As faces contemporâneas da cultura popular
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As faces contemporâneas da cultura popular - Edson Silva de Farias
nacional.
CAPÍTULO 1
Humano demasiado Humano: Entretenimento, Economia Simbólica e Forma Cultural na Configuração Contemporânea do Popular
¹
Edson Farias
A ideia do humano demasiado humano
, sabemos, remete ao célebre livro homônimo de Nietzsche. Publicada em 1878, a obra constitui espécie de divisor de águas no trajeto do filósofo: desde ali, é deixado para trás o romantismo e, com ele, o que o autor entende por amarras do idealismo. Na contramão de O Nascimento da Tragédia, de 1872, como que desiludido com a promessa da obra total de Wagner, mas igualmente com o pessimismo de Schopenhauer, Nietzsche se volta para as ciências empíricas, se mostrando interessado na serenidade do tratamento analítico da realidade concebida em sua qualidade finita, secular.
No longo aforismo 16, Nietzsche (2000, p.6-27) ressalta a importância dos efeitos gerados pela história da gênese do pensamento. A seu ver, os méritos desse procedimento científico estariam, justamente, em desvelar o quanto a historicidade do que se denomina mundo
é devedora do somatório de equívocos gerados no desenrolar da evolução total dos seres orgânicos
. Erros e fantasias, os quais, por sua vez, fundaram representações ancestrais cristalizadas como hábitos de sentimentos, igualmente errados, no entremeado temporal de gerações, em que se ergueu o mundo de ideações ilusórias. E mesmo que a própria ciência não esteja a salvo desses hábitos, o autor louva-lhe, pois:
(...) Desse mundo da representação somente uma pequena medida a ciência rigorosa pode nos libertar – algo que também não seria desejável –, desde que é incapaz de romper de modo essencial o domínio de hábitos ancestrais de sentimentos, mas pode, de maneira bastante lenta e gradual, iluminar a história da gênese desse mundo como representação – e, ao menos por instantes, nos elevar acima de todo o evento. Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma gargalhada homérica: que ela parecia ser tanto, até mesmo tudo, e na realidade está vazia, vazia de significado. (Nietzsche, 2000, p.27)
Sabemos estarem os dardos do autor dirigidos em especial para a metafísica, que, para ele, diz respeito à ciência que trata de erros fundamentais como se fossem verdades fundamentais
(Nietzsche, 2000, p.29). Sem dúvida, a trama filosófica de Nietzsche é desenrolada ao considerar espúria a separação entre intelecto e interesse, tornando inaceitável qualquer postulação de um desígnio obrigatoriamente uniforme em sua validação de juízo das coisas. Logo, tão fictícia seria também a separação entre verdade e mentira, e o propósito de perguntar pelo valor dos valores
compartilha do apelo nietzschiano a uma superação, ou melhor, à transvaloração dos valores. Esta é caudatária de uma concepção trágica da existência e da história, pois, sendo a vida puro fluxo, vir a ser das potências em sua vontade de comando, nenhum desejo de certeza poderia se colocar na contramão do leito voluptuoso dos acontecimentos, impondo um conjunto de convicções absolutas (Moura, 2005, p.237-261). Tratar-se-ia de um conhecimento em perspectiva, voltado a adequar o saber à permanente mutabilidade do mundo (Marques, 2003, p.88-89); em lugar da certeza, a pugna entre as infinitas e múltiplas interpretações, o incessante movimento da polêmica das opiniões. Notamos que o autor descarta o suposto de um pensamento imutável e, com isso, retoma dos sofistas gregos² a premissa de que a retórica é a essência da linguagem e tem por caráter a compreensão do conhecer não como o se instruir sobre as coisas, priorizando a sua reprodução na consciência, mas a maneira como nos relacionamos com elas pelo fato de a linguagem apenas tomar aspectos na atitude lúdica de jogar a apresentação do mundo nas interpretações (Nietzsche, 1999). Interpretações que são tanto alusões às coisas e eventos, quanto ilusões, desfazendo a oposição entre ser e aparecer, opinião (doxa) e verdade (aletheia). Apenas mediante a metafísica da linguagem, conclui o filósofo, algumas interpretações podem exigir o status de imutáveis, o que ele atribui ao conceito, por ser a palavra que se pretende acima da interação agonística das potências (Nietzsche, 1987, p.126). Assim, para o olhar perspectivista de Nietzsche, o mais importante é perguntar: Quem fala?
