Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Agência
A Agência
A Agência
E-book328 páginas4 horas

A Agência

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

A Agência contempla as aventuras do investigador Medeiros, herói de outros romances policiais do mesmo autor – A Boneca Platinada, O Comando Negro, As Joias da Coroa e O Resgate. Policial intrépido, incorruptível, move-se pela periferia da megalópoles que é São Paulo, conduzido por um genuíno senso de justiça. Isso o leva a enfrentar uma vasta gama de criminosos, utilizando métodos de investigação, por vezes, nada ortodoxos. Unindo uma natural astúcia a uma audácia sem limites, deslinda ao mais complexos casos, por vezes, sem contar com os colegas e alguns de seus superiores venais, contaminados pela corrupção que campeia na grande cidade.

Neste romance, o leitor deparará com o Medeiros vivendo uma experiência nova em sua carreira. Aposentado compulsoriamente pela corporação, devido à sua independência e a seu temperamento rebelde, aceita dirigir uma agência de detetives de seu amigo Tufik. Noviço nesse ramo de investigação particular, enfrenta desde os casos mais simples até os mais complexos, utilizando os métodos aprendidos ao longo de sua carreira como investigador policial. Relatando os casos que enfrenta, com muito humor e ironia, nos faz conhecer um espaço em que homens e mulheres traídos, bem como vigaristas tentam ludibriá-lo com enredos cômicos e até mesmo intrigantes, que desafiam a sua argúcia e habilidade. E em meio a um mundo de traições e corrupção, brilha na noite a garota Corina que oferecerá a Medeiros as doçuras da paixão.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jan. de 2023
ISBN9798215593615
A Agência

Leia mais títulos de álvaro Cardoso Gomes

Relacionado a A Agência

Ebooks relacionados

Mistérios para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de A Agência

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Agência - Álvaro Cardoso Gomes

    O Turco Tufik

    Mal comecei a trabalhar na agência de detetives do Tufik, logo de cara, já me irritei com o primeiro cliente. Chamava-se Salústio Filiputti. Não bastasse aquele nome, ainda era amarelo e careca feito a bola dois de bilhar e tinha os olhos tristes de cachorro abandonado. Vestia um terno antiquado, cor de burro quando foge, de um número maior que o dele, pois as mangas caíam, cobrindo-lhe as mãos até os dedos. Sentou na ponta da cadeira, os pés enfiados para dentro e, sem preâmbulo algum, veio para cima de mim com uma conversa enfadonha, dizendo que desconfiava que a mulher o vinha traindo com o sócio. Contava tudo aquilo com uma voz fanhosa, os olhos aquosos, um fio de ranho ameaçando escorrer sobre o bigodinho ralo. Por mais de uma hora, ouvi a arenga do sujeito, fingindo que fazia anotações na agenda, até que, para meu alívio, ele se despediu, mas prometendo voltar em breve.

    Sabendo que ia ter que enfrentar outra maçante sessão daquelas, na hora do almoço, resolvi dizer a meu amigo que desistia do trampo, com o argumento de que não ia ter saco para cuidar de casos de cornudos. Como era do conhecimento dele, o meu negócio, enquanto investigador de polícia, não era ficar ouvindo confidências de gente fodida pela vida, que nem fosse um padre ou um psicanalista, mas, sim, tresoitão em punho, correr atrás de traficantes, ladrões, bandidos da pesada, na periferia de São Paulo.

    Levando uma esfiha inteira à boca, o Turco disse, cuspindo pedacinhos de massa e cebola na minha direção:

    – O que você tem contra os cornos? – deu uma sonora gargalhada e completou: – É gente com problemas como outra qualquer. E o melhor: com medo da publicidade, nunca se recusam a pagar.

    Foi direto ao ponto. Com isso, eu não tinha mais o que discutir. Mesmo assim, resmunguei:

    – Não sei se tenho paciência pra ficar escutando lamúria de chifrudos.

    – Meu caro – começou a explicar com toda a paciência, como se eu fosse um tonho –, por experiência, sei que o que mais vai aparecer em seu trampo são casos de corno. Fora isso, em menor número, têm os casos de sempre de uma agência: localização de pessoas desaparecidas, investigação familiar sobre herança e empresarial, sobre desvio de dinheiro, proteção de pessoas. Mas o que rende mesmo é investigação conjugal.

