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A transmissão geracional em diferentes contextos: Da pesquisa à intervenção
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E-book411 páginas10 horas

A transmissão geracional em diferentes contextos: Da pesquisa à intervenção

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Sobre este e-book

Obra pioneira e multidisciplinar que conta com autores de várias correntes da psicologia, todos com o objetivo de analisar a transmissão geracional e suas conseqüências. A primeira parte enfoca a questão sistêmica, faz a ponte entre o psicodrama e a transmissão geracional e aborda o genograma. A segunda parte discute como lidar com casos de violência, especialmente familiar. Textos de Antonia Lucia Ribeiro Freitas, Ceneide Maria de Oliveira Cerveny , Deise Matos do Amparo , Eliana Mendonça Vilar Trindade , Heloisa Maria de Vivo Marques , Izabel Cristina Bareicha , Josenice R. Blumenthal Dietrich, Julia S. N. F. Bucher-Maluschke , Kamilla Dantas de Oliveira , Liana Fortunato Costa , Maria Alexina Ribeiro , Maria Aparecida Penso , Maria Eveline Cascardo Ramos , Marlene Magnabosco Marra , Marli da Silva Albuquerque , Shyrlene Nunes Brandão , Tânia Mara Campos de Almeida , Vicente de Paula Faleiros e Viviane Legnani Neves.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2022
ISBN9786555490510
A transmissão geracional em diferentes contextos: Da pesquisa à intervenção

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    A transmissão geracional em diferentes contextos - Maria Aparecida Penso

    Parte 1

    1. Aspectos teóricos da transmissão transgeracional e do genograma

    MARIA APARECIDA PENSO

    LIANA FORTUNATO COSTA

    MARIA ALEXINA RIBEIRO

    Histórico e definição do genograma

    Atualmente, o genograma é um instrumento bastante utilizado não só por terapeutas de família e pesquisadores da dinâmica familiar, mas também por outros profissionais da área de saúde que trabalham com crianças, adolescentes e adultos. Isso justifica a importância de compreender sua origem e os pressupostos que direcionam sua utilização.

    De acordo com Nichols e Schwartz (1998), a utilização do genograma em trabalhos com famílias foi iniciada por Murray Bowen, no National Institute of Mental Health (NIMH), em 1954, com o que ele denominou de diagrama da família. Em uma publicação de 1972, Phillip Guerin renomeou esse diagrama como genograma. Posteriormente, Guerin, Eileen e Pendegast (1976) escreveram sobre a utilidade do genograma como avaliação diagnóstica na primeira entrevista com a família.

    A grande aplicação do genograma pelos terapeutas de família deve-se ao fato de que esse instrumento permite melhor utilização do tempo da entrevista. Por meio de uma estrutura bem definida e de um método eficiente para obter informações sobre a família, ele fornece uma representação dos laços transgeracionais e intergeracionais (Benoit, 1997; Colle, 2001; Guerin e Gordon, 1988; McGoldrick e Gerson, 1995; Nichols e Schwartz, 1998).

    Miermont et al. (1994) fornecem uma definição bastante completa do que os terapeutas sistêmicos entendem como genograma: O genograma é um mapa que oferece uma imagem gráfica da estrutura familiar ao longo de várias gerações, esquematiza as grandes etapas do ciclo de vida familiar, além dos movimentos emocionais a ele associados (p. 291). McGoldrick e Gerson (1995), de forma semelhante, apontam que o genograma é uma descrição dos padrões familiares de forma telegráfica. Ele pode ser usado para mapear a família em cada fase do ciclo de vida familiar. Assim, esse instrumento auxilia na elucidação da estrutura do ciclo de vida familiar, do mesmo modo que o ciclo de vida familiar pode ajudar na interpretação do genograma (Carter e McGoldrick, 1995; McGoldrick e Gerson, 1987, 1995).

    Ceberio (2004) aponta que muito pouco se escreveu sobre o genograma em língua espanhola – isso justifica o lançamento de seu livro. O mesmo pode-se dizer sobre a publicação em língua portuguesa desse conceito tão importante para os estudiosos e para aqueles que trabalham em intervenções com famílias. Esse autor define o genograma como o desenho de uma árvore ramificada em que surge o desenho da constelação familiar multigeracional de uma pessoa. Também se pode compreender o genograma como um resumo clínico das informações sobre a família e seu potencial de saúde, seus problemas, os riscos de adoecimento presentes nas relações, entre as pessoas de uma mesma geração, ou entre gerações subsequentes.

