Literatura em tradução: perspectivas teórico-críticas e analíticas
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Literatura em tradução - Tradição Planalto
autores
Apresentação
A tradução tem desempenhado um papel crucial, tanto nas relações interliterárias quanto nas interculturais, em que se vê um diálogo, apropriação, revisitação e adaptação de uma cultura em outra, como também de uma obra em outra e, consequentemente, de um código linguístico em outro. Não obstante, a tradução adentrou o campo das mídias e das múltiplas linguagens semióticas, proporcionando um enlace entre a palavra e a imagem, a palavra e o gesto, a palavra e o digital.
De maneira acertada, o conceito de Polifonia — que nomeia esta coleção — abarca a teoria da tradução e seus desdobramentos, uma vez que são muitas as teorias que debatem o ofício da tradução, cujas vozes estão ora dialogando e se articulando, ora se confrontando, mas sempre de modo crítico e contínuo para melhor compreensão e interpretação do texto literário.
Como escopo deste livro, escolhemos a correspondência entre a tradução e a literatura, seja ela oral, dramática, escrita e/ou audiovisual, abrangendo o que se denominou como Literatura Ocidental. Para a nossa felicidade, fomos contemplados com textos que vão desde os clássicos até a literatura contemporânea, permeados por vários vieses analíticos e críticos.
O primeiro capítulo, intitulado Aventuras de Alice no País das Maravilhas n’O labirinto do fauno: diálogos e intercâmbios estéticos no cinema literário, de autoria de Augusto Rodrigues da Silva Junior, Lemuel da Cruz Gandara e Pedro Augusto Leão Maia, propõe uma correspondência tanto dialógica quanto cronotópica entre o clássico inglês escrito por Lewis Carroll e o longa-metragem mexicano dirigido por Guilhermo del Toro. Com ênfase na trajetória de Ofélia e Alice, os autores utilizam a teoria do cinema literário e da tradução coletiva para estabelecer pontos de contato entre essas personagens e os respectivos elementos fílmicos e polifônicos.
O segundo capítulo, intitulado Crítica de tradução de trechos do romance The Bluest Eye, de Toni Morrison, de autoria de Lucilia Teodora Villela de Leitgeb Lourenço, assenta sobre a questão da tradução de dialeto AfroAmerican Vernacular English — também nominado como Ebonics, Black English — para o português do Brasil. A autora elenca fragmentos para melhor analisar e criticar em que medida a tradução proposta soube se aproximar do dialeto inglês, ainda que seja possível ver que não houve um esforço, por parte do tradutor ou da editora, em tentar preservar o conteúdo cultural da escrita morrisoniana, apresentando uma outra Morrison que não aquela que conhecemos dos Estados Unidos.
O terceiro capítulo, O Corvo
de Poe: aspectos de traduções para língua portuguesa a partir de A Filosofia da Composição
, de Elisa Seerig, Luise Marcolin e João Vitor Piccoli, se debruça no famoso texto de Edgar Allan Poe, expoente do Romantismo de língua inglesa, comparando as versões de Fernando Pessoa, Alexei Bueno e Milton Amado, cada qual com sua métrica. Os autores ponderam que há uma dificuldade na questão do verso, uma vez que as sílabas inglesas e portuguesas são muito diferentes em extensão, além de outros aspectos, mas nem por isso as traduções deixam de conter mérito.
O quarto texto, de Thaís Fernandes dos Santos, intitula-se O diálogo literário em tradução: entre os traços linguísticos e os desvios estilísticos. A autora propõe uma tradução anotada e comentada de fragmentos do romance As I Lay Dying, de William Faulkner, também tocando na questão sensível da tradução de dialeto e socioleto literário, com ênfase no inglês falado no sul dos Estados Unidos. A autora pontua a tentativa de representar foneticamente o falar inglês para a língua portuguesa, ciente de que cada vez mais as representações sociolinguísticas são um grande e instigante desafio para os Estudos da Tradução, as quais precisam um olhar minucioso e atento dos tradutores, amparados pelos colegas sociolinguistas.
