O contrato de repartição de benefícios no acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético: uma análise a partir da dignidade da pessoa humana
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O contrato de repartição de benefícios no acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético - Afrânio Azevedo Pereira
ambientais.
1. O CONTRATO E SUA CONCEPÇÃO CLÁSSICA
1.1 - BREVE CONTEXTO HISTÓRICO
O Direito Civil é um fenômeno cultural, cujas bases conceituais foram gradativamente construídas desde os primórdios da civilização ocidental até os dias hodiernos, transformando-se numa das mais importantes esferas do Direito, o que demonstra cabalmente a historicidade que lhe veste como característica. Além disso, existe certa uniformidade no seu desenvolvimento que no decorrer dos séculos, guardou harmonia com os eventos sociais e estabeleceu seu objeto de atuação, metodologia própria, desencadeando uma gama de princípios a sustentar o regramento a si vinculado, o que se chamou de continuidade¹.
A facilidade de perpetuação de um tronco conceitual comum no Direito Civil parece pautar-se no fato de que as suas principais instituições (personalidade, família, propriedade, contrato) são vigentes em qualquer época, muito embora exista a natural tendência de assimilar a evolução social que gradativamente poda e, ao mesmo tempo, molda concepções tradicionais acerca de seu objeto.
Sendo assim, tão importante quanto compreender a gênese do sistema do Direito Privado, é estabelecer de que forma a evolução dos acontecimentos sociais interferiram em sua estruturação conceitual e lhe impuseram feições contextualizadas aos parâmetros ideológicos gradativamente consolidados no seio social. Nesse desiderato, cumpre-nos analisar o direito moderno, considerando como verossímil o fato de que a figura contratual, da forma como o conhecemos, sacramentou-se nas bases liberalistas do Estado moderno².
Remetendo-nos, portanto, aos elementos históricos, vários são os fatores preponderantes para a construção deste novo Direito Civil. Em destaque, tem-se que a revolução comercial fez despontar uma nova classe social, a burguesia, desejosa de uma política que permitisse a estabilização de seus negócios e a conformação de suas propriedades a um patamar de garantias absolutas.
Nessa esteira, temos como consectários imediatos a formatação de um novo sistema econômico, o qual vai pautar-se na propriedade privada dos bens de consumo e produção, carregando consigo traços marcantes de liberdade, da iniciativa privada e da livre concorrência, fomentando, com isso, as atividades comerciais lucrativas³.
O Direito Privado preocupa-se em regular a atuação desses dois relevantes sujeitos de direito, quais sejam, o contratante e o proprietário, sempre com intuito de libertação das amarras até então impostas pelo regime feudal, constituindo um ambiente propício ao poder de contratar, circulação de riquezas, aquisição de bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais, traços marcantes do século XIX⁴.
Arruda Alvim, em leitura crítica sobre o tema, afirma que a disciplina deste século vai gravitar em duas realidades: a liberdade e a propriedade, os quais refletiram o domínio da sociedade pela burguesia que passa a assumir o domínio não somente dos corpos legislativos mas da própria ordem jurídica, de forma que pudesse construir um sistema de regras e princípios que perpetuasse a incolumidade de seus interesses.⁵
É o momento, portanto, da translatividade, face preponderante do momento histórico marcado pela atividade negocial que visava fundamentalmente à circulação de riquezas, surgindo a necessidade, portanto, de uma categoria jurídica idônea a garantir o ideal de segurança necessário para a consecução dos fins econômicos estabelecidos.
1.2 - O CONTRATO E OS IDEAIS LIBERALISTAS
No quadro então construído, o contrato surge como um instrumento de formalização jurídica das operações econômicas, as quais revelam-se como verdadeiro substrato material e imprescindível para a existência daquele. Passa-se, então a conceber a ideia finalística do contrato como instrumento viabilizador de fluxos econômicos entre indivíduos, não se admitindo como objeto contratual matéria não redutível à esfera econômica⁶ ⁷.
