Teoria da Literatura: Reflexões e novas proposições
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Teoria da Literatura - Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
APRESENTAÇÃO
A literatura, enquanto mimese das ações da realidade, conforme apregoa Aristóteles em sua Poética, está em constante transformação. Como reflexo da sociedade contemporânea, novas temáticas e possibilidades de abordagens oriundas de epistemologias outras têm aparecido, questionando pressupostos teóricos consagrados e problematizando reflexões estanques. Com a multiplicidade literária e as novas formas de escrita oriundas dos novos tempos, é mister repensar acerca da própria teoria literária, desde suas limitações até as intersecções possíveis com outras áreas do conhecimento.
Este volume de Teoria da Literatura: reflexões e novas proposições
divide-se em dois momentos. No primeiro, intitulado Literatura e possibilidades teóricas
, há uma abordagem mais voltada e fixada na teoria da literatura, de modo a revisitar e problematizar temas caros, como a questão da representação, através de Literatura e realidade: a representação do discurso ficcional
, de autoria de Linda Maria de J. Bertolino e Paula Fabrisia Fontinele de Sá, ou estudos comparados e em tradução, como na contribuição Um diálogo entre Literatura Comparada e Estudos da Tradução
, de autoria de Tiago Marques Luiz e Lucilia Teodora Villela de Leitgeb Lourenço.
O segundo momento, Literatura enquanto ato reflexivo
, volta-se à relação entre teoria, texto literário e sociedade. Desigualdade cultural e o direito à literatura
, de Douglas Fonseca Bonganhi, debate a literatura como um direito humano e reflexo das relações sociais. Márcio Rabelo, em Os umbrais da poesia e duas visitações: as testemunhas do incomunicável
, aborda a poesia e a sua transcendência. A literatura enquanto meio de denúncia de regimes totalitários e de denúncia contra atos de segregação humana é abordada em Pensar o holocausto por meio do discurso literário-filosófico
, de Romilton Batista de Oliveira. O silêncio, especificamente na literatura inglesa, da Era Vitoriana, é tema central da discussão de Flávia Moreno de Marco em As quatro facetas do silêncio em Jane Eyre
.
Com essas contribuições sobre teoria e literatura, que congregam pesquisadores de diversas instituições de pesquisa, esperamos impulsionar ainda mais os diálogos na área, através de olhares que produzem novas leituras sobre os objetos destacados.
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
Vanessa Riambau Pinheiro
PARTE I – LITERATURA E POSSIBILIDADES TEÓRICAS
1. LITERATURA E REALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO FICCIONAL
Paula Fabrisia Fontinele de Sá
Linda Maria de Jesus Bertolino
Desde sempre, histórias são narradas. E entre os fatos narrados e o público receptor, há um narrador. O narrador é, pois, um elemento fundamental não somente no processo de contar uma história, como também da própria história, visto que, segundo Leite (1997, p. 6), quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou.
Sendo assim, por meio da arte de narrar, as pessoas sempre puderam trocar experiências. Sobre a narrativa, Barthes (2008) afirma que:
a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; [...] só se pode falar dela referindo-se à arte, ao talento ou ao gênio do narrador [...] possui em comum com outras narrativas uma estrutura acessível à análise. (Barthes, 2008, p. 19-20)
Narrar histórias é, portanto, um traço significativo do discurso humano. Da narração à ficção o passo foi curto, porém, consoante Lima (1989, p. 109), nenhum fato é histórico ou ficcional; ele assim se torna quando é selecionado por um historiador ou por ficcionista
.
Isto posto, nos remetemos ao problema mais questionado em relação às narrativas: o impasse entre a ficção (narrativa de ficção) e a realidade (narrativa sobre o real
), uma vez que, por muito tempo, houve na sociedade a necessidade de se distinguir a verdade da não verdade.
No século XIX a tensão entre essas duas grandes vertentes teve o seu auge. A História se propôs como disciplina. Sua intenção era se tornar científica, tornando-se parte das ciências sociais. Desse modo, a historiografia tenta se distanciar da ficção (considerada um obstáculo da verdade), abandonando o ato de narrar fatos, para começar a descrevê-lo por meio do discurso científico.
Nesse sentido, a História tentou mediar seu discurso entre a ciência e a arte, entretanto, desde então, havia muita resistência dos historiadores frente à ficcionalidade literária, dado que a construção e legitimação do saber histórico, enquanto ciência, perpassaram a negação de sua vertente ficcional em prol da valorização da ideia de verdade
e real
em sua narrativa.
Assim, em meio aos estudos sobre a ficção e a história, este trabalho discutirá a ideia de ficção presente na Literatura (no texto de ficção) e na História (nas representações históricas).