O penúltimo texto, O humor da Ama em Romeu e Julieta: análise e crítica de duas traduções brasileiras, escrito por Tiago Marques Luiz e Nilton César Ferreira, explora a terceira cena do primeiro ato dessa peça trágica shakespeariana, ao cotejar e comparar as traduções de Onestaldo de Pennafort e Carlos Alberto Nunes, no tocante ao humor da personagem cômica. Apesar de ambas serem traduções destinadas à leitura, existe a problemática da oralidade que é intrínseca ao teatro e que é problematizada pelos pesquisadores nesse trabalho.
Andréa Cesco e Maria Eduarda da Cunha Kretzer fecham o livro, de forma áurea, com o capítulo intitulado Tradução comentada ao português do Entremés de la Destreza
, de Francisco de Quevedo Y Villegas. As autoras, pesquisadoras da literatura do Século de Ouro Espanhol — contexto esse em que Quevedo figura como um dos seus expoentes — propõem uma tradução em português brasileiro de um texto satírico do escritor espanhol, cuja principal marca é a zombaria do perfeccionismo da técnica de esgrima.
Desde já, agradecemos aos autores pela colaboração de seus ricos capítulos, como também não poderíamos deixar de estender nossos agradecimentos aos pareceristas ad hoc que muito contribuíram com suas avaliações dos capítulos para a coletânea. São eles: Andréa Cesco, Andréia Guerini, Cynthia Beatrice Costa, Daniel Padilha Pacheco da Costa, Dennys Silva-Reis, Fabiano Seixas Fernandes, Luana Ferreira de Freitas, Lucilia Teodora Villela de Leitgeb Lourenço, Mirian Ruffini, Paulo Gerson Rodrigues Stefanello, Rony Márcio Cardoso Ferreira, Suellen Cordovil da Silva e Tiago Marques Luiz.
Também estendemos nossos agradecimentos à Tradição Planalto Editora, na pessoa do Ricardo dos Santos Gonçalves e dos editores da Coleção Polifonia, Juan Ferreira Fiorini e Maria Elisa Rodrigues Moreira, pelo convite e por acreditarem na coletânea. Sem os seus esforços, o livro não viria à tona.
Um salve também a São Jerônimo, padroeiro dos tradutores, os quais desempenham, com esmero, o ofício de levar a cultura e a literatura local a outros povos e a outras linguagens, por meio do contato artístico, literário e cultural.
Desejamos a vocês uma boa leitura.
Lucilia Teodora Villela de Leitgeb Lourenço
Tiago Marques Luiz
(Organizadores)
Aventuras de Alice no País das Maravilhas n’O labirinto do fauno: diálogos e intercâmbios estéticos no cinema literário
Augusto Rodrigues da Silva Junior
Lemuel da Cruz Gandara
Pedro Augusto Leão Maia
Quando lia conto de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou eu no meio de uma.
Lewis Carroll, Aventuras de Alice no
País das Maravilhas
Ofélia, la magia no existe!
Guilhermo del Toro, O labirinto do fauno
O diálogo entre obras de arte segue um fluxo contínuo através dos séculos e é movimentado por autores e leitores que se propõem a respondê-las no grande tempo (BAKHTIN, 2003). A partir dessa ideia, propomos uma investigação comparativa entre o livro Aventuras de Alice no País das Maravilhas (Alice´s adventures in Wonderland), escrito por Lewis Carroll na Inglaterra vitoriana e publicado originalmente em 1865, e o filme mexicano O labirinto do fauno (El laberinto del fauno, 2006), dirigido por Guilhermo del Toro.
O filme é fruto de uma ideia original de Toro, mas é perceptível, no desenvolvimento da narrativa e na fatura final das imagens, um encontro dialógico com o texto de Carroll e as ilustrações feitas por John Tenniel, relação que compreendemos no horizonte teórico do cinema literário. Este se desenvolve em três perspectivas: a primeira é o diálogo, que reside nas citações, nas referências às obras e na incorporação do léxico tanto da literatura quanto do cinema em suas respectivas áreas; a segunda trata-se do intercâmbio estético situado no contato e nos meios de assimilação dos mecanismos de produção; a terceira é o fenômeno das traduções coletivas, que tem a ver com o fato de um filme adaptado de um texto literário abrigar diversas leituras de uma mesma obra escrita (SILVA JR.; GANDARA, 2018).
