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Mundo Desolado
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E-book513 páginas6 horas

Mundo Desolado

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Sobre este e-book

Em um mundo consumido pela desolação dos desertos, Kalian vive uma vida simplória em uma aldeia distante o suficiente de qualquer outra civilização para ter sido completamente esquecida pelo resto do mundo.

Sua vida pacata, no entanto, muda bruscamente depois de um encontro fatídico que sela seu destino, obrigando-o a deixar tudo para trás e partir em uma jornada através de um mundo selvagem e repleto de perigos, rumando em direção ao tão sonhado continente. Durante esta jornada a magia o acompanha, porém também estão presentes preconceitos e crueldades com as quais deverá lidar, até que possa derrotar um cruel assassino.

Muitos cruzarão o seu caminho durante sua trajetória, tanto para o bem, quanto para o mal. Se ele conseguirá encontrar uma maneira de superar seu destino e a dor advinda de suas provações, isso não dependerá de nada além de sua própria força de vontade!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de fev. de 2021
ISBN9786586904376
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    Pré-visualização do livro

    Mundo Desolado - Eduardo Krauze

    Todos os direitos desta edição reservados à Editora PenDragon

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Capa

    Henrique Morais

    Revisão

    Camila Villalba

    Diagramação

    Rafael Sales

    Assitente Editorial

    Felipe Saraiça

    Coordenação Editorial

    Priscila Gonçalves

    CIP-Brasil. Catalogação na Fonte.

    Vivian Villalba CRB-8/9903

    K91m Krauze, Eduardo

    Mundo desolado / Eduardo Krauze. 1 ed. _

    Rio de Janeiro: Pendragon, 2020.

    ISBN 978-65-86904-38-3

    1. Literatura brasileira 2.  Fantasia I. Título. II. Autor.

    CDD: B869.93

    Rio de Janeiro – 2020, Rio de Janeiro.

    É proibida a cópia do material contido neste exemplar sem o consentimento da editora. Este livro é fruto da imaginação do autor e nenhum dos personagens e acontecimentos citados nele tem qualquer equivalente na vida real.

    Direitos concedidos à Editora Pendragon. Publicação originalmente em língua portuguesa. Comercialização em todo território nacional.

    Formatos digitais e impressos publicados no Brasil.

    Este livro é para todos aqueles que acreditaram. Em especial à minha mãe, que acreditou primeiro.

    Agradecimentos

    Bom, são muitos os nomes que eu gostaria de mencionar, e quase infindáveis aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que essa história ganhasse vida. Ainda assim, para poder dar os devidos créditos a todos, teria que provavelmente escrever outro livro apenas com agradecimentos, então vou me ater àqueles que me acompanharam durante o processo, ou que foram decisivos de alguma forma para o seu andamento. A todos os que não estão citados, mas que ajudaram de alguma forma, deixo aqui registrado o meu muito obrigado!

    A primeira pessoa a quem eu gostaria de agradecer é minha avó, Maria Zeli. Quando comecei a escrever o livro, morávamos eu e ela em uma pequena chácara afastada da civilização, e nosso único contato com o mundo exterior era a tv (que nunca ligávamos) e um velho telefone que dava sinal de vida dia sim, dia não. Não, não tínhamos internet, e sei que para muitos esta pode parecer uma ideia horrível ou mesmo inconcebível, mas o afastamento, tanto da tecnologia quanto das correrias da contemporaneidade, ajudou-me a colocar minhas ideias em ordem e conceber o que se tornaria o livro hoje publicado. Por esta oportunidade, e por muitos outros motivos que não cabem aqui citar, sou muito grato à dona Zeli.

    Depois, gostaria de agradecer à minha tia, e também madrinha, Márcia Braz, que tem por objetivo de vida a complexa missão de uma educadora e vive junto de meu tio Miguel em um lugar que por si só poderia ser considerado um mundo fantástico à parte, com suas próprias nuances e personagens característicos. Ainda enquanto meus escritos andavam em processo embrionário, ela teve o caráter de analisar a obra com o rigor profissional de uma professora de literatura, e suas críticas criaram a base sobre a qual a história foi forjada. Obrigado!