, para daí julgar o valor da verdade.
Tal como observou Mannheim (1974, p.40-44), o espólio hegeliano fora retomado na pesquisa das funções mentais no contexto de ação e, para isso, foi marcante a maneira como a ênfase de Nietzsche na busca das motivações das condutas deslocou o apelo da evolução imanente das ideias, ao desconfiar da continuidade conformadora de uma história universal assentada no que seria a necessidade impoluta, ela mesma trans-histórica. Já imerso no vórtice laico-secular, o recurso à consciência do tempo subverte de uma só vez todo o projeto de uma metafísica em que o fugidio se reconcilia com o estável, mas também dilacera a aposta historicista em uma singularidade autossuficiente. Com o empreendimento filosófico filológico da genealogia da moral³, a expectativa de Nietzsche é combater, ao mesmo tempo, os postulados da objetividade e da subjetividade, já que ambos seriam centrais ao núcleo duro da narrativa moderna e da razão discursiva. Proclama, assim, o advento de Dionísio descerrando a consciência do tempo, despido do messianismo romântico e prenhe de êxtase nas provações das metamorfoses incessantes. Esse mito desagregaria, a seu ver, a danação iluminista que teria escondido a face mítica da história em favor da individuação, ou seja, a própria razão autônoma e que requer sempre mais mediações, ao exigir crescentemente mais mecanismos de uma racionalidade visando a fins. A aposta nietzschiana é em um total descentramento, a ponto de ver o prevalecer apenas da vontade criadora, que, despojada dos escrúpulos de uma verdade etérea, dispõe-se ao desfrute proporcionado pelo arbítrio das próprias criações. Deixa-se flutuar na superficialidade da aparência, na essencialidade do acontecimento. Logo, toda pretensão de validade está calcada nos fluxos e refluxos de processos anônimos de dominação
. Ao refutar a narrativa teleológica do finalismo, a teoria da história em Nietzsche evoca a errância secular de uma mundanidade desprovida de direção e significados intrínsecos:
De modo que o mundo, tal qual o conhecemos, não é essa figura simples onde todos os acontecimentos se apagariam para se mostrarem, pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados; ele nos parece hoje maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido
; é que uma multidão de erros e fantasmas
lhe deu movimentos e ainda o prova em segredos. Cremos que nosso presente se apóia em interações profundas, necessidades estáveis; exigimos dos historiadores que nos convençam disto. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos. (Foucault, 1979, p.28-29)
Talvez, não seja de todo absurdo sacar do posicionamento de Nietzsche um humanismo. Por certo, um humanismo avesso àquele das tendências ilustradas, mas não menos devotado à afirmação libertária da autossuficiência humana, porém sem compromisso com qualquer sentido finalístico que favoreça abstrações, intelectualizações, enfim, arquiteturas metafísicas, cujos efeitos seriam o afastamento em relação ao movimento mesmo da vida, mas obediente ao ciclo trágico de ascensão e soçobro.
Olhando do retrovisor da história, à luz do intervalo de bem mais de cem anos que nos separa da edição de Humano, Demasiado Humano, perguntamos se algo da proposta do seu autor vicejou. É evidente que não nos referimos à postura de seguidores do filósofo tampouco supomos a canalização do perspectivismo nietzschiano para se fazer alicerce doutrinário de um projeto de intervenção intencionada na realidade histórica.