    A transmissão transgeracional: pressupostos teóricos

    A utilização do genograma parte do pressuposto de que a família possui uma história que extrapola a família nuclear e envolve a família extensa. O movimento dialético de pertencimento e separação presente na história da família nuclear, que busca a autonomia dos filhos, vai reatualizar as regras transgeracionais e os padrões de relacionamento dos diferentes sistemas familiares de origem, e esse movimento de autonomização dos filhos varia em função dos mitos familiares de cada um dos pais (Miermont et al., 1994; Preto, 1995).

    Carter e McGoldrick (1995), ao elaborar as fases distintas para o ciclo de vida da família atual, influenciadas pelos conceitos da teoria boweniana, enriqueceram seu trabalho acrescentando um ponto de vista multigeracional (Nichols e Schwartz, 1998). O argumento usado foi de que a passagem pelas diversas etapas do ciclo de vida e a forma de lidar com as crises não vão depender apenas dos recursos da família nuclear, mas também dos legados familiares de outras gerações, ou seja, da forma como as gerações anteriores resolveram essas mesmas crises. Embora essas autoras reconheçam o padrão dominante de família nuclear, consideram que ela é um subsistema emocional reagindo aos relacionamentos passados, com base no modelo mítico que perpassa as gerações.

    Nesse sentido, é muito importante a compreensão dos mitos familiares como transmissores de padrões relacionais multigeracionais. O conceito de mito familiar foi introduzido na terapia familiar há quatro décadas por Ferreira (1963), e pressupõe que, do mesmo modo que a sociedade cria mitos que justificam sua existência, a família também tem um modelo mítico que garante sua coesão interna e sua proteção externa.

    O mito, como qualquer mecanismo de defesa, protege o sistema contra a ameaça de destruição e caos. Ele tende a manter e, algumas vezes, até aumentar, o nível de organização da família pelo estabelecimento de padrões que se autoperpetuam, com a circularidade e autocorreção característica de qualquer mecanismo homeostático. (Ferreira, 1963, p. 462)

    Desde então, esse conceito tem sido incorporado por diferentes autores que trabalham com famílias, na busca da compreensão de seu funcionamento: Andolfi e Angelo (1988), Ausloos (1984), Benoit (1997), Bucher (1985, 1986), Neuburger (1999), Selvini-Palazzoli (1978), Watzlawick, Beavin e Jackson (1981), apenas para citar alguns.

    Entre esses autores, Bucher (1985, p. 111), estudando os trabalhos de Ferreira, escreve:

    O mito familiar é um sistema de crenças que diz respeito aos membros de uma família, seus papéis e suas atribuições em suas transações recíprocas; é constituído de convicções compartilhadas pelo conjunto de pessoas que integram esse sistema e são aceitas a priori, mesmo quando irreais, como uma coisa sagrada e tabu; serve como mecanismo homeostático, tendo por função manter a coesão grupal e fortalecer a manutenção dos papéis sociais de cada um. Por esta razão, dificulta e até impede o sistema familiar de se deteriorar ou até de se destruir.

    Essa definição é bastante abrangente e mostra que o mito familiar está presente em todas as famílias, constituindo-se no cimento que proporciona ao grupo familiar um sentido de identidade (Neuburger, 1999). Portanto, o mito define as regras, as crenças e os papéis dentro da família, ditando sua forma de funcionamento e mantendo sua coesão (Rosa, 1997). Sendo assim, cada família construirá sua mitologia baseada nas singularidades genéticas, culturais e históricas de cada um de seus membros (Miermont et al., 1994).

    As colocações de Simon et al. (1988) também vão ao encontro da definição de Bucher (1985), apresentada acima, pois, para esses autores, os mitos têm a dupla função de proteção e defesa da família. Como protetores, eles interferem na interação da família com o exterior, mantendo afastados os intrusos, ou, pelo menos, evitando que se faça conhecida a realidade familiar. Como mecanismo de defesa, eles atuam para distorcer a realidade das relações familiares, evitando a dor e o conflito, protegendo assim a família do enfrentamento com algumas verdades dolorosas sobre o próprio funcionamento.

