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Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador – BA
Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador – BA
Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador – BA
E-book421 páginas5 horas

Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador – BA

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Sobre este e-book

Violência é um tema que sempre retorna aos debates públicos e se torna ainda mais complexo com o desenvolvimento das sociedades. As suas várias faces – racismo, crime violento e feminicídio - asfixiam ainda mais os grupos subalternizados que não dispõem de recursos suficientes para romperem com situações que os violentam. Em Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador-BA, a cientista social Fabiana Rocha evidencia trajetórias de mulheres negras no curso de formação Mulheres da Paz (PRONASCI / MJ) objetivando a retirada dos jovens do mundo da criminalidade violenta. A abordagem evidencia as perspectivas desses grupos excluídos como dotados de posicionamento político e considera racismo, violência institucional e violência de gênero como constitutivas da ordem social. Os três capítulos estão estruturados em três pilares temáticos: política de segurança e a questão racial e de gênero; os saberes situados e processos para a execução do projeto federal na Bahia; e violência e asfixia social de mulheres negras urbanas de Salvador.
A autora analisa a concepção de empoderamento adotada pelo Projeto Mulheres da Paz, bem como, a valorização da atuação dessas mulheres sob o viés voluntarista, problematizando os recursos que lhes foram apresentados. A narrativa é desenvolvida no contexto de conflitos desencadeados pelo tráfico de drogas sob um enquadramento social e político de administração pública progressista em conflito com posturas conservadoras na estrutura de gestão. Mulheres da Paz: Violência, política de segurança e asfixia social em Salvador-BA é produto de uma pesquisa acadêmica, através da qual Fabiana Rocha propõe mudanças na formatação das políticas que são direcionadas às mulheres negras e pobres, direcionando a leitura para especialistas, ativistas, gestão pública, movimentos sociais e a quem mais se interesse pela temática.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de jan. de 2021
ISBN9786558776017
Mulheres da Paz: violência, política de segurança e asfixia social em Salvador – BA

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    Mulheres da Paz - Fabiana Rocha

    PARTE I. POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA E CONSTITUIÇÃO DE UMA ORDEM SOCIAL

    1. VIOLÊNCIA, ESTEREÓTIPO E FRAGMENTAÇÃO

    A violência se insere numa complexa negociação em torno dos significados e das ações estabelecidos no mundo, em que novas formas de interações sociais possibilitam reações conflituosas entre os atores sociais. No Brasil, o cenário criminoso contemporâneo expressado pela crise e quebra de valores comuns é bastante complexo e tem uma base histórica no período do domínio colonial português, que institucionalizou e legitimou a violência com fins de ordenação social (MONTES, 2000).

    A manifestação da violência está presente em todos os tempos e povos. Entretanto, ainda hoje, surgem afirmações a respeito de um aumento da violência, que desconsidera o passado histórico demarcado pelo uso desta – como pudemos observar com relação à escravidão e suas implicações no país, bem como, mais recentemente, com relação aos processos antidemocráticos durante a ditadura militar. Uma nova forma de violência se firmou no país, desde finais da década de 1970 até hoje, com aumento expressivo das taxas de homicídios, sobretudo, nas capitais e regiões metropolitanas e, com grande número de execução por parte de agentes da segurança pública do país.

    Mediante redes e organizações complexas que ultrapassam os limites das classes sociais, o crime violento se tornou parte dos processos globais econômicos e socioculturais. Geralmente, é atribuído ao tráfico de drogas, cujas implicações incidiram sobre o aumento do crime de homicídio, e associado ao aumento da violência institucional.

    De um lado, configura-se o fomento do medo e preconceitos, através da fala do crime, direcionados a determinados segmentos da população – pobre e negra. De outro lado, convivemos com as estatísticas sobre a incidência dos crimes, mas também com a sua ocultação pelas mídias, que direcionam os debates sobre o fenômeno conforme interesses políticos. Assim, para entender as manifestações atuais da violência, cabe observar os reais mecanismos que a fomentam.