De modo a contemplar nossa proposta, em um primeiro momento, faremos uma reflexão teórica sobre o termo ficção, pois pensar em ficção é perceber a tensão entre veracidade e ficcionalidade (verdadeiro e falso, fato e ficção), que desde sempre esteve no centro das discussões sobre as narrativas. Em seguida, apresentaremos a história ressaltando novos meios de se perceber e contar a História. Na modernidade, veremos que os estudos culturais se apropriaram das técnicas do fazer literário e aproximam cada vez mais os estudos literários e históricos, na medida em que passam a construir narrativas ficcionais
para contar a História.
Ficção
O termo ficção vem do latim, fictionem (fingere, fictum), e significa: ato ou efeito de fingir, inventar, elaboração, coisa imaginária, fantasiosa ou fantástica. É considerado, segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, doravante DeHlp (2009), como uma criação artística em que o autor faz uma leitura particular e geralmente original da realidade
. No entanto, sabemos que o mundo representado na ficção não designa um mundo existente, posto que a ficção não visa a fornecer um retrato da realidade, mas sim uma representação daquela mediante o olhar interpretativo do artista.
Em geral, a ficção se materializa por meio das narrativas, ressaltando o instinto humano de ouvir e contar histórias. Logo, considera-se que literatura de ficção é aquela que contém uma estória inventada ou fingida, fictícia, imaginada, resultado de uma invenção imaginativa, com ou sem intenção de enganar
(Coutinho, 1976, p. 30). A narrativa ficcional expõe acontecimentos contados (enredo) por alguém (narrador) e vividos por pessoas, animais ou coisas (personagens), passados em um determinado lugar (espaço/ambiente) e com certa duração (tempo).
Nesse sentido, o cultivo da ficção ocorre desde os textos literários antigos. Na Idade Média (principalmente no século XIV), a novella italiana (Il decamerone, de Boccacio; Trecente novelle, de Sachetti) impulsionou o gênero. Na Espanha surgiu a novela picaresca¹ que, em 1605, originou a obra Dom Quixote, de Cervantes (obra considerada a precursora do romance moderno). Entretanto, os estudiosos afirmam que foi somente na Inglaterra do século XVIII que o gênero passou a ser discutido como traço distintivo e que romancistas ingleses, como Richardson², Fielding³, Defoe⁴, instalaram os fundamentos da ficção moderna.
No século XVIII a única marca confiável da ficção narrativa era a pura e simples ausência de credibilidade, enquanto a verossimilhança equivalia a uma profissão de veracidade. [...] As narrações críveis em prosa, eram lidas ou como relatos reais ou como reflexões alegóricas sobre pessoas ou eventos da contemporaneidade. (Gallagher, 2009, p. 632)
Assim sendo, as ficções ocuparam um espaço intermediário entre o falso e o verdadeiro, a verossimilhança e o realismo. No entanto, segundo Gallagher (2009, p. 630), "tais romancistas libertaram a ficção ao renunciarem às tentativas daqueles⁵ que lhes antecederam de convencer os leitores de que suas histórias eram verdadeiras ou que, de algum modo, diziam respeito a pessoas reais". A narrativa ficcional, então, procurou convencer seus leitores a aceitarem o estatuto de imaginário das personagens por meio da encenação de pormenores fictícios, deixando de ser uma subespécie da dissimulação para tornar-se fenômeno literário.
Assim, a determinação do estatuto de ficcional produziu ao longo dos tempos suas próprias convenções, logo, a ficção conquistou para si um papel cultural tornando-se uma forma estética com elementos característicos distintos. Dessa forma, a ficção possui uma estrutura resultante de - artifícios e métodos⁶- capazes de determinar se um texto é ficcional ou não.
Entretanto, discutiremos, neste espaço, a ficcionalidade a partir da relação autor-texto-leitor (vista por Antônio Cândido (1985) como personagens que atuam um sobre o outro no meio social). Nessa perspectiva, a primeira regra básica diante de um texto de ficção é o que Eco (1984) vai denominar de acordo ficcional. Consoante o autor referido:
a norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional. [...] O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (Eco, 1984, p. 81, grifo do autor)
A ficção literária é, consequentemente, aquela que reconhece a sua própria ficcionalidade. Para Gallagher, a ficção só adquiriu estatuto próprio quando os leitores desenvolveram a capacidade de distingui-la da realidade e, sobretudo, da mentira. As narrativas precisam, então, serem plausíveis. Como assegura Gallagher:
a incredulidade torna-se um pressuposto da leitura ficcional que induz a formular juízos, não mais sobre a realidade da história, mas sobre a plausibilidade (verossímil). [...] O leitor, dissuadido de crer na verdade literal de uma representação, admira-lhe a verossimilhança, simulando crer o suficiente para