    O que permite a transmissão do mito são a memória familiar e os rituais, dois movimentos familiares interconectados e interdependentes. É a memória familiar que garante a reprodução simbólica da família ao longo das gerações, lembrando o mito fundador da célula familiar (Bucher, 1985, 1986). Isso significa que as famílias selecionam aquilo que consideram importante de ser compartilhado por todos os seus membros, e essas informações são transmitidas ao longo do ciclo de vida familiar e também ao longo das gerações. Em sua dimensão paradoxal, a memória transmite um conteúdo de informações, mas também administra aquilo que convém esquecer para assegurar a continuidade familiar (Neuburger, 1999).

    À medida que se realizam os rituais, a memória familiar é resgatada e se valida a experiência e o estar juntos, acentuando-se também o aspecto de transformações sucessivas, que servem de apoio aos significados que cada pessoa lhes atribui. Os ritos são moldados pelas regras estabelecidas pela família e são responsáveis pela exteriorização dos hábitos familiares (Krom, 2000).

    A memória familiar permite a definição, pela família, de rituais que organizam as relações interpessoais de seus membros. Esses rituais são produtos da tradição, sendo transmissíveis e sancionados pelo grupo, exteriorizando os hábitos que são ancorados nas regras familiares, e têm como função principal transmitir e perpetuar o mito familiar (Andolfi e Angelo, 1988; Bucher, 1985). Para Neuburger (1999), a memória familiar é, essencialmente, um processo de seleção daquilo que convém esquecer e daquilo que é necessário lembrar para sustentar, manter e transmitir o mito de um grupo familiar.

    Perpetuando o mito familiar, os rituais contribuem para manter a identidade familiar, sinalizando as transições normativas do ciclo de vida familiar e ajudando os membros da família no manejo e na resolução dos conflitos, pela possibilidade de expressão das emoções (Imber-Black, 1995). No entanto, do mesmo modo que os ritos são importantes e úteis para a sobrevivência do sistema familiar, eles também podem ser altamente destruidores, caso se tornem muito rígidos e não passíveis de mudanças.

    Para Martins e Cerveny (1997, p. 75-76), os rituais, como expressão dos mitos, têm a função de propiciar sua manutenção e revisão simultâneas:

    Na função de manutenção, transmite[m] e perpetua[m] as crenças peculiares, ao mesmo tempo em que ensina[m] aos membros da família os modelos de interação relativos a situações específicas ou vivências emocionais a elas ligadas. Podem também incluir funções de transmissão de significados reelaborados pelos membros da família introduzindo mudanças e transformações do mito original.

    Os mitos e ritos familiares são fundamentais no desenvolvimento da família, pois fornecem um sentido de pertencimento, mas precisam ser suficientemente flexíveis para se transformarem, ao longo do tempo. O mito é uma criação coletiva que diz respeito a todos os membros da família e que é, em parte, herdado da família de origem (Andolfi e Angelo, 1988; Bucher, 1985), e precisa ser compreendido também em sua dimensão transgeracional. Como apontam esses autores, para se compreender o significado do mito é necessário considerar, pelo menos, três gerações.

    Para Krom (2000), o ritual pode ser considerado um sistema de intercomunicação simbólica entre o nível do pensamento cultural e os complexos significados culturais, por um lado, e a ação social e o acontecimento imediato por outro. Esse sistema pode facilitar a comunicação entre os indivíduos, as famílias e as comunidades, entre passado, presente e futuro, favorecendo a reorganização de pautas de funcionamento que podem colaborar para a modificação de aspectos ligados à mitologia familiar.

    Podemos afirmar, portanto, que os mitos perpetuados e atualizados pelos rituais, definidos, por sua vez, com base na memória familiar, mantêm a unidade do sistema, dando-lhe um sentido de identidade próprio através dos tempos e das gerações. Esse processo dinâmico pode ser representado e compreendido com base na construção do genograma e da investigação do processo de transmissão transgeracional, com suas repetições, atualizações e possibilidades de transformação.

    O processo de delegação e a manutenção dos mitos familiares

    No estudo dos mitos familiares e de sua transmissão por meio da memória e dos ritos familiares, observa-se que eles delegam a cada membro da família um papel e um destino bem precisos. A delegação constitui o ponto de ancoragem das obrigações que nos são transmitidas através das gerações. Ela dá uma direção e uma significação à nossa vida, é um processo necessário e legítimo (Miermont et al., 1994; Stierlin et al., 1981). A delegação é a expressão de um processo natural e indispensável para a construção da identidade e varia conforme a história familiar. As dificuldades surgem quando aquele a quem algo é delegado não tem ainda a maturidade ou as características necessárias para assumir as missões que lhe são passadas, perturbando, assim, seu desenvolvimento psicossocial. Ou, ainda, quando existem delegações contraditórias e inconciliáveis.