    Pelo que minha cabeça obtusa entendeu, se não pegasse os casos de corno, nossa receita seria bem menor. O acordo com o Tufik envolvia lhe pagar comissão sobre cada rolo que resolvesse e dividir com ele as despesas do mês: aluguel, taxa de condomínio, água, luz e o salário da secretária. E isso implicava, é claro, não dar uma de cu doce. Era pegar o que viesse pela frente. Fossem casos de corno ou não. Do contrário, não tinha como tocar para frente o negócio.

    E lá ia eu, que tinha passado grande parte da vida num Distrito Policial da periferia, resolvendo encrencas da pesada, começar a atender homens e mulheres, envolvidos em adultério. Que porre... Mas acabei aceitando a proposta porque, além de o Tufik ser boa gente, eu estava na merda. Depois que me contou que estava difícil manter a agência de detetive e mais o escritório de advocacia, achei que não custava nada trabalhar com ele. Matava dois coelhos de uma só cajadada: quebrava um galho para o amigo e resolvia, em parte, meus problemas financeiros.

    – Assim, você me ajuda, pegando uns casinhos, e, ao mesmo tempo, consegue tirar uns bons trocados – disse ele, como se tivesse ouvido meus pensamentos.

    O Tufik, também conhecido pelos amigos como Turco, tinha sido colega no curso de Direito na Universidade São Marcos. Era boa praça e logo ficamos amigos. Como eu, gostava da noite, um bom papo, regado a qualquer coisa que levantasse o astral, como uísque, vodca, cachaça e garotas. Quanto a este último item, era o maior aficionado, embora tivesse um gosto para lá de duvidoso. Era só ver uma criatura que não fosse anã, velhusca ou obesa em demasia, que já dava logo em cima.

    – São todas filhas de Deus... – dava um sorriso maroto.

    Mas o grande problema era que, fissurado numa dona, nunca pensava nas consequências. Naquela época da Universidade São Marcos, pelo que me recorde, havia se metido em grandes confusões, levado umas porradas e até sendo ameaçado de morte. Perdi a conta das vezes que tive que intervir, ajudando-o a se livrar de namorados, noivos e maridos ofendidos. Mas, no que dizia respeito à profissão, tinha mais juízo do que eu, tanto que se formou em Direito. Com o diploma na mão, abriu um bem-sucedido escritório de advocacia no centro de São Paulo.

    Quanto a mim, reprovado pela OAB, acabei prestando concurso para investigador de polícia. Não tinha a mínima ideia do que teria que enfrentar, a não ser aquilo que lia nos jornais ou em livros policiais. Quando comecei a passar pela dura rotina do dia a dia, vim a descobrir que era uma profissão para deixar qualquer um doido de pedra. Mas, como sempre fui um cara meio maluco, isso não parecia o maior problema. Fui dar plantão num Distrito Policial fodido da periferia, para lidar com gente da pesada – trombadões, escroques, ladrões, traficantes, matadores de aluguel, serial killers, sem contar as putas, travecos e, de quebra, colegas e superiores corruptos.

    E cada um no seu canto, não nos vimos mais. Até que, por acaso, o encontrei num inferninho, o Amor Caliente, na rua Álvaro de Carvalho. Uma espelunca parecida com o portal do Inferno, escura como breu, as paredes pintadas de vermelho vivo, os espelhos negros, decorados com molduras, filetes e arandelas dourados, um carpete cor de carne, fedido, todo manchado de óleo de frituras e de restos de bebida ordinária. O ar lá dentro era tão viciado e espesso que se podia cortar com um facão. E contava com as garotas de programa de sempre. Criaturas, só aceitáveis quando você estivesse bêbado e, a vista e a mente turbadas, confundisse um tribufu com uma artista de tevê.

