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Azulejos Pretos
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E-book226 páginas2 horas

Azulejos Pretos

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Sobre este e-book

«A porta é preta, a retrete é preta, o tampo é preto, o papel higiénico é preto.» É este o cenário do romance de uma noite de reencontros, surpresas inóspitas, acidentes sulfúricos e de memórias revisitadas. Numa Lisboa fora de horas e fora de sítio, entre a arte e a vida, o tempo e a memória, a porta abre-se e, na casa de banho preta, entram e ajoelham-se modelos de vestido preto e justo, poetas, dealers, criativos, gestores, artistas, até um padre. Figuras reais da noite de Lisboa.

Roman à clef? Também. Mas Azulejos Pretos espelha e reinventa, sobretudo, um vivo e excitado universo politicamente incorrecto de decepção, frustração e raiva: vidas pelo cano abaixo. Pode esta Lisboa a roçar-se pela tragédia ter ainda a esperança de uma redenção?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de dez. de 2020
ISBN9789897025990
Azulejos Pretos
Autor

Pedro Bidarra

Pedro Bidarra teve muitos chapéus. Nasceu em Lisboa, estudou Psicologia e Música, trabalhou como pianista, produtor, psicólogo, publicitário, colunista e consultor de empresas. é autor do romance Rolando Teixo e do argumento da série A Criação. Vive em Lisboa, ocasionalmente.

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    Azulejos Pretos - Pedro Bidarra

    Capa.jpg

    Azulejos Pretos

    Pedro Bidarra

    Título: Azulejos Pretos

    Autor: Pedro Bidarra

    © Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda., 2020

    Reservados todos os direitos

    A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

    Revisão: Inês Castelhano

    Design: Ilídio J.B. Vasco

    Fotografia do Autor: Graça Castanheira

    Isbn: 978-989-702-599-0

    Guerra e Paz, Editores, Lda.

    R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.

    1150­-105 Lisboa

    Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489

    E­-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt

    www.guerraepaz.pt

    Se não fores pássaro, tem cuidado para não acampares à beira de um abismo.

    Nietzsche

    Índice

    Tudo preto

    Moro aqui

    Carvão dos Himalaias

    Fuck art, let’s dance

    Mijo de padre

    Vulva vitruviana

    Kallipygos

    Tanta tralha

    Kallipygos (II)

    O algoritmo

    A hipótese Einstein­-Rosen

    0

    Tudo preto

    A porta é preta, a retrete é preta, o tampo é preto, o papel higiénico é preto. A luz vinda dos focos embutidos no tecto reflecte­-se com suavidade no azulejo preto que forra as paredes. O mosaico que cobre o chão também é preto. Foi tudo muito bem conseguido. O preto nunca cansa.

    Batem à porta com insistência, tentando convencer­-me a sair. Mas eu não saio. E já fiz saber que tenho condições, dois pedidos perfeitamente razoáveis – nada daquele enredo habitual com aviões, helicópteros e transferências de dinheiro para contas numeradas. Apenas duas gramas de coca, duas gramitas da boa, que farão o favor de passar por debaixo da porta. Simples.

    A Beatriz também é simples, embora à maneira dos deuses. Tem 20 e poucos anos e um corpo feito de acordo com o número. Não a medi, mas intuo a razão mágica com as mãos. As mamas são firmes, o cabelo é longo, negro, indomado, livre e fluido como algas no mar. A cara parece desenhada em Itália durante o Renascimento tardio ou já no Barroco. Lembra uma daquelas putas que o Caravaggio fez santas e madonas: sensualidade, comiseração, decote generoso, lábios entreabertos, grossos, lisos, da cor de rosas viçosas, húmidos, eloquentes no pedido que fazem para ser abocanhados. Tem um vestido preto e justo e umas sandálias de tiras pelas pernas acima, como se tivesse feito todo o caminho da Antiguidade até ao meu colo. Está sorridente, feliz e agora exausta. Imagino­-a também cheia de MDMA ou K, pois que outra razão teria para me olhar com tanta sôfrega paixão como se eu fosse a encarnação do amor?