    O conceito de delegação está ligado ao de lealdade familiar, que é definida por Boszormenyi-Nagy e Spark (1983) como uma trama motivacional tipicamente dialética, de raízes multipessoais, que implica a existência de expectativas estruturadas de grupo, em que todos os membros adquirem um compromisso, com um forte componente de obrigação ética. Portanto, é um conceito fundamental para compreender a estruturação mais profunda das famílias. A lealdade implica uma contabilidade de méritos familiares que se torna um padrão de medida da ideia que a família tem da Justiça no âmbito familiar (Simon et al., 1988). A contabilidade dos méritos é um termo utilizado por Boszormenyi-Nagy e Spark (1983) para definir o que cada um de seus membros pode esperar receber e o que deve dar à família. Krom (2000) afirma que o que nos foi legado influencia de maneira poderosa toda a nossa vida. Esses conteúdos identificados como lealdades invisíveis referem-se à existência de expectativas estruturadas diante das quais todas as pessoas na família assumem compromissos. A autora afirma que é possível representá-las com a imagem de um grande livro, com as bordas rotas e a escrita envelhecida de arabescos antigos, em que se contabilizam os créditos e os débitos familiares, estabelecendo conexões tiranas entre as gerações passadas e futuras, criando expectativas que nos influenciam.

    Conforme foi colocado anteriormente, o contrato de delegação pressupõe a existência de uma ética nas famílias. Bons relacionamentos familiares incluem um comportamento ético e a consideração pelo bem-estar e pelos interesses de cada membro. Tal postura pressupõe a lealdade, que, com a confiança, proporciona a cola que mantém as famílias unidas, sendo muito importante para a sua sobrevivência (Nichols e Schwartz, 1998). No entanto, em alguns casos, a lealdade pode se dar à custa da exploração dos membros da família, caracterizada por um equilíbrio injusto entre dar e receber.

    O processo de transmissão multigeracional

    Na tentativa de explicar o processo de repetição de padrões de relacionamento, especificamente o processo de projeção familiar, Bowen (1976) elabora o conceito de transmissão multigeracional. Esse conceito descreve a transmissão dos níveis de diferenciação do self da família, por meio das gerações múltiplas, e conduz a doença emocional além do indivíduo e de sua família nuclear para várias gerações passadas. Como afirmam Nichols e Schwartz (1998): O problema familiar é o resultado de uma sequência multigeracional em que todos os membros da família são agentes e reagentes (p. 314). Nesse sentido, o grau de diferenciação do self é resultado de um processo familiar, transmitido por meio das gerações, que nos ajuda a entender os movimentos de separação e pertencimento nas famílias.

    Esse processo de transmissão que leva à repetição de padrões de relacionamento é especialmente visível nas relações conjugais, o que levou alguns terapeutas de família a desenvolver modelos de terapia conjugal que incluam as famílias de origem. De acordo com Framo (2002), a utilização da família de origem como recurso terapêutico em terapia familiar, de casal e individual representa o resultado lógico e a aplicação clínica do conceito segundo o qual forças transgeracionais veladas exercem uma influência crítica sobre as relações íntimas atuais. Assim, é preciso incluir três gerações no trabalho com casais ou famílias. Para o autor, as atuais dificuldades conjugais, pessoais e parentais são esforços de reparação para corrigir, controlar, defender-se e apagar antigos e perturbadores paradigmas relacionais ligados à família de origem. Desse modo, o método centrado na família de origem é fundamental para todos os tipos de terapia: familiar, de casal, de grupos de casais e terapia do divórcio.

    Especificidades da história transgeracional no contexto brasileiro de exclusão social e pobreza

    Bowen (1991) relata sua experiência na construção de genogramas de 24 famílias de classe média, em que foi possível retornar mais de cem anos no tempo, possibilitando às famílias uma reconstrução de seus mitos, mistificações, lembranças e opiniões. Nesse processo, cada um dos membros dessas famílias puderam se dar conta de suas heranças familiares, possibilitando um processo de autoconhecimento e de melhor compreensão de sua história. O autor considera que essa visita a nossa história e a nossos antepassados deve ser uma condição essencial no processo de formação de terapeutas familiares, tamanha é sua importância.