O ponto de partida do nosso objetivo neste capítulo é especular em que medida, no cerne de uma constelação sócio-histórica de afinidades eletivas, o mundo do entretenimento acolhe seletivamente elementos valorativos que se apresentam também no humanismo perspectivista de Nietzsche. Isto, no instante em que aquele mundo está calcado nos princípios que informam as condutas, em sua órbita institucional, no acento posto na felicidade, mas esta, por sua vez, se ancora nos prazeres corpóreos obtidos tão somente no traço fugidio e evasivo da finitude orgânica e terrena. Para retomar uma imagem nietzschiana, propomos, realiza-se o mundo do entretenimento no rastro continuado de ritos seculares em que são erguidos altares para celebrar a vida pela vida, abortando qualquer recurso ao além da finitude. A aspiração da transcendência, portanto, é ela mesma animada pela duração exígua da existência, cônscia do seu fenecer inexorável; o transcender é intrínseco ao declínio, afinal, o que se ritualiza e exalta é o tempo fugidio que passa: a eternidade compreende o tempo circular da diversão, o passatempo como finalidade encerrada em si mesma.
Tem-se, desse modo, o cruzamento de uma antropologia filosófica – a teoria geral do homem movido hedonisticamente pelo efêmero – com a narrativa cosmológica da antropoceia, na qual os destinos humanos estão subordinados às vicissitudes das vontades e efeitos gerados nas próprias escolhas humanas. Logo, deuses e anônimos compartilham da mesma natureza mortal e há um canal aberto, democrático (?), para o trânsito entre o sagrado e o profano, já que ambos compartilham o mesmo território da finitude.
A literatura já atentou para a aproximação entre o humanismo perspectivista de Nietzsche e o entretenimento. Exatamente reconhecendo a inspiração nietzschiana em uma teoria da mídia em Walter Benjamin, Norbert Bools (1992, p.96) sublinha o ideário contido na escrita de O Nascimento da Tragédia, a saber, resgatar o sentido genuinamente grego do espectador estético, que teria sido abandonado nos dois mil anos de predomínio da cultura burguesa no seio da qual se bifurcou a recepção na polarização dicotômica e antitética entre o curtidor
e o crítico-intelectual
⁴. Para o filósofo, a ressurreição do espectador antigo devolveria à arte um sentido prático, e não de mera fruição. De acordo com Bools, a inspiração em Nietzsche se manifesta em Benjamin quando, ao conceituar a cinematografia, ele opta pelo recurso à ideia de teste
para qualificar a atitude das massas urbanas que tomavam os cinemas realizando uma síntese entre o curtidor
e o crítico
, expondo-se ao bombardeio das imagens e, simultaneamente, testando os efeitos que estas lhe provocavam sobre os sentidos. Enfim, em lugar da submersão em uma subjetividade profunda ou, na contramão, de uma leviandade solipsista, ter-se-ia a convergência tensa entre as técnicas que penetram a realidade na qualidade de aparências e as que exultam a geração de outras aparências expressivas nas audiências. Vemos, assim, o encontro entre os desdobramentos da industrialização no plano da produção simbólica e a emergência de novas modalidades de subjetivação e objetivação, base à configuração de outra cultura – a cultura popular de massa.