    Distancio-me das explicações atribuídas que estabelecem uma relação de causalidade entre criminalidade violenta e pobreza, como também entre violência e a inexistência do Estado em contextos marginalizados. No meio acadêmico, a fragilidade e a baixa legitimidade estatal são consideradas a causa da violência urbana. Essa ausência institucional é encarada como uma possibilidade de ocorrência da violência em meio à grande diversidade das relações sociais e de possibilidade de eventos violentos. Assim, também sucede quando é estabelecida, equivocadamente, a relação do tráfico de drogas com as limitações econômicas. Mais uma vez, uma possibilidade é confundida como causa (SILVA, 2008).

    Entre os fatos sociais há fluidez de causalidade. Resultam de ações diversificadas dos indivíduos, inclusive com relação aos sentidos atribuídos ao desenvolvimento em curso nas sociedades (ZALUAR, 1998). A partir deste constructo, a violência se apresenta atuante em toda a parte, sem uma forma definida, sem atores determinados e sem causas que se possa delimitar e definir de maneira exata, ou a partir de determinações preconceituosas.

    Na relação existente entre a violência e algumas nuanças específicas para o caso brasileiro, identificaríamos mudanças rápidas na organização familiar. Famílias fragmentadas pelos conflitos provenientes do tráfico de drogas, como também pelas mudanças nos padrões de relacionamento afetivo-sexual. Jovens assassinados, ou adolescentes que engravidam sem planejamento, sem assistência social e política. Assim, cria-se, por exemplo, o processo de pauperização das mulheres, como fenômeno associado à chefia feminina de lares nos quais elas são o único elo entre os dependentes (MACEDO, 2007).

    As mudanças nos padrões de consumo também interfeririam na sociedade de diversas formas. É o caso do processo de incorporação do consumismo possível pelo advento do processo globalizador. As mudanças se associam à falta do sentimento de solidariedade e de padrões para uma sociabilidade positiva. Contudo, de acordo com Zaluar (1998, p. 303), esses aspectos não explicam o universo do crime se não forem consideradas questões como: o enraizamento do crime organizado nas instituições, mediante as estratégias de corrupção dos atores, a partir das quais o crime cria raízes; o funcionamento desigual do sistema de justiça, em razão das práticas organizacionais perpetradas pelos indivíduos que nele atuam; bem como a manutenção do Código Penal, da época da República, que permite a perpetuação da impunidade, quebrando noções de justiça necessárias à formação da cidadania e do Estado democrático.

    Dessa forma, podemos chamar de universo do crime os elementos que envolvem a falência do sistema judiciário, os abusos da PM, a privatização da justiça, a fortificação das cidades e destruição dos espaços públicos. De acordo com Caldeira (2000), o universo do crime também engloba as narrativas sobre o crime, ou a fala do crime. Neste caso, a fala ou narrativas sobre o crime dizem respeito às experiências maciçamente relatadas sobre violência, frequentemente, cheias de riqueza de detalhes e horror, fazendo dessas narrativas produtoras e legitimadoras de reações violentas e ilegais.

    Essas narrativas são capazes de combater e reproduzir ao mesmo tempo a violência através da associação estabelecida com o medo. Juntos, fala do crime e medo produzem interpretações, geralmente, permeadas pelo uso de estereótipos. É o caso do olhar da sociedade sobre o jovem negro que é visto e tratado como marginal, sujeito a ser temido por cidadãos de bem e combatido pela polícia. Nesse aspecto, os espaços são reorganizados a partir dos novos sentidos que lhes são atribuídos.

    Como resultado do sentimento de perplexidade, horror e vingança no meio social, e também como novo elemento agregado ao ciclo de violência, cresce a contratação da segurança privada e o apoio aos justiceiros. Esses elementos ganham forma diante da falha institucional de ordem que entendemos como segurança pública. A segurança pública é o principal elemento da ordem pública e deve ser exercida em sua função.