    O Amor Caliente pertencia a um gringo, o López, o cabelo ensebado de fixador, bigodão de bandido mexicano, correntes e pulseiras de prata no pescoço e nos punhos. Ele achava que estava em dívida comigo, porque, uma vez, eu tinha botado uns arruaceiros pra correr. A falar a verdade, fiz isso por mim, querendo beber sossegado no meu canto, e não por ele. Mesmo assim, o López costumava me tratar como um rei, me servindo umas doses de uísque na faixa e me encaminhando as melhores criaturas do seu estoque de barangas.

    O paraguaio era dono também de outro night club, na rua Major Sertório, o Cielito Rojo, onde, de vez em quando, eu costumava beber e ver se descolava uma garota que valesse a pena, o que era raro. Como ele continuava a ter consideração por mim, ao abrir o Amor Caliente, me ligou e convidou para conhecer o novo buraco:

    ¡La novidad aquí, en Amor Caliente, es que tendremos mucha música internacional! – fez uma pausa e acrescentou, todo eufórico: – Y, como ya sabes, el primer whisky es por cuenta de la casa, amigo.

    Dei uma risada. Conhecia bem o "por cuenta de la casa, amigo", pois sabia o que era servido na espelunca dele.

    – Hummm, na certa, uísque do Paraguai.

    ¿Qué es esto, señor Mederos? Para los amigos, solo whisky auténtico.

    Quanto à "música internacional", já sabia o que podia esperar dos músicos que o paraguaio estaria disposto a contratar. O lixo itinerante daqueles inferninhos da boca – intérpretes ingleses, franceses, mas sempre com sotaque mexicano...

    Mal entrei, o López, todo cheio de salamaleques, saiu detrás do balcão e veio a meu encontro com um largo sorriso. Como se fosse um polvo, me pegou pelo cotovelo, pelo braço, pelo ombro e me levou até uma mesa em frente a um palco iluminado por lâmpadas piscantes, roxas, vermelhas e azuis. Duas garotas, de coxas carregadas de celulite, a peitaria caindo até quase a barriga e usando fio-dental, rebolavam cheias de preguiça. Ao lado, acompanhado por um violão, um saxofone, um atabaque, um mulato de bigodinho, com uma camisa florida, calça vermelha, chapéu panamá e sapatos brancos, cantava, meio que sem ânimo, um bolero, num espanhol todo estropiado:

    Siempre que te pregunto

    Que cuándo, cómo y dónde

    Tú siempre me respondes

    Quizás, quizás, quizás...

    Y así pasan los días

    Y yo desesperado

    Y tú, tú, contestando

    Quizás, quizás, quizás

    Estás perdiendo el tiempo

    Pensando, pensando

    Por lo que más tú quieras

    Hasta cuándo, hasta cuándo

    Um show broxante. O López me serviu uma dose generosa de uísque e apontou umas garotas requenguelas sentadas ao fundo que, do ponto de vista dele, mereciam uma investida. Queixou-se de uns policiais que o andavam achacando. Sem pensar no que dizia e querendo me livrar dele, prometi que ia tomar providências. Que providências? Ligar para uns colegas safados e pedir cheio de jeito que maneirassem? Maneirassem? Não era besta de ficar me metendo no negócio dos outros. Ainda mais se eram os colegas corruptos de sempre. Como um tal de Mandrake, o maior achacador da noite. Merda de gente de que era preferível manter distância. Mas fiz a promessa só para o gringo me deixar em paz, o que de fato aconteceu. Ele me agradeceu daquele jeito esfuziante, cheio de "muchas grácias, amigo" e se mandou para trás do balcão.

    Estava lá na minha, bebendo o uísque falsificado do López, sem vontade de abordar ninguém. Já tinha avaliado as garotas do fundo: nada que estimulasse. Pelo contrário, lembravam mais as ajudantes do Capeta, o que me levou a pensar que, naquela noite e daquele mato, não ia sair nenhum cachorro.

    Mas uma delas, empurrada pelo López ou agindo de vontade própria, veio se sentar do meu lado. Do peito chato, coberto por um véu de gaze vermelho, despontavam os mamelões de bicos pretos, que vinham se derramar até a barriga estufada. Pôs a mão de unhas pontudas como as garras de uma harpia sobre a minha coxa e sorriu, a boca arreganhada lembrando a de um sapo bêbado.

