Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

VESTÍGIOS: Mortes nem um pouco naturais
VESTÍGIOS: Mortes nem um pouco naturais
VESTÍGIOS: Mortes nem um pouco naturais
E-book256 páginas3 horas

VESTÍGIOS: Mortes nem um pouco naturais

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

VESTÍGIOS – MORTE NEM UM POUCO NATURAIS, thriller político de Sandra Abrano, tem como cenário a cidade de São Paulo no período de 1976 aos primeiros anos de 2000, apresentando o submundo do serviço secreto brasileiro. Na trama, um agente do Sistema de Informações retorna depois de duas décadas ao bairro paulistano de sua juventude, para administrar uma empresa de segurança, reencontra seu passado e, de algoz, corre o risco de tornar-se vítima de suas lembranças.

"O Brasil não é para amadores, já dizia Tom Jobim, e Sandra Abrano sabe muito bem disso", afirma Daniel Brazil, roteirista e escritor, que assina a orelha do livro. "No romance Vestígios ela retrata os desvios, as manobras políticas, a impunidade dos agentes da ditadura e a globalização da corrupção, sem cair no didatismo e sem abrir mão de instigar a curiosidade do leitor", completa ele. "Personagens reais entremeiam-se com personagens ficcionais sem provocar dissonâncias. A ação se inicia na Vila Maria, em São Paulo, e se desdobra até a Bolívia, uma vez que os tentáculos do crime são hoje globalizados."

Ainda nas palavras de Daniel Brazil, "Sandra Abrano faz parte do seleto time de escritores paulistas contemporâneos cujas palavras exalam o cheiro das ruas, picham os muros da ascensão social, reverberam o ruído de fundo da megalópole. Seu cenário não é a favela nem a cobertura de luxo, mas o caótico cosmo que se esparrama entre estes extremos."

"A conversão do conhecimento histórico em matéria ficcional deve ser louvada – com um adendo", nos diz em sua resenha o jornalista, crítico literário e escritor Sérgio Tavares. "Vestígios, numa de suas múltiplas facetas, explora o submundo do Serviço Secreto do Exército Brasileiro, como (pelo menos no conhecimento deste resenhista) só havia sido descrito com tamanha veracidade em livros de não ficção."

A autora é editora, escritora. Tem publicado em coautoria livros de apoio didático e HQs.

Em 2015 teve A morte de cada um distinguido no Concurso de Contos Paulo Leminski (PR) e publicado na coletânea do prêmio. Também é autora de Fui para o Piauí (2016, relato de viagem).

Em 2017, Vestígios foi um dos pré-selecionados do prêmio Sesc de Literatura – romance e também finalista no 1o Edital de Publicação de Livros - Prefeitura Municipal de São Paulo, 2017. Em 2018, foi finalista do prêmio ABERST, categoria romance policial.

Escreve no Rastro de Histórias, no Bandeirola Literária e no https://sandra-abrano.medium.com/
@SandraAbrano nas redes sociais.
IdiomaPortuguês
EditoraBandeirola
Data de lançamento20 de jan. de 2021
ISBN9786586809039
VESTÍGIOS: Mortes nem um pouco naturais

Relacionado a VESTÍGIOS

Ebooks relacionados

Filmes de suspense para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de VESTÍGIOS

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    VESTÍGIOS - Sandra Abrano

    ANTECEDENTES

    Vila Maria — 1976

    Meu irmão Francisco apareceu na paróquia, esgotado, desesperado. Cuidei dele como pude, dei-lhe roupas limpas. Conseguiu por milagre fugir do cerco. Ele nem ao menos sabia se os outros tiveram a mesma sorte.

    Estava marcado. Sem escapatória.

    Na época eu era próximo do delegado Vantuir. Muito católico, fazia questão que eu rezasse em sua residência uma vez por mês, sempre na primeira sexta-feira. Pedi ajuda e ele conversou com Francisco. Depois me disse que havia um homem que poderia salvar meu irmão.

    E o homem veio. Estatura acima da média, barba por fazer, cabelo comprido como era a moda na época, voz poderosa e anasalada. Não sorria nem me amedrontava. Disse que o delegado pediu, e ele ajudaria. Eu ficaria lhe devendo uma. Meu irmão foi embora com ele sem nada perguntar. Abraçou-me na despedida, um abraço de menino.