    Do outro lado, as vozes falam em chamar a polícia, sugestão que o dono da festa, pessoa de reputação na cidade, rejeitou de imediato, para evitar falatórios. Já ameaçaram arrombar a porta, mas eu disse­-lhes que a Beatriz estava pendurada no cabide (que também é preto) e que qualquer tentativa de o fazer magoá­-la­-ia severamente. É mentira. Ela está cá em baixo, sentada em cima de mim, como se eu fosse o pedestal e ela a estátua viva de uma deusa antiga. Ainda estamos pegados. Eu dentro dela. É bom. É quente. Acabámos de dar uma belíssima e improvável foda, e foi a sonora exaltação e os amassos contra a porta que os fez acreditar que ela estava pendurada no cabide.

    Imploram­-me razoabilidade. Razoabilidade. Talvez, se razoabilidade fosse matéria escolar, se a tivesse aprendido quando aprendi a ler, a escrever e a tabuada, se os professores prescrevessem razoabilidade como trabalho de casa, talvez… Mas nunca aprendi. Não saio. Vou ficar por aqui e deixar­-me cair no negro. Vou potenciar toda a energia negativa até conseguir ultrapassar o horizonte dos eventos do costume, a fronteira para além da qual as normas, as convenções, o bom senso, a razoabilidade, as leis, tudo colapsa; e depois deixo­-me ir pelo buraco até sair do outro lado. É este o meu plano.

    E que é que há do outro lado? O Hades? O Tártaro? Fornalhas quânticas atiçadas por diabos vermelhos com queimaduras de terceiro grau? Adamastores e cães danados? Fúrias inclementes a fustigar pecadores? Uma matriz de zeros e uns? Big bangs? Nada? Ninguém sabe a certo. Apesar do muito que já foi escrito e proclamado, apesar de séculos gastos em mirabolantes conjecturas, dos dogmas postulados, dos credos inculcados, das religiões, cerimoniais e perseguições sobre eles inventados, no fim, ninguém sabe ao certo. Ninguém viu. O negro é negro e de lá não vem luz. Mas eu tenho fé. Tenho fé na hipótese de Einstein e Rosen; tenho fé e acredito na ciência e na matemática de que o verso de um buraco negro seja um buraco branco onde tudo recomeça.

    You may find yourself living in a shotgun shack

    And you may find yourself in another part of the world

    And you may find yourself behind the wheel of a large automobile

    You may find yourself in a beautiful house, with a beautiful wife

    You may ask yourself, «Well, how did I get here?»

    Talking Heads, «Once in a Lifetime», Remain in Light

    1

    Moro aqui

    Tínhamos sido apresentados há pouco mais de um minuto e já estávamos os dois na casa de banho. O tipo parecia porreiro. Era bonito, grande, estava em boa forma e tinha um daqueles sorrisos novos, simpáticos e muito brancos. Também era um bocado parvo, mas era uma parvoíce natural, sem maldade. Falava disto e daquilo, por onde viajava, onde tinha passado férias, os restaurantes que frequentava, os concertos a que tinha assistido, quem conhecia – o género de coisas que gostamos de contar uns aos outros para nos darmos a conhecer. Ao contrário das gentes do Norte – que habitualmente se definem pelo trabalho que fazem e pelas funções que ocupam –, nós, cá pelo Sul, definimo­-nos quase sempre pelo lazer, pelo modo vistoso, exuberante e até elaborado como não trabalhamos. Ele falava de Nova Iorque, LA, Londres, Paris, São Petersburgo, de quem conhecera aqui e ali, nomes que deixava cair como se eu soubesse de quem se tratava. Fazíamos exercícios de contorcionismo para arranjar posição no cubículo, quando ele acocorou o seu metro e noventa em frente à retrete, baixou o tampo preto e declarou, peremptório:

    – Tu não tens aspecto de criativo.