    Neste trabalho, o conceito de ordem pública é concebido no sentido de ordem do Estado democrático para preservar o que preza a Constituição. No entanto, como um conceito jurídico indeterminado, abre espaço para ambiguidades e possibilidades de legitimação de práticas autoritárias de manutenção da ordem, cuja pacificação social, por vezes, preserva uma ordem para uns em favor da desordem de outros. Na história do Brasil, as polícias garantiram o status quo e resguardaram as classes sociais mais altas (em sua maioria formada por pessoas brancas) em detrimento das classes pobres (representadas largamente pela população negra) (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009, p. 144).

    As narrativas do crime produzem preconceitos, estereótipos e racismo. Ao mesmo tempo em que combatem a violência, reproduzem-na, reorganizando simbolicamente o mundo através da discriminação de grupos específicos. A fala do crime faz-se mediadora da violência e criminaliza os pobres e negros, tornando-os vítimas incontestes da violência; fomenta o medo; deslegitima as instituições de ordem; privatiza a justiça; e legitima atuações de vinganças violentas e ilegais. Dessa forma, segregação social e espacial e racismo, largamente produzidos pela fala do crime, contrapõe a ordem democrática, os direitos de cidadania e o próprio combate à violência.

    A violência institucionalizada fomenta o crime. Caldeira (2000) relaciona o crime violento ao aumento dos crimes de homicídio, tentativas de homicídios, lesão corporal dolosa, estupro, tentativa de estupro, roubo e latrocínio. Esses crimes estão associados ao aumento da violência institucional e contribuem para a elevação da violência, com o agravante da contribuição das instituições de ordem sobre esse acréscimo - quando deveriam combatê-la.

    As estatísticas oficiais também compõem as narrativas do crime. Nesse contexto, são produzidas visões particulares distorcidas da realidade social através das estatísticas sobre o aumento do crime. Primeiro, no Brasil, como nos demais Estados Modernos, as estatísticas têm um poder disciplinar que é representado pelas instituições de segurança pública, que impõe as suas construções a respeito da imagem dos padrões de crime e conduta criminosa (FOUCAULT, 1987). A Polícia Civil, por exemplo, produz registros moldados em suas práticas e percepções sobre a realidade. Segundo, muitas pessoas deixam de registrar queixas de roubo, agressões físicas, estupros etc. Assim, vários delitos deixam de ser representados nos registros e isso ocorre em função do descrédito por parte da população diante das instituições policiais e da justiça. Mulheres em situação de violência doméstica deixam de ir à polícia por temerem o constrangimento a que são obrigadas a passar, provocado pelo assédio dos policiais e pela humilhação nos exames corporais para comprovação do delito.¹ Terceiro, é possível observar o padrão peculiar que se repete nas instituições policiais do Brasil. A polícia brasileira se utiliza de uma forma de classificação própria sobre o crime e o comportamento criminoso fora das metodologias formais e legais, o que Caldeira (2000) classifica como lógica em uso. Conforme a lógica em uso, os crimes de corrupção e de tortura praticados pelos policiais deixam de compor os números oficiais da criminalidade. Quarto, as pessoas criminosas das classes médias e altas frequentemente subornam os policiais e se livram dos registros. Quinto, os registros sobre as mortes violentas envolvem uma série de instituições distintas que desenvolvem registros paralelos, sem compartilhamento de dados e com diferenças alarmantes. Logo, os indícios sobre o crime são distorcidos e representados por estatísticas pouco confiáveis sobre a realidade social.

    A conivência e participação dos policiais e outros atores políticos na rede do crime possibilitam os entraves para o enfrentamento e prevenção desse fenômeno. Mantêm-se livres os mais fortes na hierarquia estabelecida no crime (políticos e policiais corruptos e os grandes traficantes); enquanto os pequenos traficantes e alguns usuários (pobres e negros) são privados da liberdade e, frequentemente, assassinados. O sistema de justiça também oferece um funcionamento desigual em razão das práticas organizacionais criadas e mantidas por seus agentes, assim como em função do Código Penal que ainda se encontra respaldado na formatação da estrutura e dos valores que não envolvem os processos atuais (ZALUAR, 1998; ADORNO, 1993; 2006).