Aventuras de Alice no País das Maravilhas provocou um movimento singular no ambiente literário de sua época e se tornou basilar para a narrativa nonsense (sem sentido) ao longo da história da literatura cínico-humorística. Essa modalidade, calcada na fantasia e no absurdo, pode ser caracterizada como um protesto contra a arbitrariedade da ordem e uma afirmação do prazer
(BASTOS, 2001, p. 18). Por sua vez, ela (quase) sempre é construtora de mundos (às avessas), propondo rupturas nos anseios de um mundo ordenado e lógico — na tradição de Rabelais, Cervantes, Sterne e Machado de Assis.
A narrativa de Carroll acompanha a personagem Alice, que, após se aborrecer com livros de história sem figuras nem diálogos
(CARROLL, 2013, p. 13), cai no sono e, em seus sonhos, vaga pelo País das Maravilhas. No caminho, encontra uma série de personagens excêntricos, como o Gato de Cheshire — Gato Risonho, em algumas traduções para o português —, o Chapeleiro Maluco, dentre outros, além de passar por situações sem sentido
, como as várias mudanças de tamanho do corpo, diálogos e situações sem pé nem cabeça
.
Logo no início da obra, um coelho branco de olhos cor-de-rosa
(CARROLL, 2013, p. 13), com pressa e inglesmente atrasado, desperta a atenção de Alice ao passar por ela e entrar numa toca. A menina, não contendo sua curiosidade diante de um animal que porta um colete e um relógio, o segue numa espécie de catábase rumo ao desconhecido. A entrada de Alice na toca do Coelho Branco iniciou uma jornada literária sem precedentes até aquele momento. A obra estabeleceu um diálogo com textos do passado
: com Gargantua e Pantagruel (século XVI), de Rabelais, se se pensar na exploração semântica e nos jogos de palavras; com O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, se se pensar nas questões ligadas à loucura, ao sonho, ao absurdo. Também é considerada uma precursora de obras vindouras na relação entre literatura e outras artes: O maravilhoso Mágico de Oz (1900), de L. Frank Braun; Peter Pan (1904), de J. M. Barrie; a peça teatral Rabbit Hole, de David Lindsay-Abaire; e o filme Matrix (The Matrix, EUA, 1999), de Lilly e Lana Wachowski.
Os encontros dialógicos interartísticos mediados pelo texto carrolliano vão ao encontro do postulado por Bakhtin (2003) sobre o grande tempo na cultura e na civilização humana, tendo em vista que cada obra (filme, livro, peça, pintura etc.) mantém sua unidade ao mesmo tempo em que enriquece o universo de Alice e seus predecessores numa arcaica longeva responsiva que, ao se efetivar, faz do presente história e se abre ao futuro prenhe de inacabamento. Assim, no desenvolvimento das quimeras vividas no País das Maravilhas, os sentidos são relembrados em forma renovada (em novo contexto)
(BAKHTIN, 2003, p. 410).
Dentre as várias obras que se apresentam como uma resposta a Alice, destaca-se o longa-metragem mexicano O labirinto do fauno. O filme conta a história de Ofélia, uma menina de onze anos que, durante a Guerra Civil Espanhola, se muda para a fazenda de seu padrasto, Vidal, um Capitão do exército de Francisco Franco. Carmem, a mãe da protagonista, em razão da morte do esposo e da falta de uma figura paterna na criação da filha, resolve se casar com Vidal; logo depois, fica grávida e se muda para a propriedade dele nas montanhas espanholas. O ano é 1944, tempo de ascensão dos regimes totalitários na Ibéria e em toda a Europa.
A narrativa se concentra no encontro de Ofélia com um fauno e nos desdobramentos de uma série de tarefas que a menina deve cumprir para voltar ao seu mundo de origem e tomar seu lugar como princesa desse reino. Em profundo diálogo com os contos de fadas que ela sempre lia, em profundo contato com a tradição de personagens leitores, tais como Quixote e Alice, o filme estabelece o caráter de fantasia desde o princípio, quando, à beira da estrada, um inseto se transforma em uma espécie de fada. Ao chegar à fazenda, Ofélia vê a criatura novamente e, nesse momento, joga os livros no chão e vai viver a sua própria aventura.
Essa aparição das fadas já possibilita um diálogo com Alice, com ecos latentes das ideias de contos de fadas calcadas na coletânea dos irmãos Grimm e em Sininho (Tinker Bell), personagem criada por Barrie para Peter Pan. Segundo