    O homem retornou uns dez dias depois. Disse que Francisco estava bem. Ajudou-o a conseguir documentos falsos e levou-o pessoalmente à fronteira. Disse também que meu irmão enviaria cartões-postais do exterior quando estivesse instalado.

    Ele quis se confessar, e quem sou eu para estranhar esse desejo. Não posso relatar o que ouvi em confissão, porém, antes de começar, contou que certa vez sentiu-se ligado a uma terrorista, uma mulher perigosa e sua prisioneira. Ela era inteligente, determinada e destemida; como não se apaixonar. Recebeu ordens de matá-la. Um agente nunca matava sozinho um prisioneiro. Dois a quatro atiravam ao mesmo tempo. Todos tinham de atirar. Se um não atirasse, morria. Ele atirou. Com os outros, mas atirou.

    Aquele fato lhe pesava e queria confessar não a morte dessa mulher, essa ele carregaria como sua. Confessaria as outras. Matar era seu dever na época.

    Por um bom tempo, não mais o vi. Do meu irmão, cartões-postais enviados da Bolívia, do Peru, do México e dos Estados Unidos. Neles, apenas Obrigado e Saudades.

    Três ou quatro anos se passaram. Certo dia, o homem voltou dizendo que havia chegado o momento de eu lhe retribuir o favor. Afirmou que corria perigo e não havia nada que alguém pudesse fazer para mudar seu destino. Contou que seu maior medo não era morrer, mas ter o corpo abandonado, indigente. Ele me pediu que tivesse a alma encomendada. Cremado. Queria garantir que fosse cremado.

    Como eu posso ajudar? Eu repetia a cada pausa do homem, não para oferecer apoio, mas registrando minha limitação, pequenez e covardia.

    O homem disse que não pediria muito. Pousou a mão em meu ombro, talvez para me tranquilizar. Senti o gesto como se depositasse um peso, o maior do mundo, maior que a minha dívida com ele.

    O homem disse que eu deveria apenas reconhecer seu corpo, indicar quem ele era para a polícia. Eu iria entender, depois.

    E quem é você? perguntei.

    E soube que ele era um sargento do Exército, José de Sousa Amaral, conhecido como sargento Amaral e também como Ivan. Orientou-me a contar quase toda a verdade: que o conheci na paróquia e, de tempos em tempos, aparecia na igreja. Não conte a ninguém que eu me confessei. Jamais conte isso. Diga que eu estive hoje aqui e assisti à missa pela memória de minha mãe, Maria Aparecida. Pediu que rezasse pelos que foram mortos por ele. Reze também pelos que deixei vivos, padre.

    E o homem foi embora deixando um tanto de dinheiro para as despesas da missa. Eu fiquei sem entender nada e estava muito amedrontado. Então, celebrei a missa do dia.

    A paróquia da Vila Maria foi construída na encosta de um morro, de modo que a cruz estilizada da fachada fosse vista por um longo trecho plano da avenida que nela terminava. Os degraus da escadaria da igreja levavam a uma construção em forma de gruta, durante toda a noite iluminada com lâmpadas dirigidas às imagens.

    Noite terminada, antes de o movimento da avenida se intensificar, diariamente eu seguia até a gruta para apagar as luzes e ficava por ali alguns minutos agradecendo por mais uma alvorada.

    Na manhã seguinte ao dia em que o sargento Amaral me procurou, refiz o caminho até a gruta, naquele momento esquecido da conversa que tivemos. O sol nascia e a avenida ainda estava calma, com raros veículos indo em direção à Vila Maria Alta e dela descendo. Um carro me chamou a atenção pela freada brusca. Vi a porta dele se abrir e, com o veículo ainda em movimento, de lá ser jogado um homem. O carro fez uma manobra violenta e seguiu pela pista oposta a toda a velocidade.

    Desci correndo a escadaria da igreja em direção ao homem caído no asfalto. Ao me aproximar, entendi. Fiquei diante dele não sei por quanto tempo, paralisado, braços abertos, olhos para o céu que se iluminava, descrente da cena que nunca mais poderia esquecer.