    Os problemas decorrentes da ineficiência do Sistema Judiciário do Brasil refletem no fenômeno atual da violência. Poucos juízes e poucas varas para julgamento dos processos implicam em morosidade no fluxo de processos e abertura de espaço para pagamento de propina a funcionários administrativos. Isso encarece e retarda as decisões judiciais, proporcionando o desânimo das partes e prejudicando, principalmente, os pobres que não podem entrar no esquema de suborno de agentes. Os apenados são as principais vítimas.

    As ideologias naturalizadas dos agentes jurisdicionais (juízes, promotores, advogados, defensores públicos) implicam na incidência de várias verdades, preconceitos, conflitos interpessoais e na construção moral da pessoa do suspeito. Essa abordagem interfere fortemente na condução do processo. Então, usuários pobres e pequenos traficantes ficam presos, já que não podem pagar nem bons advogados, nem os subornos aos funcionários de todo esse sistema (são negros em maioria); enquanto os grandes distribuidores de drogas e de armas raramente o são (ZALUAR, 1998).

    O conceito de violência urbana é introduzido ao debate como uma categoria coletivamente construída. Serve para designar uma ordem social em que a força direciona e firma as práticas, no decorrer do tempo, através da apresentação de um ator típico – geralmente, associado ao traficante de drogas (SILVA, 2008). O ator típico abarca a categoria do criminoso.

    Para Caldeira (2000, p. 78), ator típico constitui uma categoria classificatória que atua na vida cotidiana e cuja função principal é dar sentido à experiência. Está embutida na prática cotidiana e que simbolicamente organiza e dá forma a essa prática. Nos padrões atuais, (perpassados pelo preconceito de raça, classe e gênero) esta categoria simplifica radicalmente a realidade social situando o criminoso no espaço da marginalidade, da poluição e da proliferação do mal, cuja origem advém, segundo o senso comum, da favela, da periferia, dos cortiços, da negritude e dos lugares marginais da sociedade.

    Sob a forma de vida autônoma, cujas práticas são mediadas pela possibilidade latente do uso da força, a violência se estabelece. Cria-se, a partir daí, um problema social com vítimas reconhecidas como subordinadas a duas ordens existentes. De um lado, orientadas pela restrição da violência via monopólio formal (da violência) – o Estado –, portanto, considerada institucional-legal e mais convencional, cujo princípio norteador seria o de prevenção e pacificação das relações conflituosas. Do outro lado, a vida das pessoas fica orientada para o uso da força como recurso universal do seu princípio de organização, entretanto, no campo da ilegalidade. Na visão de Silva (idem, p. 39), configura-se um paralelismo, permeado de conflitos, edificado pela fragmentação da vida cotidiana.

    Nesse desenho, a representação da violência urbana reconhece o padrão da sociabilidade violenta, cuja principal característica é a passagem do uso da força como meio para atingir interesses, para um princípio coordenador das ações. De meio, a força é ressignificada como princípio ou fundamento e, dessa forma, rege as condutas e transforma as relações sociais, permitindo a repetição de conflitos, principalmente em contextos periféricos urbanos, porque são marginalizados e negligenciados pelo Estado e sociedade (SILVA, 2008).

    Para a compreensão do padrão da sociabilidade violenta, Silva (2008) toma o conjunto de restrições normativas, éticas ou afetivas como secundário. Isto porque na dimensão subjetiva de formação de condutas, neste aspecto da sociabilidade, o mundo de objetos é que serve, apropriadamente ou inapropriadamente, à satisfação dos desejos pessoais. As pessoas obedecem à resistência material, que pode se apresentar (e geralmente se apresenta) pela força de outros humanos-objetos, portanto, pela força implicada pelos agentes produzidos pela reiteração das demonstrações factuais, permeadas pela violência (idem, p. 42).