    – Me paga uma bebida, bonitão – disse com uma voz rouca e exalando um bafo de cadáver ainda fresco.

    Senti vontade de lhe perguntar se achava que eu estava na idade do abutre, mas resolvi ser mais delicado e disse:

    – Chispa daqui.

    – O que foi, meu bem? – as pestanas tremelicavam como as asas de uma mariposa. Lambeu os beiços borrados de batom e continuou a me tentar, como se a gente estivesse mergulhado num tacho de um dos círculos do inferno: – Não vai querer um amor gostosinho? Faço de tudo: beijo na boca, boquete, anal...

    O que semelhante criatura fazia num puteiro? Quem sabe, cuidava de embebedar os trouxas, com a ideia de submetê-los ao boa noite Cinderela. Peguei umas notas amarfanhadas no fundo do bolso e, jogando sobre a mesa, disse:

    – Vai tomar um corotinho de anis.

    Olhou com desprezo os trocados e disse, a língua bífida sibilando entre os dentes sujos de nicotina:

    – Seu viado!

    Como a investida dela não deu certo, isso serviu de aviso àquela récua de barangas, que assim me deixaram em paz. Pensei em matar minha dose de uísque e dar no pé, para caçar em outra freguesia.

    Foi então que ouvi uma gargalhada bem conhecida às minhas costas. Além de escandalosa, era estridente, a ponto de doer nos ouvidos.

    Virei-me e logo de cara reconheci a pessoa. Era o Tufik velho de guerra. Fora uns poucos fios de cabelo branco e um início de pança, não havia mudado muito: baixo, troncudo, o nariz adunco, lembrando um anzol, o bigodão, a cor azeitonada. Estava sentado a umas duas mesas da minha, batendo um papo animado com um dos tribufus. O mar não devia mesmo estar para peixe na espelunca do gringo, porque a criatura era de doer. Tão ou mais feia que a que tentou me seduzir. O vestido preto bem decotado e quase todo transparente servia apenas para pôr em evidência as costelas e os ossos das escápulas, já que ela era bem parca de carnes. Mas o Tufik, pelo que já disse, não costumava ser seletivo. Pegava o que estava mais à mão. No caso de agora, uma vassoura vestida de gente.

    – Olá, Tufik! – chamei, ao mesmo tempo que acenava.

    Voltou-se na minha direção, arregalando os olhos, inchados como bulbos de lâmpadas. Quando me identificou, levantou-se, abriu bem os braços e veio a meu encontro, bradando:

    – Medeiros, velho de guerra, como vai essa força?

    – Assim, assim, meu caro – disse, retribuindo o abraço.

    Voltou à mesa dele, despediu o tribufu, dando-lhe alguns trocados e veio se sentar comigo. E sem perguntar se eu queria, já foi pedindo um uísque para nós.

    – Só com gelo, né? Como nos velhos tempos – sorriu e disse: – Mas me conta aí como vai a vida.

    Usava terno xadrez, com quadrados azuis e amarelos, camisa de listas e gravata vermelha cintilante. Carregava um anelão com uma pedra verde do tamanho de um ovo de codorna, uma gorda aliança e um enorme relógio de ouro. Continuava bem-falante como no passado, a voz cavernosa de locutor de rádio. De quando em quando, soltava a gargalhada de sempre. Conversamos sobre os velhos tempos de faculdade, os colegas, as garotas, o rumo de nossas vidas.

    – Falando naquela gente, fiquei sabendo que o Astor já era – ele disse.

    – Pois é. Quis bancar o esperto e se danou.

    O Astor era um grandalhão, loiro, com um lábio leporino, que fazia de tudo para se enturmar à força com a gente. Como fosse um chato de galochas, ninguém queria nada com o mala. As meninas fugiam dele como o diabo da cruz. Até que fomos pegos de surpresa quando ficamos sabendo que tinha se casado com uma de nossas colegas mais bonitas e, ainda por cima, rica. Depois, se meteu nuns negócios escusos com uns caras da pesada e acabou com a boca cheia de formiga. Esse caso que investiguei tinha acontecido há uns cinco anos atrás. Para saciar a curiosidade do Tufik, contei-lhe a história com minúcia.