A alteração da qual Benjamin se faz atento observador refere-se, tanto ao remanejamento posto na discussão da cultura de um ponto de vista hermenêutico, quanto à aguda redefinição dos modos de simbolização internos às culturas artísticas no seio da sociedade urbano-industrial. Ambas as faces já estavam prefiguradas entre os românticos que estiveram ocupados com o tema da mercantilização da cultura na medida em que estavam atravessados por um profundo sentimento de desconforto e desconfiança, mesmo de revolta, diante das transformações impostas à vida humana, com o advento da revolução industrial e também com a evocação iluminista da razão objetiva. Ainda, segundo o próprio Benjamin, na contrapartida, esses círculos artístico-intelectuais estiveram na defesa da arte e cultura como nichos desinteressados em que o espírito estaria para além dos engates utilitaristas. Espécie de aristocracia do gosto, muitas entre as vertentes românticas e seus herdeiros defenderam a cultura como domínio do ócio, espaço e tempo vitais e extraordinários, habitados pelos tecelões dos significados que dariam sentido à vida cotidiana. Logo, indo na contramão do primado romântico, no instante em que questiona o estatuto da reprodutibilidade simbólica na sociedade industrial, Benjamin (1975, p.-0-81) acena com a inserção no debate da estética da problematização sociológica acerca do nexo entre forma artística e níveis de integração e coordenação das relações sociais. Ao desenvolver o conceito de aura
, central à compreensão do processo de dessacralização técnica da arte, no ensaio A Obra de Arte no Tempo da sua Reprodutibilidade Técnica, o autor volta ao problema da concepção de arte simbólica, no instante em que concebe a aura
da obra de arte como o que confere distanciamento à arte e assegura o seu valor cúltico. Ele lembra que, se desde sempre conviveu a arte com sua reprodução, o que inaugura o século XX é a autonomização da própria técnica de reprodução, a ponto de ser reconhecida também como arte. O caso exemplar da cinematografia implicaria na dissolução da aura
– nessa arte –, por concatenar o anonimato extático-corpóreo das massas metropolitanas com o maquinismo na contrapartida do avanço das relações capitalistas de produção e reprodução da vida material, engendrando, agora também, o plano espiritual (Rochlitz, 2003, p.69-303). Com o conceito valor-de-exposição
, o filósofo descortina a sincronia estabelecida entre a estilização das expressões no cotidiano e, logo, o deslocamento da tônica estética para o universo do comum metropolitano. Por isso, ao tecer os textos que iriam compor o célebre e inacabado trabalho Passagens (Benjamin, 2006), o autor extrai da poética de Baudelaire o tema do flenêur ante as multidões urbanas parisienses inebriadas pelo entorpecente dos signos do mercado capitalista. Nas trilhas de Simmel, Benjamin atenta ao inusitado histórico-espacial próprio à metrópole moderna: ali, a mercadoria se reconhece como o sujeito possível das novas condições (Bolle, 2000, p.373-391). Pela síntese do autor, na teoria do fetiche da mercadoria, se intersecionam objetivo e subjetivo, alma e matéria, capital e experiência (Benjamin, 1989, p.52-53).
Ao se considerar a última proposição, é possível reconhecer proximidade entre certo diagnóstico weberiano e o olhar mais tarde dirigido por Walter Benjamin sobre a experiência do moderno, no que toca ao ajuste entre estética e economia, considerando, para isso, a decisiva mediação exercida pela técnica, ao se emancipar na experiência secular da modernidade.
Quando escreve sobre as afinidades eletivas estabelecidas entre A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber descortina o ideário em torno do desenvolvimento socioeconômico forjado na interface entre um quadro normativo e a convicção a respeito da crença no cálculo, ou seja, a reminiscência contínua de um mesmo suposto núcleo de comando das condutas submetidas à assertiva instrumental e progressista. Mais tarde, no início da década de 1910, Weber dedicou-se ao tema da racionalização do erótico por intervenção dos meios oriundos da esfera cultural. Desde aquele momento, o autor lida com a percepção do encadeamento entre erotismo, estética e economia capitalista, adicionando a questão da felicidade como um dos critérios, ao lado do bem-estar e da liberdade, para avaliar o estágio de desenvolvimento societal. Fosse por conta das alterações promovidas pelo engate da publicidade mercantil com o jornalismo, ou pelas atividades da sistemática artística empenhadas em libertar as formas das injunções dos conteúdos, a esfera cultural, àquela altura, tomava cada vez mais de assalto o dia a dia das grandes cidades do Ocidente e imprimia suas marcas no compasso da ampliação da rede de bens artísticos, intelectuais e de informação. No mesmo compasso da especialização promovida nessa divisão do trabalho, a cultura abarcava sempre mais o plano do ócio mediante esse lazer profissionalizado diversional. Por um lado, Weber (1974, p.390-400) se ocupou da autonomia das esferas estética e erótica, perscrutando as possibilidades, tanto de um aprendizado resultante da fruição da obra de arte pelo sujeito, tendo por efeito um refinamento das emoções, quanto do equilíbrio entre comunicabilidade e consciência dos afetos com a preservação das especificidades instintivas. Por outro, o autor apontou as deformações que poderiam advir do apelo proposital ao erótico realizado pelos esquemas publicitários. Em meio a esse tenso bifrontismo, para além do diagnóstico do desencantamento do mundo e intrínseco aos processos de autonomização das esferas da experiência, Weber assinalou o quanto o vínculo entre a esfera estética e a erótica poderia alicerçar outros encantamentos, já que proporcionaria "uma salvação das rotinas cotidianas, e especialmente das crescentes pressões do racionalismo teórico e prático" (Weber, 1974, p.391).