    Seria um disparate se uma seção de agradecimentos passasse sem qualquer menção aos amigos que também me ajudaram durante o processo, fosse lendo ou opinando sobre a história, ou mesmo apenas pela boa companhia após horas de escrita solitária. Não direi aqui os nomes, pois não quero que algum que eu possa vir a esquecer sinta-se ofendido, mas, a todos aqueles que se consideram meus amigos, muito obrigado! (Horda forever!)

    É necessário também um agradecimento especial à editora PenDragon e a toda a equipe envolvida na produção de meu livro, por possibilitar que este projeto se tornasse realidade. Novamente, não citarei nomes, mas todos são profissionais incríveis e extremamente qualificados, que levam o seu trabalho com seriedade e o executam com excelência, dando ao autor todo o suporte necessário e com agilidade. Não podia ter escolhido uma casa editorial melhor e fico muito feliz em contribuir de alguma forma para esta marca! Obrigado!

    Gostaria, é claro, de agradecer aos meus pais, que me apoiaram desde sempre e em todas as fases de minha vida, não apenas em minha decisão de tornar-me escritor. Perseguir uma carreira literária em um país onde pouco se incentiva a literatura não é uma decisão fácil, e a coragem dos dois em aceitar e fornecer os meios para que eu corra atrás dos meus sonhos me motiva a seguir em frente. Quero agradecer também especialmente à minha mãe, por ter sido a primeira a ler a história por completo e por opinar em pontos que a mudaram para melhor. Obrigado!

    E por fim, mas não menos importante de modo algum, o agradecimento final é a você que está lendo. Não existe um autor sem um leitor e, a todos aqueles que leram esta história, deixo aqui o meu mais sincero agradecimento. Espero que tenha se divertido e emocionado na mesma proporção em que eu o fiz ao escrevê-la. E se você ficou curioso e quer saber mais, pode ficar tranquilo porque vem mais por aí! Novamente, muito obrigado, e que seus espíritos nunca deixem de brilhar!

    A chuva açoitava o teto e janelas da mansão imponente. Era tarde, e nenhuma luz encontrava-se acesa, indicando que seus moradores já haviam se retirado para dormir. Nada além do esperado de uma residência respeitável em uma noite comum.

    Porém, aquela estava longe de poder ser considerada uma noite comum. Escondidos em um dos cantos escuros de uma sala repleta de relíquias antigas e troféus, iluminada apenas pela claridade diáfana proveniente de janelas de cristal ricamente decoradas, três homens e uma mulher aguardavam atentos, ocultando suas essências e vigiando a coleção de valor inestimável.

    De súbito, um relâmpago iluminou o recinto, criando sombras alongadas e indistintas, deixando impressões luminosas que ficaram gravadas por alguns instantes nos olhares dos observadores. Um poderoso trovão logo se seguiu, sacudindo as fundações da casa e fazendo tilintar os lustres e as inúmeras vidrarias expostas. As quatro figuras na escuridão ficaram tensas, esperando que algo acontecesse. Um momento se passou sem que nada, com exceção da chuva constante e da respiração compassada dos presentes, perturbasse a calmaria que se apossara do lugar.

    Lentamente, os homens relaxaram, mas não a mulher. Esta continuou em prontidão, sem sequer piscar os olhos. Muito tempo ela aguardara por aquela chance e não a desperdiçaria. A luz de um segundo relâmpago perfurou as janelas da sala, e todos prepararam-se para o trovão que sabiam que viria em breve. Porém, se ele veio, passou despercebido na algazarra que veio em seguida.

    Duas janelas espatifaram-se com som estridente em lados opostos do salão, banhando o chão acarpetado com centenas de cacos esbranquiçados de cristal. A ventania molhada adentrou avidamente a sala, revirando os objetos tão cuidadosamente organizados. Os três homens pareciam desnorteados, olhando para os lados sem saber o que fazer conforme mais janelas explodiam, uma atrás da outra, confundindo-os em sua cacofonia aguda. A mulher, no entanto, disparou para o meio da sala e realizou um gesto amplo com a mão, fazendo com que os lustres se acendessem e iluminassem o ambiente antes ofuscado pelas sombras.