    Era o sargento estendido no asfalto. Eu reconheci seu corpo esguio, reconheci suas roupas, as mesmas que usava em nosso encontro no dia anterior. O que mais eu poderia enxergar naquela cena infernal? Vi o sargento Amaral morto. Chegaram as primeiras pessoas e fecharam um círculo em torno dele. Colocaram jornais para cobri-lo. Foi rápido. A polícia, o delegado Vantuir, a retirada do corpo. Meu nome como testemunha dos fatos, dos improváveis fatos descritos no boletim de ocorrência: atropelamento seguido de fuga.

    Ainda pude escutar os cochichos dos policiais na cena, cabeça e maxilar arrebentados pelo que pareciam ser golpes de machado.

    Uma morte dessas deixa vestígios.

    Brasília — 1977

    Mais um general presidente, desta vez um dos líderes da ala militar moderada, sucedeu a um considerado de linha-dura e iniciou-se um período de abertura política, lenta e gradual. Bem lenta e bem gradual. Setores importantes do poder discordavam dessa mudança de rumo. A comunidade de informações era um desses setores. Os que sempre foram cães de guarda ameaçavam voltar-se contra seus donos. Uma temeridade. Um perigo.

    oOo

    O ministro-chefe da Casa Civil retornou a seu gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto após uma reunião sigilosa convocada pelo Presidente, na qual também estava presente o chefe do Serviço Nacional de Informações.

    Dona Cidinha bem pensou repassar com ele a agenda do dia, porém, o semblante carregado indicava que o melhor era lhe levar uma jarra com água gelada. Ela fez para Heitor, chefe de gabinete, um sinal de preocupação a fim de alertá-lo do clima antes que ele entrasse na sala.

    O terno sóbrio e alinhado do ministro-chefe da Casa Civil não escondia a postura de quem sempre vestiu farda. O ambiente do escritório combinava com a sobriedade do ocupante. Lambris de madeira em tom mais escuro do que o da longa escrivaninha e dos armários. Papéis em branco organizados no canto esquerdo e, ao centro, caneta em pé no suporte caprichado ao lado de papeizinhos para anotações rápidas junto ao calendário, aos óculos e à agenda. Algumas pastas de arquivo no canto direito. Maleta tipo zero zero sete com segredo apoiada em um armário baixo atrás da poltrona giratória e reclinável, naquele momento vazia porque o ministro enchia o copo com a água gelada trazida por dona Cidinha.

    Logo ao entrar na sala Heitor foi informado que no início da manhã do dia seguinte, feriado de Nossa Senhora Aparecida, o ministro do Exército seria demitido pelo Presidente.

    Ao ouvir a notícia, o chefe de gabinete deixou-se sentar na poltrona em frente à escrivaninha, bloco e caneta soltos no colo, postura de corpo abandonada, diferente de seu costume sempre a postos às necessidades do ministro-chefe.

    A situação foi classificada como perigosíssima tanto pelo superior quanto pelo subordinado. A demissão não era esperada e nem foi uma completa surpresa. Algo assim contraditório combinava com a independência, que até parecia desfeita, de algumas atitudes do ministro do Exército às solicitações do Presidente.

    O ministro do Exército resistiria à demissão como digno representante da linha-dura dos militares, além de pretendente à próxima sucessão presidencial. Cuidado redobrado. Era o que achava o ministro da Casa Civil, ainda mais sabendo que durante o feriado o Alto Comando do Exército chegaria a Brasília para uma reunião. O demitido tentaria cooptá-los, tentaria ali, na chegada dos militares ao aeroporto, articular um golpe.

    E o lado estrategista do ministro-chefe se fez presente quando ele solicitou ao chefe de gabinete que enviasse assessores do Planalto para receber os generais do Alto Comando. E mais:

    — Use de influência para chegar aos responsáveis pelos depósitos de armamentos, que devem permanecer fechados durante o feriado — foi a ordem.

    — Mais alguma orientação? — perguntou o chefe de gabinete, agora calmo ao perceber a agilidade com que o ministro barrava os possíveis passos do general ministro do Exército em direção a um golpe. Perigoso o futuro ex-ministro era, mas quem poderia frente à agilidade ardilosa do ministro-chefe?

    — Sim — respondeu o ministro. — Temos homens infiltrados no serviço secreto do Exército?

    — Sem dúvida — respondeu o chefe de gabinete.