    Nesse padrão, é reconhecida uma distribuição hierárquica dos agentes entre o dominador-portador da ordem social estabelecida e os dominados ou subalternos. Atribui-se aos chamados criminosos (civis e policiais) a dominância nessa tessitura, na qual as formas de interação se constituem como técnicas de submissão dos demais participantes. Embora entre essas posições haja uma série de situações, permanece a obediência dos que reconhecem a sua submissão diante dos agentes que dispõem da força, através das punições físicas e letais.

    Na análise de Silva (2008), é salientada a coexistência de forças na geografia e ecologia dos contextos referidos. Convivem na distribuição territorial das cidades duas formas de sociabilidade conflitantes, marcadas pela tensão constante entre os dois universos: o da força identificada como estatal, ou institucional-legal e o da força proveniente das práticas violentas ilegítimas. Contudo, a atuação policial como autores dos homicídios nas grandes capitais e RMs brasileiras, descritas acima, abarca o campo da prática violenta ilegítima, porque é arbitrária, corrupta e discriminatória. Estas tensões limitam a ação dos indivíduos, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades de condutas pautadas pelo medo, pela fixação de preconceitos e fomento às desigualdades sociais, como será discutido no tópico que se segue.

    1.1 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA: FORÇA POLICIAL, ABUSOS E O SISTEMA DE OPRESSÃO INTERLIGADO

    De acordo com Caldeira (2000), a violência é constitutiva das várias dimensões sociais. Isto inclui dimensões consideradas mais legalistas e individualistas (idem, p. 139), como aparece no trabalho de Silva (2008). No caso da polícia brasileira, a violência se estabelece como norma institucional que vem moldando as suas práticas no decorrer da história. As ações violentas de policiais são cotidianas e controlam a população, sob a proteção da lei, tratando desigualmente as elites e as classes pobres. As camadas médias e altas têm formas (geralmente, através de dinheiro) de garantir ações policiais mais brandas sobre os seus delitos, enquanto que a população pobre é alvo de tratamento violento explícito. Observamos respaldo legal sobre as desigualdades conferidas a estes grupos pelas ações das instituições de ordem para a situação de prisão. Por exemplo, quando deparamo-nos com as distinções legais para a detenção de portadores de grau universitário e dos não portadores, na maioria, pobres.

    Também no âmbito doméstico a violência se constitui como norma para ações das autoridades identificadas nas figuras de chefia do grupo familiar. Manifesta-se na forma psicológica e através do espancamento de crianças e mulheres (sobre estas, muitas vezes, finalizando com óbito) ². Embora haja o respaldo legal que coíbe este tipo de violência, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Pena), essas pessoas enfrentam o respaldo sociocultural que admite, em muitos casos, a perpetuação da violência como punição ou método disciplinar sobre os dois grupos sociais. Assim, em conformidade com o pensamento de Caldeira (2000), atribuo à violência uma linguagem regular da autoridade, seja ela institucional ou doméstica, representada pelo Estado ou pelo (a) chefe de família. A violência é constitutiva da ordem social (idem, p. 139-140).

    No que se refere à força policial, é reconhecida a sua institucionalidade e legalidade e a sua manifestação é através da sociabilidade violenta (SILVA, 2008). A polícia pratica crimes de corrupção ou lança mão de uma força violenta ilegítima sobre a população, em especial, a negra e pobre. Estes policiais criminosos representariam os dois universos ao mesmo tempo, o institucional-legal (indicado pelo autor como monopólio formal da violência) e o violento, criando um ambiente de frequentes tensões entre a população e o corpo policial.

    Na sua análise, Silva (2008) separa as ações policiais em dois campos, da legalidade e das ações violentas. Neste último, o Estado e a lei compartilhariam o mesmo espaço com a criminalidade estabelecida, desencadeando mais conflitos no meio social. Na própria constituição da polícia para as suas práticas de controle da população, invoca-se formas violentas que se apresentam como um princípio regulador das suas ações. O princípio regulador das ações policiais – a violência – se agrava conforme as suas condutas escapam do campo da legalidade. Portanto, a instituição policial é violenta sob o aparato legal.