    Fingi não perceber a observação. Parecia a melhor solução. Devia ter respondido como o fiz no fim da conversa, mas nunca fui rápido, sobretudo com desconhecidos. Tendo a matutar nas coisas tempo demais e no fim, quando vou para responder, já não está lá ninguém. Ele voltou ao assunto:

    – É isso, meu, não tens aspecto de criativo.

    Haverá aspecto de criativo, algum tipo de aparência que consubstancie a qualidade da criação, da invenção, do humor, ou mesmo da produção artística? Terá o talento aspecto físico? Haverá no ADN algum protocolo artístico que fará o artista ter físico e cara de artista? «Olha, este aqui saiu com corpo de artista, põe­-mo ali nos artistas, se fazes favor.», diz o Criador aos ajudantes. Ou será apenas uma questão de dress code?

    – Achas? – retorqui, enquanto ele manipulava um cartão de crédito contra os teimosos torrões brancos com a destreza de um samurai.

    Lembrei­-me dos fatos de risca de giz que usam banqueiros, advogados caros e homens de negócios. Sempre gostei de fatos de risca de giz. Não sendo banqueiro nem homem de negócios – nem homem, de acordo com a minha mulher –, ainda assim, tenho um fato de risca de giz que raramente uso. Mas gosto dele, gosto da elegância ordenada das riscas paralelas. Não admira que os bandidos de colarinho se camuflem em fatos de risca de giz. Também gosto de camisas brancas. E de gravatas. Infelizmente, não tenho grande ocasião para as usar. Mas nesta noite e nesta festa, não era fato de risca de giz nem camisa branca que eu vestia. Vestia umas calças de ganga pretas, uns Adidas coloridos e uma t­-shirt cinzenta onde se lia «Warning: I Say Dumb Things». Ainda assim, para o meu companheiro de cubículo de casa de banho, não tinha aspecto de criativo. Seria a forma da minha cabeça? Talvez as minhas características frenológicas não fossem indiciantes de qualidade artística. Ou talvez a culpa fosse do meu abrutalhado metro e oitenta e dos meus modos falhos daquela emasculada afectação, hoje tão em voga nos meios artísticos e nas letras. Ou talvez ele fosse apenas parvo.

    – Sabes que «criativo» é um adjectivo? – perguntei­-lhe, retoricamente. Ele não ouviu. A pergunta foi abafada por sons sôfregos e fricativos produzidos nas fossas nasais.

    O tipo tinha­-me sido apresentado por um autodenominado criativo, um dos muitos adjectivos que frequenta esta festa. Passei­-os em revista à procura de padrões: Nike, NB, Adidas coloridos e t­-shirts a dizer coisas eram denominadores comuns. Havia, em cada um, uma pose cuidada para parecer convencionalmente diferente, para dar nas vistas sem ofender; uma originalidade confortável que se manifestava não em obra, mas em gestos e detalhes. Uns pavões que nunca tinham produzido um pensamento original a não ser sobre eles próprios. A obra deles era uma pose, apenas um élan. Eu também tinha Adidas coloridos e uma t­-shirt a dizer coisas, mas eu era, tristemente, falho de élan.

    Que raio de pessoa descreve a sua profissão com um adjectivo? Para além dos ditos criativos, apenas artistas o usam para descrever o que os ocupa; mas, ao contrário de «criativo», outrora um adjectivo nobre hoje usado substantivamente, «artista» nasceu substantivo até ter sido promovido, depois de séculos e gerações a produzir beleza – embora tenha voltado a ser usado sem pudor para descrever uma ocupação e um estilo de vida. O epíteto devia ser uma generosidade alheia oferecida como regalo por quem aprecia e percebe, «Aquele indivíduo é artista, assim o diz a sua obra», nunca uma autoproclamação. Até porque não devia ser possível dizer bom artista ou mau artista; como não devia haver bom e mau criativo; como não há o bom belo ou o mau belo.

    – Ya, tu não tens aspecto de criativo – declarou outra vez o meu companheiro, levantando a cabeça da retrete.

    Começava a soar a disco riscado. Dei­-lhe um ligeiro empurrão nas costas com o joelho, uma inadvertência plenamente desculpada pela exiguidade do espaço. Ele desequilibrou­-se, mas não o suficiente para que a agulha mudasse de estria.