    — Alerte-os.

    oOo

    Como sempre, o feriado dedicado a Nossa Senhora Aparecida foi marcado por procissões e missas em todo o Brasil. Caravanas não paravam de chegar à Basílica de Aparecida, em São Paulo, onde missas aconteciam sem intervalos desde a alvorada. Milhares de fiéis prestavam homenagens e cumpriam promessas à Santa Padroeira. Grupos de moçambiques, congadas, guardas de Nossa Senhora e as Congregações de Maria seguiam em cortejo cantando as ladainhas e os versos de improviso. Fé.

    Já Brasília mantinha-se, como em qualquer outro feriado, vazia em seu centro de poder. A Esplanada dos Ministérios, a Câmara dos Deputados e o Senado contavam apenas com a presença das equipes de segurança. Seus ocupantes eleitos ou indicados, para lá não foram durante os últimos dias, encompridando em seus estados de origem a semana que culminaria no feriado.

    Brasília estava às moscas.

    Menos o aeroporto, onde certo frisson agitava o desembarque de passageiros. Ali, o ministro do Exército há pouco demitido, o homem da linha-dura, tentava convencer os generais que chegavam ao Distrito Federal a acompanhá-lo ao Ministério do Exército para esboçar uma reação a sua demissão.

    Situação constrangedora.

    Como bem tinha previsto o ministro-chefe da Casa Civil, a hierarquia falou mais alto e os generais se dirigiram ao Palácio do Planalto em companhia dos assessores que foram recepcioná-los.

    O ministro demitido viu ruírem suas esperanças de dar a volta por cima. Seguiu para o Comando Militar do Planalto, dirigiu-se ao último andar do prédio, sede do serviço secreto do Exército para despedir-se daqueles que considerava seus subordinados mais fiéis.

    — General, estávamos esperando pelo senhor — assim foi recebido. A agitação tomava conta do lugar. — Não podemos permitir a desestabilização.

    O ex-ministro do Exército reencontrou seus homens de confiança, os agentes do serviço secreto do Exército diligentemente se preparando para a resistência. Seus escudeiros na cruzada anticomunista aguardavam as ordens. — Trezentos coquetéis molotovs estão prontos — ficou sabendo o general — e são suficientes para um ataque ao Palácio do Planalto.

    Comovido, dirigiu-se a seus homens, agora paralisados ao escutá-lo em um discurso que não parecia o que antecede a uma batalha. E se disse vítima das maldosas e cotidianas campanhas de descrédito.

    — Querem nos apresentar como bestiais torturadores. Querem nos desmoralizar perante a nação, mas tenho certeza de que ainda seremos reconhecidos pela árdua missão que tivemos de cumprir, a despeito das incompreensões, das calúnias e da perfídia.

    Foi ovacionado.

    Naquele momento, o general tinha outra certeza. Sem o apoio do Estado-maior, sem o apoio de outros generais, a batalha estava perdida. Fazia gestos para acalmar os homens inflamados e armados.

    Não via outra saída senão afirmar:

    — Não é agora. Devemos aguardar. Peço que aguardem. Não estamos capitulando, que fique bem claro. Devemos aguardar, é o que peço a vocês.

    O general telefonou, então, para o Palácio do Planalto a fim de negociar os termos de sua rendição. Não reparou que num canto, em local discreto, outra chamada telefônica era realizada, esta para o quarto andar do Planalto.

    OS PROTAGONISTAS

    Padre Alípio

    Padre Alípio, homem magro de corpo alongado, um tipo de chamar a atenção tanto quanto seu nariz aquilino. Voz metálica, não precisava de microfone para comandar a missa, mas o usava em alto e bom som gravando na mente dos fiéis palavras de pouco conforto, incomodando a cada respiração que, o padre fazia questão, era longa.

    Responsável pela missa dos jovens, todos os domingos às onze da manhã contava sempre com a casa cheia. Fazia seus sermões associando-os à leitura diária dos jornais e ao que observava ao redor. E, assim, padre Alípio prendia ainda mais a atenção de todos, terminando a preleção com uma frase que espiava o mal do mundo, frase que elevava a moral dos meninos.

    Como o padre sempre afirmava: o fim tem de ser feliz.

    oOo

    Sendo o mais velho de cinco irmãos, acolheu o caminho que lhe cabia desde o nascimento — promessa feita pela mãe que o primogênito fosse padre. A menina, nascida dez meses depois, naturalmente seguiria para o casamento e, enquanto isso, ajudaria a cuidar dos irmãos menores. Ao terceiro filho a mãe reservou os estudos, ao quarto filho, o comércio, e ao caçula, sortudo, a mãe o chamou de Francisco e o deixou à própria sorte.