    A brutalidade institucional conflagra a violência contra os direitos humanos e contra as determinações constitucionais. Frequentemente, no Brasil, suspeitos são assassinados e torturados. Essas pessoas consideradas suspeitas são em sua maioria jovens negros. Neste contexto, mortes e agressões contra negros e negras são naturalizadas, o que a literatura classifica como necropolítica (ALMEIDA, 2018; MBEMBE, 2018). Extrai-se de pessoas negras os seus direitos fundamentais, como o direito humano à vida e à dignidade.³ Entretanto, convivemos com a impunidade e a aceitação popular sobre esses delitos.

    O que define essa institucionalidade é a repetição das dinâmicas de corrupção e brutalidade classificadas por Soares (2012) como genocídios legitimados pela omissão, pelo silêncio e sentimento de vingança da sociedade (ADORNO, 2006). Nesse formato, o Estado retoma elementos opressivos do seu passado sobre a vida cotidiana da população historicamente discriminada. Os crimes de tortura, as execuções perpetradas pelos grupos de extermínio ou justiceiros, respaldando as execuções extrajudiciais, a violação constante dos direitos humanos, as desigualdades na aplicação das leis, configuram as práticas genocidas que assombram a sociedade.

    No estudo realizado pelo jornalista Caco Barcellos sobre o processo de investigação criminal e judicial, entre as décadas de 1970 e 1992, em São Paulo, foram reunidos dados que indicavam uma série de problemas que comprometem o acionamento da justiça pela população: havia contradições contínuas entre os laudos do IML e as versões policiais, com relação ao número de balas e sua localização nos corpos das vítimas; simulações de socorro com o transporte do corpo da vítima para hospitais, o que indicava a falta de preservação do local do crime; muitas vítimas inocentes, sem antecedentes criminais; erros graves nos inquéritos policiais militares, facilitando a defesa dos mesmos; testemunhas em favor das vítimas nunca eram ouvidas, favorecendo a absolvição dos oficiais militares por parte da justiça militar; numerosos sumiços dos corpos das vítimas das ações violentas da Polícia Militar, que não apareciam nas estatísticas, mas eram indicados como casos de desaparecidos. Por fim, foi detectado o arquivamento de processos de acusação contra policiais em quase 100%. Essas falhas e atos de corrupção comprometem a apuração dos fatos, sempre em favor dos policias, o que legitima o uso da força por estes agentes, ou melhor, a sua responsabilidade sobre o crescimento da violência, não só em São Paulo, como em todo o país (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009).

    A cultura de abuso da força letal pelas polícias brasileiras prevalece como entrave à constitucionalidade - embora nem todos os profissionais mantenham este tipo de conduta. Nesse sentido, diversos grupos civis e políticos cobram ações estatais que rompam com o impedimento de acesso aos direitos por parte dos grupos historicamente discriminados. A partir daí, constatamos esforços governamentais de cunho progressista com vistas à melhoria dos serviços públicos de segurança. Dentre os quais, esforços voltados para formação e capacitação de profissionais da área de segurança, como também de setores da população.

    Trata-se de iniciativas que prezam pelo rompimento de elementos hostis da cultura institucional, através da implantação de novos conceitos. Sob esse aspecto, os policiais deveriam se conscientizar sobre o trabalho de prevenção e iniciativa, sem lançar mãos de princípios bélicos, relacionados à lógica de guerra e de combate ao inimigo. Verifica-se que as novas determinações são projetadas tanto sobre as formas de atuação policial, quanto sobre as políticas de segurança pública (idem).