    Ela agira rapidamente, tão logo a primeira janela se partira. Mas, ainda assim, não fora rápida o suficiente. Tudo o que a mulher conseguiu foi divisar um vulto que saltou veloz para fora através de uma janela quebrada. Ela então correu em seu encalço, pulando com agilidade o beiral e aterrissando de joelhos na lama. Ensopada em questão de instantes pela chuva forte, a mulher procurou em volta com fervor e um relâmpago mostrou-lhe o ladrão fugindo, já com uma boa dianteira.

    — Não dessa vez! — bradou ela, cerrando os dentes enquanto sacava uma espada comprida e afiada.

    Tão logo havia terminado de desembainhar a arma, concentrou sua essência nas pernas e arremessou-se pelo ar atrás do fugitivo com um impulso tão poderoso que parou momentaneamente a chuva ao seu redor. O ladrão a percebeu no momento em que ela brandiu o golpe que o partiria ao meio, saltando para o lado um instante antes de ser atingido e rolando para absorver o impacto.

    A mulher cravou os pés no chão, abrindo crateras lamacentas ao desacelerar. Nem bem havia parado, atirou-se outra vez na direção do vulto, cortando o ar e a chuva onde ele estivera um pouco antes. O ladrão e assassino parou, virando-se, a cerca de vinte passos da mulher e soltou uma risada afetada e sem humor. Em uma de suas mãos segurava uma caixa simples de madeira.

    — Há quanto tempo, querida! — gritou ele em tom jocoso, fazendo-se ouvir através do aguaçal. Seus cabelos cor de palha escorriam encharcados na frente dos olhos, e ele jogou-os para trás, revelando um sorriso branco e doentio. — Já estava começando a sentir saudades!

    Ela não respondeu, apenas trincou os dentes com mais força e cadenciou vários gestos extremamente rápidos da mão esquerda, brandindo a espada na direção do homem. O vento virou na direção do assassino, soprando gélido e carregando consigo centenas de gotas grossas de chuva transformadas em farpas ao serem congeladas pela magia da mulher.

    Ele entendeu um instante atrasado o que estava acontecendo. O sorriso debochado desapareceu de seu rosto e ele mal teve tempo de escapar com um salto, sem conseguir erguer uma proteção apropriada para bloquear a magia da mulher. Uma das farpas o acertou de raspão, abrindo um corte comprido abaixo do olho esquerdo. O homem colocou a mão livre no rosto e a viu manchar-se com seu próprio sangue lavado pela chuva.

    — SUA CADELA! — berrou ele um instante depois, tremendo de raiva e sem qualquer resquício do humor debochado que demonstrara havia pouco.

    As mãos do homem dobraram-se em gestos tão rápidos que não passavam de um borrão, mas, antes que a magia pudesse ser liberada, uma pedra incandescente passou ao seu lado e enterrou-se no chão, chiando ao abrir caminho através da lama molhada. Ele parou e olhou para trás da maga, encontrando ali os três retardatários, que corriam enquanto teciam magias direcionadas a ele.

    Com um último olhar de fúria gélida para a mulher, o ladrão parou os gestos e enfiou rapidamente a mão nas vestes, retirando de lá um cristal redondo e opaco.

    — NÃO! — desesperou-se a maga, compreendendo de imediato o que ele faria.

    Outra vez ela concentrou sua essência nas pernas e saltou em direção ao assassino no mesmo tempo em que ele espatifava a gema contra uma pedra. Uma luz forte e amarelada, similar à do sol, iluminou a noite no local onde o cristal se partiu, cegando os perseguidores e fazendo-os levar as mãos aos olhos. O homem, que desviara o rosto antes de arremessar a pedra preciosa, jogou-se na direção da barreira luminosa no exato instante em que a maga se chocou contra ele.

    Ela estava cega com o clarão e não o conseguiu segurar. No entanto, agarrou sem querer a caixa que ele carregava, tomando-a de suas mãos e desaparecendo com ele através da luz. O brilho desvaneceu e tudo o que os três retardatários encontraram foi uma pequena cratera formada a partir do ponto onde o cristal se estilhaçara.