    Padre Alípio abraçou seu destino sem nenhuma revolta e com alguma saudade; afastado da família ainda menino, passava o ano letivo no seminário. O retorno à casa paterna, apenas nas férias, marcava sua chegada como um grande acontecimento familiar. Era recebido com orgulho pelos pais e como herói pelos irmãos, que queriam saber da vida distante do olhar rigoroso da mãe, como se apenas esse fato garantisse um sem-número de aventuras em local misterioso — o seminário — na imaginação dos irmãos menores. Contava a eles, então, das horas de estudo, da obrigação de arrumar a cama, cuidar das roupas, engraxar os sapatos, manter-se limpo e com os pertences organizados. Contava das brincadeiras dos colegas sempre dispostos a alguma humilhação alheia e como isso os divertia.

    As férias acabavam, e ele retornava ao seminário triste com a despedida dos seus. Com o passar dos anos, os sentimentos do jovem noviço mudaram. Tornou-se um estranho em casa, um incômodo irmão mais velho com roupas esquisitas que logo a sua chegada tratava de substituir pelas calças compridas e camisas emprestadas dos irmãos. As inevitáveis conversas a respeito de namoradas e sexo o constrangiam. Adorava as sessões de cinema e fugia dos bailes. Voltar ao seminário passou a ser um alívio.

    Ordenado há tantos anos, ficou os primeiros cinco em uma igreja do interior paulista. O pároco a quem era subordinado o fazia viajar constantemente pelas capelas da região. Ministrava missas, ouvia confissões, participava das festas de fé, benzia bezerros, crianças, carros, carroças e casas.

    Padre Alípio viu-se feliz quando soube de sua transferência para a cidade de São Paulo. Desde então, na paróquia da Vila Maria, sentia-se como se ali tivesse nascido. E, em todo esse tempo, Padre Alípio guardava um único arrependimento. Um enorme arrependimento.

    José Carlos

    Muita novidade em um livro tão pequeno. Como pode um livro começar assim? José Carlos pensou, mantendo-se desentendido. Primeiro parágrafo, primeira linha:

    Caralho. Caralho, caralho, caralho.

    E seguia:

    Buceta. Buceta peluda, quente, cheirosa. Buceta de putinha.

    Aristeu lhe comprara aquele livro. José Carlos nunca tinha entrado em uma livraria até que Aristeu o levou. Perdeu-se entre as prateleiras, passando a ponta dos dedos pelas lombadas sem saber qual livro escolher. Era aniversário de José Carlos e o presente foi visitar uma livraria, almoçar em restaurante e não em balcão de boteco ou padaria; fast-food não passava pela cabeça de Aristeu. Para terminar, comer um doce de doceria.

    — Coisa de menina — José Carlos logo foi dizendo como resposta ao convite. Aristeu insistiu dizendo que tudo era por sua conta e, de graça, por que não?

    Na livraria, Aristeu contou como a leitura de alguns livros o marcou e mostrou-se feliz ao encontrar Porcos com Asas.

    — Esse livro mexeu comigo e com sua mãe. Lemos juntos. Conta a história de dois adolescentes, Rocco e Antônia, do amor entre eles ambientado na Itália de 1968. Mas você nem deve saber o que aconteceu em 1968.

    E lá foi Aristeu arrastando o fio dos acontecimentos, contextualizando a conversa a respeito das manifestações políticas da época. José Carlos adorava. Adorava sair com Aristeu, ouvir o que ele contava. Os dois mantinham alguns segredos. Com ele experimentou cerveja pela primeira vez, andou pelas ruas do centro de São Paulo observando as portas e os cartazes com as mulheres nuas dos cines pornôs. Juntos foram em assembleias do sindicato dos bancários, em ensaios da escola de samba da Vila Maria, e José Carlos soube que, antes de ele nascer, sua mãe sambava como ninguém. Ele tentou imaginar a mãe feliz e dançando, mas não conseguiu.

    oOo

    José Carlos lia Porcos com Asas, acomodado em um canto das escadarias da igreja da Candelária. Sentiu vergonha de algumas cenas de sexo ao dar-se conta que sua mãe lera o livro quando mais

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1