Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Peixe-elétrico #05: Silviano
Peixe-elétrico #05: Silviano
Peixe-elétrico #05: Silviano
E-book199 páginas2 horas

Peixe-elétrico #05: Silviano

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Em "Hélio Oiticica em Manhattan", SILVIANO SANTIAGO dialoga com o artista plástico a partir de suas memórias da década de 1970, quando frequentava o apartamento dele em Nova York. Crítica e memória se misturam num texto intenso e generoso.

Em um segundo ensaio, relendo seus próprios textos, SILVIANO SANTIAGO analisa o fenômeno da autoficção na literatura contemporânea.

Jamaicano radicado nos EUA, GARNETTE CADOGAN mostra um pouco de seu projeto de fenomenologia da caminhada. Ao andar por bairros constrastantes em Nova York, Cardogan discute a dinâmica das mudanças culturais em cenários urbanos, a partir do olhar de quem caminha e observa. Racismo, luta de classes, urbanismo e violência, são lidos de muito perto.

Em um texto refinado, ANA PAULA PACHECO analisa o filme "Iracema – uma transa amazônica", observando como a modernidade chega em espaços abandonados, trazendo consequências de toda ordem. A experimentação formal dos diretores cria uma ficção documental até hoje valiosa e significativa para a compreensão do nosso atraso.

FLAVIO RICARDO VASSOLER, com estilo forte e bastante erudição (sem falar na experiência de quem conhece o Império russo pessoalmente) analisa a obra de Svetlana Alexievich, a mais recente Prêmio Nobel de Literatura, notando tanto a originalidade de sua obra como a força de denúncia que ela traz no bojo de vozes desencontradas e perdidas em meio a um Império em franca decadência.

RICARDO LÍSIAS resenha o livro "Sermões" de Nuno Ramos e a partir dessa leitura procura elementos que organizem a obra literária e visual do artista paulistano.

Em um texto fragmentário e errante, BRUNO RODRIGUES retoma as questões que seu primeiro texto publicado na Peixe-elétrico (edição # 2) já apresentava: as exclusões que o cânone literário representa, o elitismo que persiste em muitas questões literárias e a militância urgente que nosso tempo parece recusar. Aqui, o ensaio assume um lugar corrosivo e de contestação.

"O triunfo do leitor", de THIAGO BLUMENTHAL, analisa o novo status que a figura do leitor parece estar assumindo em um tempo em que mais do que ler, é preciso mostrar esse ato, declará-lo ao mundo e, ainda mais, ilustrar-se publicamente com os efeitos dessa leitura.

Esta edição é toda ilustrada por flagrantes de Nova York clicados pelo militante e talentoso fotógrafo RUDDY ROYE.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento8 de jul. de 2016
ISBN9788584741199
Peixe-elétrico #05: Silviano

Relacionado a Peixe-elétrico #05

Títulos nesta série (11)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Ciências Sociais para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Peixe-elétrico #05

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Peixe-elétrico #05 - Ana Paula Pacheco

    Sumário

    Capa

    No outro lado – Os editores

    Hélio Oiticica em Manhattan – Silviano Santiago

    Norte magnético – Garnette Cadogan

    Meditação sobre o ofício de criar – Silviano Santiago

    Réquiem e utopia – Flávio Ricardo Vassoler

    destroços: um romance – Bruno Rodrigues

    Iracema, uma transa amazônica – Ana Paula Pacheco

    O tom de Nuno Ramos – Ricardo Lísias

    O triunfo do leitor – Thiago Blumenthal

    Operação Tobias – Sérgio Tavares

    Nova York lado B – Radcliffe Roye

    Quem faz

    No outro lado

    Quando publicamos o último número da Peixe-elétrico, a Câmara dos Deputados ainda não havia votado a aceitação do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Uma parte grande dos nossos representantes legislativos citou Deus enquanto diziam, como em procissão, sim, senhor presidente!. Depois de Deus, a família foi a entidade mais lembrada. No dia seguinte, as garotas de programa que trabalham nas dependências do Congresso Nacional disseram que de jeito nenhum se sentiam enciumadas: Ficamos com o melhor deles. No caso, só pode ser o dinheiro...