    A um mundo de distância dali, a maga cobriu os olhos, tentando acostumar-se com a claridade intensa. Assim que pôde tirar as mãos do rosto procurou à sua volta, desesperada por qualquer pista do assassino, mas não havia nenhuma.

    Desolada, sentiu o sol impiedoso e escaldante fazer o seu trabalho e começar a secar suas roupas encharcadas pela chuva. Para onde quer que olhasse, a paisagem era a mesma. Areia, areia e mais areia. Com um aperto no peito, compreendeu onde fora parar. Controlou-se com toda a sua força para não deixar o desespero tomar conta de seu ser.

    Mais uma vez falhara. Mais uma vez ele conseguira lhe escapar por entre os dedos. Com as lágrimas de raiva evaporando à medida que escorriam pelo rosto cansado, a maga saiu pisando firme através do deserto, apertando com toda sua raiva a caixa que arrebatara na perseguição.

    Sua determinação não havia minguado e seu objetivo ainda permanecia claro, o destino apenas conseguira atrasá-lo.

    Ela mataria Corvo, e o faria com as próprias mãos.

    MAIS RÁPIDA QUE O VENTO

    O pôr do sol aproximava-se rápido e Kalian procurava um abrigo onde pudesse passar a noite em segurança. Depois de vários dias distante de casa, tendo por companhia apenas as pedras pontiagudas e a vegetação rala, sentia falta de uma cama e refeição decentes como nunca.

    A terra ao seu redor era seca e amarelada, não mais do que um punhado de rochas traiçoeiras que dificultavam bastante a vida de qualquer andarilho inexperiente. Mas Kalian estava longe de ser inexperiente, tendo passado boa parte de seus quinze verões escalando e explorando os arredores montanhosos onde crescera.

    Sua aparência, no entanto, provavelmente não impressionaria ninguém. Não era alto nem forte, apesar de não perder em velocidade para qualquer um que conhecesse; um tanto magricela para a idade, era marcado por cabelos pretos embaraçados e pele morena fortemente tingida pelo sol. Seu olhar, de íris castanhas e sobrancelhas finas, era aguçado e rápido, mantendo-se sempre atento aos perigos que poderiam surgir a qualquer instante. Trajava vestes largas e simples, de pano amarronzado, que cobriam a maior parte do corpo, protegendo-o do calor e do vento. Além disso, carregava uma pequena saca de couro curtido presa às costas, na qual trazia apenas o necessário.

    Naquele momento, sentindo o peso de um dia inteiro de caminhada intensa, ofegava, forçando-se a transpor a paisagem acidentada o mais rápido possível.

    Depois de procurar por um bom tempo, vislumbrou o que teria que servir como seu abrigo para a noite: um amontoado de rochas que se estendia longamente para o alto. O sol se punha às suas costas, então pôs-se a escalar com a agilidade de quem estava acostumado e, em poucos instantes, estava no topo. Ali formava-se um pequeno espaço, apenas grande o suficiente para que pudesse se aconchegar. O lugar lhe dava uma visão privilegiada dos arredores, ampla o bastante para que se sentisse seguro.

    Assim que o sol sumiu por completo, a escuridão instaurou-se e o calor desvaneceu, dando lugar a uma friagem que se insinuava célere na brisa noturna. Salvo algumas tímidas estrelas que começavam a emitir seu brilho no céu noturno, o breu era total. Kalian retirou algumas peles e um pedaço de carne seca de sua saca, enrolou-se com as cobertas improvisadas e se acomodou nas pedras enquanto roía a carne da melhor maneira possível.

    Não podia dizer que estava confortável, mas, contanto que não ventasse muito, conseguiria descansar o suficiente.

    Apesar do cansaço de seu corpo, demorou a adormecer. Algum tempo depois do anoitecer, a primeira lua surgiu no horizonte, iluminando parcamente a paisagem desolada. Kalian apertou-se ainda mais contra as peles em uma tentativa de manter afastado o frio que aumentava à medida que a noite estendia suas garras negras, cobrindo o mundo com seus sopros gélidos.