    É importante ressaltar aqui que a compreensão da história transgeracional de famílias em situação de pobreza e exclusão social no Brasil tem suas peculiaridades, já que as famílias são expostas a cortes entre as gerações em razão das constantes migrações em busca de condições mais favoráveis de sobrevivência, dificultando, assim, a manutenção e a transmissão de uma memória familiar através das gerações, bem como da perpetuação de seus rituais. Nossa experiência no trabalho com essas famílias nos tem mostrado que tal retorno no tempo, muitas vezes, não é possível (Penso, 2003; Penso, Costa e Almeida, 2005). Isso ocorre, principalmente, porque suas histórias foram perdidas no doloroso processo migratório sofrido, em geral, em direção ao esperado progresso que aguarda a família no Sul do país. Mesmo assim, alguma memória familiar os acompanha, independentemente de todos os cortes que foram obrigados a fazer com suas famílias de origem. A possibilidade de resgatar essa história, mesmo que de forma parcial, é que os ajudará a manter vivos seus mitos e ritos. Portanto, trabalhamos sempre na perspectiva de orientá-los a recontar a sua história da forma como lhes é possível, levando-os a compreender que as rupturas bruscas com o passado não evitam as repetições indesejáveis.

    Para esse resgate da história familiar, temos utilizado vários recursos. O mais comum, e que demonstra muita eficácia, é a visitação domiciliar. Seguimos a orientação de Brandão e Costa (2004), que indicam esse espaço de visitação como um espaço com possibilidades terapêuticas, incentivando a presença de toda a família. Percebemos o quanto é importante, para os filhos e/ou netos, escutarem dos adultos a história da família, porque, muitas vezes, essa é a primeira oportunidade para que ela seja conhecida. Nos contextos de pobreza econômica é imprescindível que invertamos a mão, ou seja, que busquemos as informações onde elas poderão ser ofertadas.

    O genograma como instrumento de avaliação, prevenção e intervenção

    A utilização do genograma para a visualização das relações familiares permite que se trace um panorama dessas relações em dois sentidos: vertical e horizontal. O modo horizontal diz respeito ao contexto atual da família; o vertical, à dimensão histórica das gerações. Ou seja, podemos compreender as relações do ponto de vista histórico, construindo uma história que revela as transições da família e as mudanças processuais e contextuais das famílias coexistentes em determinado tempo. Por outro lado, as relações dinâmicas também revelam o funcionamento, a organização, enfim, as bases do jogo relacional familiar. Os jogos afetivos sincrônicos e diacrônicos adquirem uma visualização expressiva e indubitável ao olhar aguçado de um profissional (Ceberio, 2004).

    Como instrumento de avaliação, a árvore genealógica evidencia as alianças, as coalizões, as triangulações, as hierarquias, os mandatos, as crises, a indicação de segredos, possibilitando que se faça uma leitura sistêmica da família, que envolve a estrutura e a organização desse sistema. Essa leitura permite, então, que se possa fazer uma previsão dos acontecimentos que se apresentam repetidos e que apontam para tramas e segredos ainda não desvelados. E, finalmente, o genograma tem sido largamente utilizado por muitos terapeutas de família como instrumento terapêutico, tanto em terapias de família como em terapias individuais. Isso se deve ao poder revelador das informações obtidas sobre as regras do funcionamento familiar, sobre a indicação dos conflitos e de quais membros da família estão envolvidos nesse conflito. Esses aspectos são, também, as principais pautas de conversação da maioria das terapias.

    Gostaríamos ainda de apontar a importância do uso do genograma nos projetos de formação e qualificação dos cursos de especialização em terapia conjugal e familiar, com relação a sua aplicação nos alunos, que também são profissionais, e que assim podem ampliar a abrangência da formação propriamente dita. Reconhecemos a necessidade de seu uso e de que o futuro terapeuta familiar venha a conhecer sua história transgeracional, porém percebemos que são muitas as implicações éticas que envolvem o desvelamento de conflitos de outras gerações.