    Aliás, a advogada e professora da USP (sic) Janaína Paschoal ainda não tinha protagonizado sua impressionante dancinha em frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. A coreografia bizarra foi imortalizada em vídeos milhares de vezes acessados. Aos berros, exige o impeachment e se contorce daqui para lá, em um ritual que lembra os exorcismos transmitidos pelos canais evangélicos. No caso, a professora doutora é a endemoninhada.

    Michel Temer, o presidente interino, formou um ministério inteiramente entregue à assim chamada bancada BBB: boi, bala (de revólver) e Bíblia. O Poder Legislativo mais conservador da história do Brasil republicano conseguiu estender seus tentáculos para o Poder Executivo. Algumas pérolas são dignas de nota: a nova Secretaria da Mulher é comandada por uma pessoa que se diz contra o direito de aborto mesmo em caso de estupro; o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, declarou ainda ontem que o uso de drogas deve ser reprimido pela polícia, retrocedendo algumas décadas na política de saúde pública que hoje é praticamente consensual no mundo todo quando o assunto é o vício, seja de que natureza for.

    Vale lembrar que além de resumir os interesses defendidos por boa parte dos nossos deputados, as iniciais BBB também representam o reality show de maior audiência do país, o Big Brother Brasil. As coisas estão interligadas: a votação pela abertura do processo de impeachment foi um espetáculo vulgar e patético, dirigido a um público igualmente vulgar e patético..

    Aqui, porém, há um problema: o Brasil seria então em sua maioria um país de gente grosseira, voltada ao cinismo e ao espetáculo? Evidentemente, não. O fato é que a política aliou-se ao espetáculo, adotando um discurso de moral religiosa – como bem sabemos, falsa – para garantir a manutenção dos velhos privilégios da classe economicamente dominante. Não estamos falando de gente simples, abandonada pelo Estado, que vai atrás das igrejas evangélicas porque não tem acesso a nenhum outro tipo de conforto ou amparo de qualquer natureza. É preciso estar muito abandonado para confiar naqueles pastores-deputados.

    Não é o caso, porém, de professores da Universidade de São Paulo... O espanto da Peixe-elétrico está no fato de Janaína Paschoal fazer parte do corpo docente da principal universidade do país. Se não temos como julgar sua produção acadêmica, é possível afirmar que a união que ela propõe entre religião e política não é apenas bizarra: parece-nos próxima à barbárie. Sem falar na incrível deselegância daqueles gestos tresloucados.

    Estamos no outro lado.

    Os editores

    Hélio Oiticica em Manhattan

    Silviano Santiago

    Alguém que conheça apenas o trabalho artístico de Hélio Oiticica não pode imaginar que ele tenha sido uma pessoa de passo cadenciado e comportamento retilíneo. Durante os anos da década de 1970 em que morou em Nova York, passava os dias trepidantes e laboriosos no quarto andar do número 81 da Segunda Avenida. O apartamento estava situado ao lado do Fillmore East, nome dado em 1968 ao antigo The Village Theater, por assimilação ao famoso Fillmore West, de São Francisco. O novo templo do rock’n’roll ficava também na Segunda Avenida, no East side, perto da rua 6. Foi ali que assisti no verão de 1971 ao espetáculo circense de Frank Zappa. A partir de 1968 até 1971, quando fechou as portas, The Doors, Janis Joplin, The Jefferson Airplane e tantas outras bandas se apresentaram no Fillmore. Em fins dos anos 1970, o teatro voltou a ser réplica, uma discoteca bem rastaquera. Réplica do milionário e glamoroso cabaré Studio 54. E Hélio estaria daí a pouco de volta ao Brasil.

    Por causa do preço do aluguel, Hélio elegera o East Village. Este era o primo pobre do West Village (The Village, como era conhecido na época) e estava sendo descoberto e tomado de assalto pelos jovens alternativos que aos borbotões desaguavam na cidade. Escolhera um prédio baixo, fino e macambúzio, sem zelador, com um único apartamento por andar. A parte social do loft (não havia paredes de separação) estava arrumada como ninhos e a parte dos fundos, a por assim dizer cozinha, era escritório com mesa de arquiteto e imensos arquivos metálicos.