    – Ya, não tens aspecto de criativo.

    – Visto daqui, também não tens aspecto de médico – disse­-lhe, de cima para baixo, enquanto ele praticamente lambia o tampo da retrete.

    – Touché – disse o gajo. Ainda sim, voltou à vaca­-fria.

    – Mas isso não altera o facto que…

    – Não tenho aspecto de criativo.

    – Ya – disse, levantando­-se. – Importas­-te de ficar aqui, que eu vou chamar a Olga? – perguntou e saiu.

    A Olga era a modelo russa de ar frio e expressão sensualmente bovina com quem ele tinha chegado à festa. Enquanto esperava, acocorei­-me. Era a minha vez.

    Ainda não tinha acabado de lamber o dedo com que limpara os restos do tampo da retrete, quando a porta se abriu para deixar entrar a Olga fria e uma amiga. A avaliar pelas medidas e pelo cuidado bom gosto com que as não disfarçavam, eram colegas de profissão: dois belíssimos adjectivos.

    – Hi, I was told you have something for us – disse a Olga fria com um sotaque lubricamente eslavo.

    Levantei­-me para as beijar respeitosamente e para me apresentar. Os movimentos não eram fáceis, mas eram muitíssimo agradáveis. Disse o meu nome e disse­-lhes que o something não era meu, mas que de bom grado faria as honras da casa. Deixei­-me ficar. De repente, o cubículo da retrete pareceu­-me ter uma volumetria perfeita para os três. Acocorei­-me de novo.

    – So, what do you do? – perguntou­-me a Olga fria com o tal sotaque que tinia na zona pélvica.

    E agora? Não ia dizer que era criativo. Primeiro, porque nunca dizia, depois, porque me sentia inseguro com a afirmação do nosso amigo comum; e soava ridículo em inglês. Pensei em dizer­-me writer, imaginando que elas achariam o máximo. Mas lembrei­-me que também este nome havia sofrido uma evolução. Já não é escritor quem ganha a vida a alinhar palavras umas atrás das outras em jornais, revistas ou mesmo livros, mas apenas aqueles a quem a comissão de atribuição do título confere a graça – uma vez cumpridos esotéricos critérios de pertença que assentam na observação de um irritante conjunto de convenções e tiques verbais, por exemplo, a utilização de termos incomuns na língua falada: «jucundas» em vez de «agradáveis», que era o que aquelas duas russas eram, ou «túmida» em vez de «inchada» ou «grossa», que era como a minha língua estava a ficar.

    Não disse writer. Ainda me perguntavam quantos livros tinha escrito e eu teria de mentir ou dizer que apenas escrevia copy e a avulsa coluna de jornal. Podia dizer­-me publicitário, o que me aproximaria do métier delas – haveria qualquer coisa em comum e teríamos do que falar se se desse o caso, cada vez mais improvável, de a minha língua se soltar –, mas pareceu­-me pouco, apenas publicitário. E elas poderiam perguntar­-me que anúncios tinha feito, e eu gaguejaria ou diria, se não quisesse mentir, «Aquele anúncio para a MultiOpticas com o Júlio Isidro, sabes?». Assim não iria longe. Resolvi eufemizar.

    – I make people happy – disse, apontando para o tampo da retrete onde estava cuidadosamente alinhado branco no preto o resultado do meu labor. Elas riram e o riso delas voltou a ressoar na pélvis. Tudo ressoava na pélvis.

    Pus­-me de pé e, por um momento, ficámos os três pegados uns contra os outros numa quente e sensual imobilidade. Afinal o Céu é na Terra, o Céu é onde um homem quiser, até numa casa de banho preta com pouco mais de um par de metros quadrados. E a situação, que eu julgava não poder melhorar, melhorou quando tivemos de nos contorcer e esfregar uns nos outros para trocar de posição e deixar a Olga fria ajoelhar­-se em frente à retrete. Fiquei espalmado contra a amiga sorridente.

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