilíneo detestava a linearidade da escrita fonética? De onde lhe vinha esse horror à norma da língua nacional, tal como nos é transmitida pelo dicionário e a gramática?
O neto Hélio teria algo a ver com a duplicidade profissional do conhecido professor do tradicional Colégio Pedro II, José Oiticica (1882-1957), filólogo de renome mundial e também louvado pela sua aderência política ao movimento operário e anarquista? O avô Oiticica conciliara a gramática e a anarquia, a ordem formal e a liberdade indiscriminada.
Em 1972, caiu às mãos de Hélio o livro The Life of the Theatre, de Julian Beck, do Living Theatre, que durante a ditadura, juntamente com a esposa Judith Malina, tinha sido vizinho nosso nas ruelas e cárceres de Ouro Preto. Hélio não conseguiu esconder a emoção ao deparar com o nome e as palavras do avô em epígrafe de um dos capítulos: "The maximum happiness of one depends on the maximum happiness of all" [O máximo da alegria de um depende do máximo da alegria de todos].
Não há que separar o desejo pelo indivíduo de ordem formal na vida e a busca de liberdade radical na coletividade. O anarquismo é uma forma sutil e desapiedada de individualismo. O golpe militar de 1964 traçou uma linha política que separava e opunha o desejo individual e a busca coletiva. Hélio quis suturar a divisão (historicamente) passageira e artificial pelo mistério da criação artística. Pela posição específica que tinha conquistado dentro da sociedade brasileira e da arte, posição transgressora por definição, Hélio encarnava de maneira paradoxal e paroxística a unidade do desejo de ordem para o sujeito e da afirmação de liberdade para todos.
Consequência da força repressora militar, a desordem social reinante no país enrijecia o compromisso ético do artista com a ordem individual. Ele se ensimesmava em Nova York. Dentro dos tentáculos montados pela repressão, a liberdade indiscriminada – a anarquia – tornava-se exclusividade de alguns poucos eleitos. Quando o Rio de Janeiro e a Mangueira tinham se transformado em saudade, havia que aspirar um número cada vez maior de fileiras.
Em Manhattan, Hélio era gramatical no comportamento diário e anárquico na escrita artística. Queria instaurar no português nosso de todos os dias uma língua estrangeira, parenta próxima e muito mais fascinante do que a última Flor do Lácio. O leitor de Hélio deveria aproximar-se da escrita dele como de uma explosão, sem medo de sair chamuscado. Somos, seus leitores, voyeurs de sucessivos e incômodos núcleos de pura dinamite, que retiram a frase da leitura cadenciada e monótona que denuncia a origem latina da nossa escrita: sujeito, verbo, predicado.
Na folha do caderno de anotações, as palavras não seguiam umas às outras, não se deixavam acompanhar gramaticalmente umas pelas outras. Elas se interpenetravam como corpos amantes e amorosos num amasso, semelhantes a cavalos selvagens que trepam um no outro no campo branco da folha de papel. Semelhantes a metades de corpo humano contra metades de corpo