    Os ninhos eram semelhantes a beliches de navio, com acortinados de filó. Lá dentro, a sensação era a de aconchego materno, como, aliás, na maioria dos labirintos idealizados por Hélio na época, logo transformados em maquetes. Via-se o entorno como que esfumaçado.

    Nunca vi o Hélio transpor as portas do Fillmore East. O espetáculo estava em casa. Hélio era um wired man. Tudo funcionava ao mesmo tempo. Sentado à moda ioga ou deitado, passava os dias nos ninhos. Televisão, câmara fotográfica, projetor de slides, rádio-gravador, fitas cassete, telefone. Eterno tilintar. Um contínuo desfilar de pessoas.

    Havia algo no espaço criado no loft da Segunda Avenida que questionava a idéia clássica de ateliê de artista. Favorecia um tipo de ambiente ideal para o trabalho artístico coletivo, em que a celebridade Haroldo de Campos não excluía o irmão mais novo de Waly Salomão, então ganhando dinheiro como engraxate na rua 42. Irmanados pelo chão comum deviam interagir.

    Como a Fábrica, que Andy Warhol montara nos anos 1960, o apartamento acrescentava ao ateliê clássico um salão de encontros, os ninhos, onde as mais ousadas experiências com palavras & outras armas letais eram feitas. O ambiente era humano, demasiadamente humano. Pessoas ao vivo e em cores. Tratava-se de um legítimo laboratório artístico contemporâneo nosso, já que o humano e a cultura estavam à prova graças aos princípios duma estética da aventura camarada e do risco.

    O melhor desenredo do laboratório – para retomar o conto de Guimarães Rosa − está nos tapes e cartas enviados por Hélio aos amigos no estrangeiro. Certa feita, ele escreveu: Sempre gostei do que é proibido, da vida de malandragem, que representa a aventura, das pessoas que vivem de forma intensa e imediata, porque correm riscos. São tão inteligentes essas pessoas. Grande parte da minha vida passei visitando meus amigos na prisão.

    O West Village vira nascer e crescer as grandes gerações artísticas da primeira metade do século e tinha um jornal tão prestigioso quanto o New York Times − o Village Voice. Enquanto isso, ao lado, o East Village ia acolhendo os imigrantes desclassificados da Europa central, em particular os judeus,¹ e bem ao norte, ao lado do campus da Universidade de Columbia, o Harlem tinha virado o lar dos negros. Por baixo dos luxuosos prédios da parte central de Manhattan, as duas extremidades leste da ilha se comunicavam pelo metrô da avenida Lexington, os de número 5 e 6.

    O East Village e o Harlem tinham pouco a ver com a milionária Manhattan e mais a ver com o Brooklyn e o Bronx. Um colega meu de universidade dizia que havia dois tipos de família judia. A que imigrava com o violino e a que imigrava sem ele. Os clãs judaicos sem violino e os restaurantes da Segunda Avenida, transplantados familiarmente da milenar Europa central, atestavam sobre o passado da região, pobre e sem futuro. Naquela época, aprendi a conhecer a história recente do East Village lendo os contos de Bernard Malamud, suas parábolas, que foram reunidas em The magic barrel (1954).

    À noite, era infernal o movimento de hippies e groupies nas adjacências do Fillmore East. Por volta das dez horas, Hélio descia os três lances de escada do prédio (não havia elevador). Deixava o local para ir trabalhar num escritório de tradução de documentos comerciais, lá pela rua 53, quase esquina da Quinta Avenida. Ao raiar do dia, regressava ao apartamento do East Village. Como Holly Golightly, o personagem inesquecível de Truman Capote interpretado por Audrey Hepburn no cinema, Hélio admirava as belas vitrinas minimalistas da Tiffany’s, onde ambos tomavam o breakfast simbólico. (Andy Warhol tinha mostrado as suas primeiras pinturas na vitrina da loja Bonwit Teller, em 1961.)

    De tal modo ficou envolvido com a joalheria que, em tempos de bonança, lá comprou alguns dos valiosos apetrechos de Cosmococa.