Já na proposta benjaminiana, sabemos, ocorre a aproximação entre modernidade e mito, ou, de acordo com as suas palavras, um sono
(traunmschlaf): "O capitalismo foi um fenômeno da natureza que submeteu a Europa a um Traumschlaf, a um sono povoado de sonhos e provocou a reativação de forças míticas (Benjamin, 2006, p.44). Sono este de uma comunidade impossibilitada de conhecer a história e, assim, ela
(...) recebe o fluxo da história como sempre igual e como sempre novo. A sensação do novo e do moderno como eterno retorno do idêntico constitui as formas da história do sonho. Somos tentados a concluir que Walter Benjamin estendeu com originalidade a prerrogativa weberiana, na medida em que o apelo à razão não tem o significado de extermínio do sonho; guarda a ambiguidade de portar, na reiteração do mesmo, a liberdade como alteridade (Benjamin, 2006, p.114). Com isso, sustenta que o
sonho" não é algo superficial ao coletivo que o gera; no caso da modernidade, os sonhos dizem respeito às sensações e aos sentimentos desse arranjo sociocultural crédulo na magia da técnica. Se, de acordo com Freud (2006, p.75-94), por se tratar o sonho de uma narrativa onírica, a narrativa compõe, porque conforma, a infraestrutura técnico-industrial e, por similar razão, a técnica seria a gramática ideológica e civilizatória da modernidade. Desse modo, pode-se concluir que, em lugar de apenas constituir um fator de desencantamento, o arranjo societário urbano-industrial supõe, tanto um sistema simbólico, quanto uma produção de sentido específica, a qual revela, em sua natureza, a um só tempo, mítica e especializada, no tocante à forma cultural, fraturas e aspirações de sutura das tantas cisões. Esse sistema simbólico participa da imediaticidade das realizações diárias de camadas e grupos sociais, mas o faz na medida em que se afirma em âmbito particular habilitado à significação de suas práticas e das de outros domínios. Desse modo, faz-se reconhecido pela autorreprodução institucional da sua condição de esfera autonomizada frente a outras instâncias que são semelhantes sistêmicos.
Por volta dos anos de 1960, Edgar Morin sublinhava justamente a novidade representada pela cultura popular de massa; para o autor, sua narrativa e seus símbolos evocariam uma mitologia onde o prosaico e o cotidiano estariam elevados ao status de uma epopeia, fazendo convergir técnica e moralidades, constituindo, assim, um novo panteon de ídolos e heróis saídos do cinema e do esporte. À luz da inspiração seminal de Morin, nossa proposta é interrogar até onde se pode entrever uma reorientação da concepção de popular, considerando os vínculos históricos e lógico-simbólicos entre entretenimento, forma cultural e humanismo perspectivista. A argumentação proposta se calca no desenvolvimento das duas seguintes proposições: de um lado, mais que um plano de práticas onde se conciliam evasão lúdica e comércio de diversão, o entretenimento envolve determinada apreensão da sucessão dos eventos. O traço desta última estaria em uma temporalização laica da existência, cuja marca está no entendimento da mundanidade da transcendência, isto é, a última é admitida como imanente à própria finitude empírica da vida; de outro, porém, supõe-se que o entretenimento se inscreve no regime da economia simbólica, a qual persevera uma cosmologia, na qual matéria e espírito consistem em faces de um mesmo continuum, logo, não encerrando substâncias estanques entre si, mas facetas da extensão complexa da dimensão humana da vida e do cosmo. O interesse analítico e interpretativo desta exposição tem por alvo, portanto, a natureza da semântica da ideia de popular mediante a qual sistemas de práticas e símbolos são classificados e qualificados intrínsecos a este entrecruzamento entre entretenimento e economia simbólica.