    A finalidade seria direcionar-se aos cidadãos e cidadãs democraticamente e equitativamente, prestando os serviços que lhes são designados enquanto servidores da segurança pública. A perspectiva da polícia cidadã, por exemplo, mudaria o imaginário de medo e hostilidade presente na população atendida e historicamente violada em seus direitos. Entretanto, permanece a orientação de disciplina rígida, hierarquia forte, além de condicionamento físico e psicológico. Esse tipo de formação reverbera negativamente na relação entre cidadão (ã) e policial. Para alguns críticos, a rigidez deveria se submeter exclusivamente ao estatuto administrativo militar, não ao estatuto comum do funcionário público civil (idem, p. 152).

    Quando o policial militar comete crime, deve ser julgado pela justiça especial conforme o documento constitucional. Na atual conjuntura, esta arguição cria total abertura para julgamentos de acordo com os interesses dos envolvidos em detrimento da própria Constituição Federal. De um lado, a justiça rígida para as transgressões disciplinares; de outro lado, julgamentos permissivos sobre os crimes cometidos contra o cidadão no exercício do policiamento. A situação se agrava com a constituição de um juiz militar, que para sê-lo basta possuir patente ou posto superior ao do policial que está sendo julgado. Neste formato, a organização policial se faz como um palco para a impunidade no país dos crimes cometidos por policiais militares. Portanto, essas questões conflituosas somam atributos para termos uma polícia altamente violenta, que opera na lógica da guerra contra o crime, cujo inimigo é o traficante, ou bandido, negro, morador dos contextos marginalizados (idem, 2009).

    A brutalidade está diretamente relacionada às manifestações de racismo e aos preconceitos com base na classe social e no gênero (CARNEIRO, 2002, 2011; ESPINHEIRA, 2004; 2008; SOARES, 2012). Os valores discriminatórios e os valores democráticos se situam na articulação entre o cultural e o institucional que, em nosso contexto nacional, está cercado de ambivalências. De um lado, a negação de direitos de cidadania a alguns grupos sociais - mulheres, negros, portadores de deficiência, homossexuais, lésbicas etc. – do outro lado, os privilégios gozados pelos homens e mulheres brancos das classes altas (ZALUAR, 2000).

    Para Velho (2000, p. 14), uma das diferenciações produtoras de tensões e conflitos entre os atores sociais é a desigualdade social. Ela se estabelece em meio à complexidade social que é ao mesmo tempo consequência e produtora das diferenças. Meninas negras pobres, em muitos casos, trabalham fora de casa para ajudar no sustento de suas famílias ainda na infância. Nessa condição, por exemplo, estão mais expostas à violência sexual e consequente gravidez na adolescência.

    Dificilmente, essas meninas têm acesso qualificado a insumos e informações relacionados aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Muitas vezes, são abandonadas pelos parceiros/abusadores, e/ou expulsas de suas casas pela família. Elas se tornam mães chefe de família, ou abandonam seus filhos nascidos, ou abortam em condições precárias. Desassistidas pela família e pelo Estado, essas meninas abandonam seus estudos, alimentam as estatísticas das desigualdades sociais e têm dificultadas as suas possibilidades de ascensão social. Esse é um dos processos produtores da condição de asfixia social vivenciadas por mulheres negras antes mesmo de atingirem a maioridade (CARNEIRO, 2011). E assim, as desigualdades se retroalimentam reproduzindo mais desigualdades nas sociedades capitalistas.

    Diferenças geram mais diferenças em contínuos processos de especialização. Por isso a análise se passa sob a perspectiva interseccional compreendida como um sistema de opressão interligado em que gênero, raça e classe produzem no indivíduo experiências identitárias positivas ou negativas a depender do grupo social do qual faça parte. Patrícia Hill Collins⁴ defende a perspectiva que relaciona os três operadores sociais para combater os estereótipos que funcionam como imagens de controle. Na tessitura capitalista em que se estabelecem as identidades subalternas, mulheres negras e homens negros passam por experiências negativas em processos que geram exclusão social e política no decorrer de suas vidas.