Aliás, a feição patrimonial é a mais marcante do Direito Privado, fazendo-se com que esse crie raízes indissociáveis com o ter e não com o ser. Dessa forma, o patrimônio e não a pessoa humana posiciona-se num plano privilegiado de garantias e proteção legais.
É que o Liberalismo, assimilando as noções filosóficas de Locke, difunde a propriedade como extensão dos direitos de personalidade do sujeito pois representa fruto da atividade humana, seja por meio da mera retirada de bens natureza, seja por meio de processo de transformação. A capacidade de labor, portanto, torna-se objeto de propriedade, a qual pode, por óbvio, ser também objeto de trânsito jurídico. Sendo assim, o indivíduo ostenta a propriedade de bens, de coisas, ou da própria força de trabalho. Logo, o acúmulo de riquezas, decorrente dessa atuação posiciona-se em lugar privilegiado de exercício da liberdade individual, situação inserta nos limites do estado natural, anterior à figura do próprio Estado e que, portanto, por este deve ser garantida⁸.
No entanto, se é verdadeiro que a influência do liberalismo econômico foi o ponto fundamental para o advento da teoria moderna do contrato, não se pode esquecer que como arcabouço ideológico para a essa nova proposta, experimentou-se nos séculos XVII e XVIII, a denominada revolução intelectual, pautadas notadamente no racionalismo e no individualismo. Afinal, as modificações marcantes experimentadas nesse momento histórico precisavam ser cientificamente justificadas.
A ideia do individualismo firma-se na elaboração filosófica de que o homem, em seu estado natural, possui uma vida imune a qualquer poder político superior. Com base no pensamento Iluminista, notadamente a feição filosófica concebida pelo antropocentrismo, o homem passa a ser concebido como centro do Universo⁹. Logo,
a autoridade pública não deve perverter o resultado do livre jogo das atividades econômicas individuais, mas deve reduzir-se sua intervenção no domínio econômico ao mínimo, concentrando-se em garantir a cada um a liberdade de trabalho e do comércio e o benefício da propriedade de seus bens.¹⁰
No plano individual, portanto, cada um dos cidadãos tem ampla liberdade para alcançar seus planos pessoais de conquistas e interesses sem a precípua preocupação acerca de valores supraindividuais que eventualmente estejam ligados direta ou indiretamente em suas relações negociais.
Nos séculos XVIII e XIX, acreditava-se o modelo ideal baseado na liberdade para o enriquecimento dos indivíduos incrementaria o desenvolvimento da Nação e o bem-estar da coletividade, o chamado laissez-faire¹¹. Em outras palavras, o bem-estar coletivo repousava no próprio bem-estar individual e não o contrário.
Essa conclusão deve-se muito ao pensamento de Adam Smith que traduzida o pensamento dos fisiocratas de que a liberdade plena dos particulares representava um sistema ideal para a consecução de seus interesses. Uma vez alcançado esse patamar, os interesses sociais seriam indiretamente alcançados, não cabendo ao Estado, portanto, interferir no rumo natural das coisas, mas sim, garantindo o livre exercício dos particulares sobre as suas relações negociais, pois assim, estava consequentemente protegendo também o bem-estar comum¹².
Sendo assim, a noção do individualismo oxigena o ideal de liberdade que passa a viger na sociedade moderna ostentando uma posição dogmática na doutrina jurídica.