    Símbolos utilizados na construção dos genogramas

    Carter e McGoldrick (1995) padronizaram alguns símbolos gráficos para facilitar a comunicação entre diferentes teóricos e terapeutas sobre as informações reunidas no genograma. Apresentamos abaixo uma compilação dos símbolos que têm sido mais utilizados. Isso não significa que, em função da especificidade de cada família ou de cada problemática, novos símbolos não possam ser criados.

    Finalmente, queremos enfatizar que o uso do genograma é uma consequência da decisão de privilegiar a dimensão transgeracional, de buscar conhecer como as histórias familiares se repetem e como cada geração tem sua responsabilidade tanto nessa repetição como na transformação das delegações. O genograma nos ajuda na conscientização do poder de nossos antepassados sobre nós.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS¹

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    Preto, N. G. (1989). Transformações do sistema familiar na adolescência. In: Carter, B.; McGoldrick, M. (orgs.). As mudanças no ciclo de vida familiar. 2. ed. Trad. M. A. V. Veronese. Porto Alegre: Artmed, 1995, p. 223-47.

    Rosa, A. J. Mitos familiares e saúde mental pública: estudo de caso de uma paciente psicótica e da relação de sua família com a instituição de assistência. Perfil, 10 (Suplemento), 1997, p. 79-90.

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    Watzlawick, P.; Beavin, J. H.; Jackson, D. D. (1967). Pragmática da comunicação humana. Trad. A. Cabral. São Paulo: Cultrix, 1981.

    1. Ao longo deste livro, o ano entre parênteses em algumas referências indica a data de publicação da edição original.

    2. Um olhar antropológico sobre o eu e a transgeracionalidade

    TÂNIA MARA CAMPOS DE ALMEIDA

    Durante muito tempo, a antropologia dedicou-se a recompor genogramas e árvores genealógicas dos grupos estudados, buscando compreender melhor as relações sociais, políticas e econômicas entre as pessoas em foco, bem como apreender assim as culturas aí manifestas ou mesmo um horizonte universal humano entre elas. Por meio de inúmeras etnografias, hoje clássicas, pudemos acompanhar a reconstrução de longos trajetos de gerações ancestrais e daquelas mais recentes no seio de várias sociedades, aproximando-nos dos modos de reprodução fundantes de suas organizações, sociabilidades, regras de direitos e deveres.

    Como sua atenção inicial se centrou nos povos à margem do processo de produção capitalista e da simbólica da modernidade, dentre eles, os aborígines australianos, os melanésios, as tribos africanas e os diversos indígenas das Américas, a chamada antropologia do parentesco rapidamente se desenvolveu e ganhou um lugar central na disciplina. Para identificar o ethos e a visão de mundo desses povos, os estudiosos necessariamente deveriam entrar pela porta das complexas teias que envolviam suas relações familiares em perspectiva diacrônica e sincrônica.

    Afinal, nessas sociedades, o parentesco estruturava toda a vida individual, coletiva, doméstica e pública. Juntamente com a religião, que era a forma de conhecimento por excelência, ambos instauravam, exprimiam e orquestravam tanto o eu quanto o seu meio. Haja vista que a noção e a representação de pessoa eram completamente calcadas no personagem dramático que o indivíduo desempenhava na esfera coletiva ou no seu papel social. Por isso, era absolutamente necessário trilhar o caminho que possibilitasse refazer o emaranhado feixe de relações que arquitetavam uma construção aberta e plural do eu existencial e moral, assim definido apenas em permanente contiguidade com os seus outros.

    Para nós, bons herdeiros do Iluminismo e orgulhosos de nos enxergarmos no centro do mundo, é difícil dar-nos conta do abismo simbólico que nos separa dos povos ditos pré-modernos, bem como de seguirmos as lógicas subjacentes a essas peculiaridades tão marcantes de nossa alteridade e com elas aprendermos sobre nós mesmos. No entanto, esforçar-me-ei aqui em precisar alguns pontos desse debate, tornando-o fecundo para a ampliação de conhecimentos sobre o si mesmo entre nós. Em seguida, procurarei contribuir com algumas novas reflexões sobre a ideia de transgeracionalidade em nossa sociedade, rompendo com a hegemonia de modelos biologicizantes e inspirados em um padrão burguês de família nuclear. Por fim, sempre lançando mão de saberes antropológicos e de uma perspectiva relativizadora, indicarei elementos importantes para o aprofundamento da interlocução nesse campo com teorias psicológicas,

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