    Encolhido em cima do rochedo, viu a lua deslizar lentamente, seguindo seu trajeto através de um céu cada vez mais pontilhado com estrelas brilhantes, que pareciam desviar-se dançando ante a aproximação despreocupada da gigante iluminada.

    Antes que percebesse, havia adormecido.

    Acordou no meio da madrugada, confuso de sono e tiritando de frio com o vento forte que soprava sem dó, produzindo sons agourentos contra as pedras afiadas. A segunda lua já estava alta no céu, revelando a imensidão antes na escuridão. De súbito, ouviu um uivo agudo e distante, que nada tinha a ver com a ventania; logo em seguida, outro respondeu ao primeiro, ainda mais potente e mais próximo, fazendo com que um medo gelado inundasse seu corpo.

    Assustado, percebeu um estranho bruxulear de luz perto do local onde se encontrava e debruçou-se na rocha para poder enxergar: logo abaixo, exatamente na base dos pedregulhos, avistou uma pequena fogueira.

    Kalian praguejou baixinho. Não podia acreditar que alguém tinha sido burro o suficiente para acender uma fogueira em um lugar daqueles. E que azar o seu o imbecil fazer isso próximo ao local onde ele descansava!

    Ainda olhando para baixo, avistou uma figura parada próxima ao fogo, perscrutando a noite ao seu redor. Parecia segurar uma espécie de porrete na mão e cobria-se com peles e tecidos até a cabeça. Os uivos se repetiram, e a figura permaneceu imóvel, em posição de alerta.

    A primeira das criaturas saltou com ruído por sobre as rochas a cerca de dez passos do estranho e foi logo seguida por outras duas. Banhadas pela luz das luas, as feras avançavam com cautela, mostrando de maneira ameaçadora os dentes afiados.

    As criaturas eram esguias, sem nenhum pelo no corpo, apenas uma pele coriácea e enrugada. Orelhas grandes e pontudas, sustentadas por olhos amarelados repletos de malícia e inteligência, e patas musculosas, guarnecidas de garras extremamente afiadas, completavam sua aparência intimidadora. Elas adentraram o círculo de luz da fogueira com passos lentos e calculados, arreganhando os dentes e rosnando para o estranho lá embaixo.

    A figura encapuzada segurou seu porrete com as duas mãos e ameaçou as feras com ele. Elas pararam momentaneamente, como que avaliando sua presa antes do ataque. A poucos passos de distância do estranho, a fera mais próxima dobrou-se e saltou para cima dele, a pata dianteira estendendo-se na tentativa de dilacerar sua garganta em um golpe poderoso. O atacado, por sua vez, escapou do predador com assombrosa agilidade e o acertou no flanco com seu porrete. Kalian ouviu o estalo dos ossos se partindo quando a criatura foi arremessada contra as rochas, onde caiu debatendo-se e ganindo. As duas feras restantes rosnaram, mas recuaram a passos lentos; as patas levemente retesadas, prontas para atacar caso encontrassem a oportunidade.

    Os ganidos do animal ferido cessaram quando o estranho esmagou sua cabeça com o porrete. Uma das feras restantes tentou aproveitar a oportunidade para atacá-lo pelas costas e por muito pouco não acabou como a primeira quando o estranho se virou agilmente, brandindo o porrete no ar para golpeá-la.

    As feras, acuadas, voltaram a recuar com cautela, e Kalian não pôde deixar de ficar impressionado. Poucas pessoas poderiam enfrentar três cães d’areia famintos de igual para igual, muito menos derrotá-los com aparente facilidade. No entanto, não houve tempo para que ele continuasse admirado com a perícia do estranho em combate.

    Um uivo longo silenciou os rosnados dos cães que ainda encaravam sua presa com olhos injetados. Eles levantaram os focinhos, farejando o ar, e então uivaram de volta. Com a vista privilegiada que tinha do alto do rochedo, Kalian observou uma matilha inteira aproximando-se rapidamente, saltando as rochas com agilidade: pelo menos vinte deles. Por melhor guerreiro que o estranho fosse, era certo que não daria conta de tantas daquelas criaturas sozinho.