Além disso, um outro grande indicativo, poderoso na construção ideológica do Direito Privado despontava: a igualdade. Nas palavras de Judith Martins-Costa:
A Sociedade Civil era formada justamente por indivíduos, e a categoria individual se faz, formalmente, universal: os seres humanos eram ‘todos iguais’, não mais se definiam juridicamente por estamentos, corporações profissionais ou famílias. A noção de pessoa como ‘sujeitos de direitos’ passara a substituir a idéia de estados. Essa substituição não se fez neutralmente: a palavra ‘Estado’ torna-se singular e maiúscula, e o termo ‘pessoa’ passa a ser identificado com a expressão ‘sujeito de direitos’, um sujeito que é um simulacro, o sempre-igual termo da relação jurídica, abstraído, descarnado das concretas pessoas."¹³,¹⁴
Com a dicotomia então constituída (liberdade-individualismo), o sistema jurídico passa a conceber o primado de garantias e direitos individuais, oponíveis ao próprio Estado e a toda e qualquer expressão de mitigação desse plano de autonomia negocial e proteção à propriedade, legalmente concedidas aos particulares, uma vez consideradas a distinção entre as duas realidades (social e estatal) cada uma delas regida por fontes normativas diferentes.
Isto posto, o sistema hierarquizado entre o Código Civil e a Constituição era meramente formal, e não suportava maior rigor quanto à repercussão dos direitos fundamentais, eminentemente constitucionais, às relações privadas, as quais orientavam-se por um núcleo principiológico próprio. Na visão de Vieira Andrade, os direitos fundamentais, em visão unidimensional, direcionavam-se contra o Estado com o intuito de assegurar a liberdade individual.¹⁵
Em verdade, o grande desafio desse modelo político que se erige é coibir as ingerências do Estado, até então agente opressor, responsável pela violação dos direitos e garantias individuais. Logo, qualquer construção de uma doutrina acerca de direitos fundamentais circunscrevia-se na relação indivíduo-Estado, não havendo, pelo menos nesse primeiro momento, a necessidade de se estender esse regime jurídico entre particulares¹⁶.
Erigindo-se, portanto, o primado da igualdade, configurado pela conceituação meramente formal adotada pelo sistema positivista de normas, concebeu-se também formalmente um conceito de justiça contratual.
O contrato, portanto, como instrumento conformador desse ideal, e sendo fruto de manifestação de livre vontade, carregava consigo uma justiça formal, onde se afirmava quem diz contratual, diz justo
, num plano de valores absolutamente alheio às diferenças substanciais entre os negociantes.
O Direito, que, como ciência, é exclusivo fruto de um exercício racional, acolhe o homem como ser abstrato, longe de uma perspectiva social, inviolável em sua liberdade, compreendido num plano formal de igualdade, credencia o Poder Soberano a enrijecer a força obrigatória do contrato como garantia de justiça, pois agindo dessa forma, não impõe a sua vontade, mas a dos próprios indivíduos.¹⁷
A conformação da teoria contratual à opção política de liberdade e pressuposição de igualdade entre os particulares alinhava-se à interpretação do pensamento kantiano que afirmava que [...] quando alguém decide alguma coisa em relação ao outro, é possível que se faça a este alguma injustiça, mas nenhuma injustiça é possível naquilo que se decide para si próprio
¹⁸.
A noção de equilíbrio das relações negociais é pressuposta diante da compreensão de que todos são iguais perante a lei, não se admitindo relevar critérios concretos de diferenciação, sob pena de subverter os preceitos científicos até então vigentes¹⁹.
O contrato representa, portanto, uma inequívoca construção figurativa da igualdade formal entre os sujeitos jurídicos.
Dessa forma, o contratualismo é ideologia apaziguadora, aplicável no ambiente natural de liberdade que os indivíduos vivem. E se são naturalmente livres, e iguais entre si, utilizam-se da figura contratual como instrumento a viabilizar a coexistência dessas liberdades, as quais se fracionam mediante a dinâmica dos fatos a que voluntariamente aderem.
1.3 - A REPERCUSSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO ABSENTEÍSTA
Cresce-se a necessidade de o Estado respeitar o plano ideal das relações interpessoais fundado na autonomia das partes, notadamente por meio de uma postura cada vez mais abstencionista, revelando-se um verdadeiro lema liberal a imposição de limites negativos para que o Estado interfira cada vez menos nas relações privadas²⁰, com a instituição