    Quando terminei, deu um muxoxo.

    – O Astor era mesmo um zé ruela. Puxa, nunca pensei que fosse casar com a Peixinho Dourado. Uma garota e tanto... – passou os dedos pelo bigodão e murmurou, dando um silvo: – Papa fina, um tesão... E ficando com um mala daqueles.

    Peixinho Dourado era o apelido da colega que, além do cabelo bem loiro, era agitada, elétrica. Costumava sair com todo mundo, mas dizia que, com o Astor, nem morta. Mas, para o espanto de todos, acabou se casando com ele. Há mais mistérios entre o céu e a terra do que pensa nossa vã filosofia, como dizia o Hamlet para aquele otário.

    – Pois é, casou com ela. O Astor podia ter a vida que pediu a Deus, com uma mulher gostosa do lado e grana pra valer. Mas não, quis dar um peido maior do que a bunda, andou se metendo nuns rolos com gente da pesada e se danou – eu disse com uma certa dose de melancolia. Lidar com o passado não era a minha praia.

    Papo vem papo vai, mudando de assunto, acabei contando que eu tinha sido aposentado compulsoriamente.

    – Como assim? – arregalou mais os olhos. – Cara, o que andou aprontando?

    – O de sempre. O pessoal lá de cima já estava de saco cheio comigo, e assim acabaram me botando pra escanteio.

    Tomou um gole de uísque e disse:

    – Pelo que te conheço, você nunca foi de suportar desaforo de colega ou de chefe. Mesmo os bã-bã-bãs do DECAP, do DEIC, da Corregedoria e o escambau.

    – Hum-hum...

    – E, também, pelo que ouvi contar, você tem a mão bem leve – deu uma risada estrepitosa. – Andou apagando mais gente do que devia?

    – Você está exagerando. Em todos os casos, os vagabundos que apaguei eram uns filhos da puta.

    – Concordo com você, mas nesses tempos de direitos humanos... – fez uma pausa e completou: – Direitos humanos pra bandidagem. Agora, pra gente que anda na linha, é ferro na boneca.

    Deu mais outra daquelas gargalhadas espalhafatosas, que faziam as pessoas voltarem a cabeça em nossa direção. Ficamos em silêncio, só bebericando o uísque e ruminando aquilo tudo.

    – Aposentado, é...? – disse depois de alguns minutos. Meneou a cabeça e completou: – Vai ficar na moleza ou ainda está a fim de descolar uma graninha?

    – Depende... – disse, evasivo.

    Eu estava mesmo numa pior, a aposentadoria mal dava para o aluguel, meu uísque, os pê-efes no português da esquina da rua Paim, onde morava. Estava atrasado com o aluguel, o condomínio, os carnês das casas Bahia e já havia entrado fundo no cheque especial. Uma graninha seria sempre bem-vinda. Mas não tinha a menor ideia do que o Tufik podia me oferecer.

    – E se você viesse trabalhar comigo? – disse de supetão. – Um trampo maneiro, posso te garantir.

    – Trabalhar com você?

    Eu sabia do escritório de advocacia dele no centro da cidade. Mas eu tinha sido um aluno medíocre – para não dizer, relapso de vez – no curso de Direito. Com certeza, o Tufik não ia querer me contratar como office-boy. Por isso, fiz questão de lembrar a ele do fracasso de minha carreira:

    – Você deve saber que me formei na marra, lá no final da turma... Depois de mim só tinham o Gonçalo e um tal de Suzuko, que é promotor e aqueles outros dois palermas que entraram na política e estão na cadeia por corrupção. E o último da turma, o Sarnento – lembra? Ele tinha a cara cheia de feridas –, casou com a filha dum senador e hoje é reitor da faculdade de Direito do sogro. Quanto a mim, prestei o exame da OAB e levei pau.

    Abanando a cabeça, resumi a história:

    – Sendo assim, não sei o que podia fazer no seu ramo de trabalho...

    Deu outra gargalhada, bateu a mão com forçar sobre a mesa, fazendo balançar os copos e disse:

    – Putz, e você vem me falar daquele bando de zé ruelas... Tinha até me esquecido deles. O Sarnento... Quiá-quiá-quiá!