    A articulação de categorias para o entendimento dos métodos de opressão propõe inicialmente a conceituação de gênero. O constructo gênero, enquanto categoria de análise, [...] pretende dar conta das variadas elaborações culturais que diferentes sociedades [...] constroem em torno das diferenças percebidas entre machos e fêmeas e delas se apropriam na prática social (SARDENBERG, 2002, p 54). Mulheres e homens constituem tipos-ideais de identidades de gênero em contextos ocidentalizados a partir da construção em torno do que é estabelecido como sexo biológico⁵.

    As diferenciações sociais são criadas e apropriadas pelos indivíduos em constante processo de elaboração de significados para e na prática social. As pessoas demarcam seus corpos, e são demarcadas, num processo de frequente naturalização, a partir da apropriação de características físicas e de comportamento. Nos padrões cisheteronormativos, força, objetividade e certa dose de agressividade são atributos convencionalmente estimulados e aceitos para a construção de masculinidades em crianças que nascem com pênis; ⁶ a formação de feminilidades, por sua vez, é oposta, valorizando docilidade, fragilidade e resignação perpétua para as que nascem com vagina. Vale salientar que as demarcações variam conforme o tempo e o espaço em sociedades que projetam e pensam atributos, distinções e semelhanças entre os indivíduos.

    É a partir do corpo gendrado em norma cultural, definida num determinado momento histórico-social, que as tensões sociais se estabelecem, cujas inscrições coercitivas envolvem a aceitação voluntária dos atores e atrizes sociais. Os corpos são produtos da história, portanto, lugares de emblema da situação social de um determinado indivíduo (GUILLAUMIN, 1994). Como expõe Sardenberg (2002, p. 56), a nossa aceitação indica subjetividades corporificadas, já que estamos no mundo através de nossos corpos. Nesse contexto, corpo e gênero assumem valores e importância dentro de um contexto social específico, produzido no interior do agenciamento social sobre os sujeitos.

    A necessidade de inserir o constructo gênero envolve a complexificação da categoria, historicizando-a e politizando-a (AZEREDO, 1994). Esse movimento reflexivo possibilitará agregar outras relações de opressão, apresentando novas desigualdades dentro dos grupos. Por exemplo, a maioria da letalidade envolve jovens negros como principais vítimas e autores de crimes violentos.⁷ Assim, um estudo detalhado questiona qual o contexto em que uma masculinidade é desenvolvida. Qual a sua classe social? Como a masculinidade é racializada? Qual a coerência estabelecida com relação à idade do ser masculino criado/produzido/corporificado? As respostas devem refletir a compreensão dos processos que levam à alta representatividade negra nos índices de crimes violentos.

    As desigualdades e opressão polarizam a população negra em desvantagem social histórica, asfixiando mulheres e homens de forma diferenciada. Dentro das determinações sociais para masculinidades, a negra pobre é o alvo constante dos abusos policiais, cujas formações são impactadas pelo racismo estrutural. Os jovens negros morrem tanto nas ações policiais, quanto nos confrontos entre as facções rivais ⁸ (SOARES, 2019). Todavia, a sociedade também cristaliza a juventude negra na condição de ladrão, criminoso, traficante, portanto de pessoa a ser temida e massacrada.⁹ Nesses parâmetros, gênero é apresentado como elemento constitutivo da razão simbólica (AZEREDO, 1994, p. 211) articulado a raça como formas de opressão genocida do Brasil capitalista.

    No Brasil, a base da opressão racial gendrada advém do regime colonialista escravocrata (CARNEIRO, 2003). Gênero, raça, classe, geração, ocupação, capacidade física, produzem identidades subalternizadas sob uma matriz colonial instituída. A opressão e violência que deu corpo à formação da sociedade brasileira sempre esteve voltada à população negra, estruturando uma ordem social racista. Desde o tráfico de africanos e africanas para as Américas, seguida de escravidão e exploração indígena e negra, é produzido, no Brasil, invisibilidade negra nos campos decisórios e padrões estéticos hegemônicos; bem como, a sua fixação em subempregos e alta representatividade nas estatísticas de mortes violentas. Nas palavras de Akotirene (2018),

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