    Lembro-me de uma caixinha de pílulas em prata legítima. Ela tinha a forma de dado e rolava pelo colchão do ninho até encontrar outras mãos. Podia-se escutar: Les jeux sont faits (nome da peça de Jean-Paul Sartre), ou Um lance de dados jamais abolirá o acaso (nome do poema de Mallarmé). Hélio gostava das flores retóricas da literatura, como gostava também de citar o verso de Arthur Rimbaud, "Nous avons foi au poison [Temos fé no veneno]. Tinha ainda comprado na Tiffany’s um canudinho, também em prata. Servia para aspirar ao grande labirinto".

    Auto-exilado em Nova York, tendo sido em 1968 saudado como gênio pelos críticos ingleses que foram ver seu trabalho na galeria Whitechapel, Hélio era pouco afeito aos jogos do establishment e da burocracia artística, por isso, ao terminar o estipêndio da bolsa Guggenheim que ganhara, a sobrevivência financeira lhe chegaria às mãos pelo árduo e disciplinado trabalho noturno de tradução. Manejava com conhecimento quatro línguas: português, inglês, francês e espanhol. Permutava essas línguas na tradução de cartas comerciais e de documentos legais.

    Ao examinar o imenso e notável material escrito e colecionado por Hélio na Segunda Avenida, há que perguntar: por que uma pessoa de passo cadenciado e de comportamento retilíneo detestava a linearidade da escrita fonética? De onde lhe vinha esse horror à norma da língua nacional, tal como nos é transmitida pelo dicionário e a gramática?

    O neto Hélio teria algo a ver com a duplicidade profissional do conhecido professor do tradicional Colégio Pedro II, José Oiticica (1882-1957), filólogo de renome mundial e também louvado pela sua aderência política ao movimento operário e anarquista? O avô Oiticica conciliara a gramática e a anarquia, a ordem formal e a liberdade indiscriminada.

    Em 1972, caiu às mãos de Hélio o livro The Life of the Theatre, de Julian Beck, do Living Theatre, que durante a ditadura, juntamente com a esposa Judith Malina, tinha sido vizinho nosso nas ruelas e cárceres de Ouro Preto. Hélio não conseguiu esconder a emoção ao deparar com o nome e as palavras do avô em epígrafe de um dos capítulos: "The maximum happiness of one depends on the maximum happiness of all" [O máximo da alegria de um depende do máximo da alegria de todos].

    Não há que separar o desejo pelo indivíduo de ordem formal na vida e a busca de liberdade radical na coletividade. O anarquismo é uma forma sutil e desapiedada de individualismo. O golpe militar de 1964 traçou uma linha política que separava e opunha o desejo individual e a busca coletiva. Hélio quis suturar a divisão (historicamente) passageira e artificial pelo mistério da criação artística. Pela posição específica que tinha conquistado dentro da sociedade brasileira e da arte, posição transgressora por definição, Hélio encarnava de maneira paradoxal e paroxística a unidade do desejo de ordem para o sujeito e da afirmação de liberdade para todos.

    Consequência da força repressora militar, a desordem social reinante no país enrijecia o compromisso ético do artista com a ordem individual. Ele se ensimesmava em Nova York. Dentro dos tentáculos montados pela repressão, a liberdade indiscriminada – a anarquia – tornava-se exclusividade de alguns poucos eleitos. Quando o Rio de Janeiro e a Mangueira tinham se transformado em saudade, havia que aspirar um número cada vez maior de fileiras.

    Em Manhattan, Hélio era gramatical no comportamento diário e anárquico na escrita artística. Queria instaurar no português nosso de todos os dias uma língua estrangeira, parenta próxima e muito mais fascinante do que a última Flor do Lácio. O leitor de Hélio deveria aproximar-se da escrita dele como de uma explosão, sem medo de sair chamuscado. Somos, seus leitores, voyeurs de sucessivos e incômodos núcleos de pura dinamite, que retiram a frase da leitura cadenciada e monótona que denuncia a origem latina da nossa escrita: sujeito, verbo, predicado.

    Na folha do caderno de anotações, as palavras não seguiam umas às outras, não se deixavam acompanhar gramaticalmente umas pelas outras. Elas se interpenetravam como corpos amantes e amorosos num amasso, semelhantes a cavalos selvagens que trepam um no outro no campo branco da folha de papel. Semelhantes a metades de corpo humano contra metades de corpo

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1