    E completou, já mais sério ecofiando o bigodão:

    – Mas, no seu caso, sei de sobra de sua vida pregressa. E foi uma pena, você daria um bom advogado. Mas não te quero no meu escritório de advocacia e, sim, na minha agência.

    – Agência? Que agência?

    Contou que, uns tempos atrás, tinha arrematado uma agência de detetives que ficava perto da Sé.

    – Agência de detetive? Você entende disso?

    Balançou a cabeça:

    – Assim por cima. Acontece que um sujeito aí estava me devendo uma grana. Como não conseguisse pagar, me passou a agência.

    Bebeu mais um gole de uísque e prosseguiu:

    – Pra falar a verdade, entra uma graninha boa, mas não tenho tempo e nem disposição pra cuidar do escritório e da agência.

    – Por que não contratou gente do ramo?

    – Bem que tentei, mas só encontrei roleiro por aí – suspirou e acrescentou com raiva: – Semana passada, tive que botar pra correr um pilantra.

    – Pilantra? O que o cara andou aprontando?

    – O merda do detetive que contratei pra agência. Pegou uns casos por fora, sem registrar nada e embolsou a grana toda. Não fosse a Ju...

    – Ju?

    – Sim, a Jucicleide, a secretária da agência – de novo, passou os dedos pelo bigodão, deu aquela espécie de silvo e concluiu: – Além de fofa, esperta a garota.

    Fofa? Devia ser comida – pensei cá comigo.

    – A menina me abriu os olhos, cara! Descobriu que o filho da puta estava me roubando na mão grande e veio me contar. Meti o pé na bunda do Silveira e agora estou a descoberto, sem alguém de confiança na agência. Seria uma boa se você pudesse tomar conta daquela birosca pra mim.

    – Será? – dei uma risada e completei: – Quem te disse que também não vou querer te passar a perna?

    Arreganhou os dentes e disse:

    – Te conheço de velho, Medeiros. Você não é disso.

    – Você quer que eu tome conta de sua agência... Como detetive?

    – Isso mesmo. E entra como meu sócio... – fez um sinal ao garçom, pedindo mais dois uísques e continuou: – Além de ponta firme, tendo trabalhado como policial, conhece as manhas de como fazer uma investigação. O que pode facilitar as coisas.

    – E quanto à questão legal?

    Tomou um gole de bebida e disse:

    – Se quer saber, não existe um órgão específico pra tratar da profissão. O máximo que deve fazer é se registrar no ISS pra obter o alvará de detetive particular. Se achar que vale a pena, pode também fazer um cursinho. Acho que é perda de tempo, mas se você quiser fazer...

    – Só isso?

    – Fica tranquilo. O mais importante é meter as caras. Não tem segredo. Ainda mais pra você com sua experiência de investigador. Mamão com açúcar.

    Pensei um pouco. Minha vida estava mais parada que poça de lama, a grana curta e nada no futuro próximo que pudesse me apontar uma saída. Aceitando a proposta do Tufik, podia sair do fundo do poço.

    – Está bem, meu caro. Quando é que vai me mostrar a agência? – disse, depois de uns minutos de reflexão.

    – Beleza, amigão!

    E desembestou a falar das vantagens de trabalhar como detetive na agência, sem patrão, que ele não ia pegar no meu pé que, pelo contrário, ia ser tratado como sócio, etecetera. E concluiu, dando as coordenadas:

    – Amanhã, a gente se encontra no meu escritório. Às nove, está bem? Fica ali na rua Direita, 98. De lá, é um pulo até a agência

    Calou-se e ficou por algum tempo só bebericando o resto do uísque. Lançou o olhar para as garotas do fundo da boate, fez uma careta de desgosto e disse:

    – Esse gringo precisava melhorar a mercadoria, porra. Nunca vi tanto bofe na vida.

    Puxa vida, não é que o cara, contrariando seus hábitos, estava ficando seletivo? Era o efeito do uísque falsificado. Para não ofender o Turco, disse outra coisa:

    – Também, o que ia esperar de uma espelunca como esta, senão uísque vagabundo e tribufu?

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1