Evidencia-se a proposta de natureza teórica deste ensaio, afinal está em pauta assentar algumas formulações conceituais a fim de ordenar a realidade sócio-histórica enfocada. Assim, de um lado, interessa-nos a problemática acerca da antropologia filosófica referente à tendência de subjetivação e objetivação relativa a esse dueto composto de entretenimento e economia simbólica. Ao mesmo tempo, temos por objetivo discutir o aspecto propriamente sociológico do tipo sistêmico e a racionalidade que especifica esse domínio da experiência, para o qual se definem particulares e mutuamente implicadas economia psíquica e estrutura social, conformando um padrão específico de conduta, definido pela tensa aliança entre o incremento na autorregulação e o imperativo da exposição pública das emoções.
Desse modo, a argumentação está distribuída do seguinte modo: respaldados em Edgar Morin, iremos considerar o entretenimento no escopo de uma dinâmica sócio-histórica e civilizatória própria à modernidade e, como nesta, definiremos o ethos hedonista-diversional como componente do entretenimento como mundo e sistema. Considerando a mediação do entretenimento, no encaminhamento posterior da exposição nos ateremos ao deslocamento semântico que manifesta o estreitamento da vinculação do popular com o regime de verdade da economia simbólica. Cabe assinalar nosso interesse em comentar a tessitura dessa nova semântica à luz do nexo entre forma cultural e nível de integração das relações sociais, no escopo da constelação histórica na qual a globalidade internaliza uma condição à experiência humana. A título de conclusão, tomamos por alvo o debate sobre as culturas populares, mas do ponto de vista da integração ao ambiente socioestrutural, onde contracenam mercadoria e símbolo, intimidade e mercado, ecologias sociotécnicas e afetividade na consumação de formas culturais que assinalam formas e modos de vida sintéticos. Para isto, voltaremos ao tema da cultura popular no Brasil, mas orientados pela reflexão sobre as implicações possíveis da interação entre entretenimento e economia simbólica como outro protocolo de pesquisas socioantropológicas.
1. O ethos hedonista-diversional nos contornos do mundo-sistema do entretenimento
Ideias como a de globalização atualizam uma velha e crucial questão que continuamente aturde o pensamento social: as dinâmicas sócio-históricas de interpenetração civilizatória. A questão vem no embalo do longo círculo, na história, da caminhada do Ocidente na direção do restante do mundo, a princípio, resumido homogeneamente pela denominação Oriente
. Um círculo na história, refazendo, ou inventando, o mapa geopolítico e simbólico do planeta no aumento da capacidade de envolver regiões tão diferentes a partir de uma dominante matriz cultural europeia ocidental (Latouche, 1989). Desde aí, os movimentos de encolhimento
do mundo correspondem a episódios e dispositivos que conectam particularidades bioecológicas e arranjos culturais em um encadeamento planetário, desencaixando
lugares e esvaziando
tempos, participando da elaboração do eixo de coordenadas espaço-temporais, constituído e constitutivo de relações humanas alongadas, estendidas e tão aproximadas num distanciamento sem precedentes (Giddens, 1992, p.69). Os relatos acerca da modernidade estão inseridos nessa dinâmica de longa duração à maneira de um estuário, no qual desembocam cursos vários, revoltos e mesmo conflitantes entre