    Ele não podia ficar ali apenas assistindo as feras massacrarem-no; precisava tentar ajudar. Desatou rapidamente os nós da saca e espalhou seu conteúdo na rocha, agarrando uma corda longa e resistente feita com couro trançado. Procurou um lugar onde pudesse amarrá-la, mas não conseguiu encontrar nenhuma saliência ou pedra que servisse.

    A chegada iminente da matilha deu ânimo aos dois cães que antes recuavam. Os dois avançaram na direção da figura que, em aparente desistência, largou o porrete no chão. Kalian pensou em gritar, revelando seu esconderijo para o estranho lá embaixo, mas o que se passou a seguir foi tão rápido que, caso não tivesse visto com seus próprios olhos, jamais acreditaria. Houve um repentino clarão de luz e um som estridente o seguiu. Ele observou as duas feras serem partidas ao meio de alguma forma, sem terem sequer a chance de ganir, os corpos caindo para lados opostos, regando com sangue e entranhas a terra dura e ressecada.

    Magia!, pensou imediatamente, sentindo a garganta seca e o estômago comprimindo-se. A palavra ecoou em sua mente e rodopiou pela barriga, como uma pedra que cai em um poço profundo, quicando nas laterais. Lembrou-se dos livros do pai, que falavam a respeito de magos e feiticeiras usando fogo e raios para destruir seus inimigos.

    A algazarra dos cães aproximando-se por todos os lados retirou Kalian de seu devaneio estupefato. As carcaças aos pés do estranho não pareceram servir como intimidação aos recém-chegados; pelo contrário, o cheiro do sangue fresco os deixava frenéticos. Baba escorria das bocas das feras que rosnavam e latiam de excitação, preparando-se para o banquete. Alguns lambiam o sangue das pedras, tingindo os focinhos de vermelho-vivo.

    Kalian percebeu que o estranho estava ofegante: o que quer que tivesse feito para matar os animais cobrara o seu preço. Ele cambaleou enquanto as criaturas fechavam lentamente o cerco. A qualquer momento elas o atacariam e estaria acabado. Ele já ouvira os aldeões contando sobre tribos inteiras sendo dizimadas por matilhas grandes assim. Ninguém conseguiria sobreviver a um ataque desses sozinho. Ninguém.

    E foi então que aconteceu novamente. No instante em que as bestas se preparavam para atacar, no momento em que seus músculos se retesaram para o bote que por certo acabaria com a vida do pobre desafortunado, aquela estranha luz reapareceu, cortando o ar em um círculo. O som estridente foi o mesmo da vez anterior, e fez Kalian sentir um arrepio na espinha. Era um som perigoso, um som de morte. As feras descobriram isso da pior maneira possível.

    Kalian não era fraco de estômago — já vira muitos animais serem mortos e até abatera alguns. Sangue e vísceras não lhe eram estranhos. Ainda assim, era a primeira vez que presenciava uma carnificina tão grotesca. Carcaças retalhadas e entranhas enegreciam o solo na base do rochedo, ainda movendo-se em espasmos de morte, e o vento frio da noite trazia-lhe às narinas o cheiro pungente dos órgãos internos misturados ao sangue recém derramado. Por pouco, conseguiu segurar a onda de náusea que chegou até a garganta.

    Lá embaixo, o estranho cambaleou e despencou de cara no chão. Com um tilintar metálico, algo brilhante caiu ao seu lado. E foi então que Kalian compreendeu como ele matara as criaturas… Sua espada era mais rápida que o vento.

    Kalian ficou ainda um bom tempo em cima do rochedo antes de estar certo de que era seguro descer. Assim que chegou lá embaixo, aproximou-se com cautela do lugar onde a figura jazia caída, rodeada pelos corpos estraçalhados das feras que, momentos antes, latiam e rosnavam raivosas. A fogueira continuava ardendo, impassível, a luz bruxuleante dançando na lâmina ensanguentada da espada atirada ao chão.

    Era uma arma linda. Não que ele entendesse qualquer coisa de espadas, mas podia dizer só de olhar que aquilo não era um simples pedaço de metal moldado. A lâmina era mais comprida do que o normal, com gume em apenas um lado, além de ser muito mais fina e afiada do que ele acreditava ser possível. Tinha certeza de que ela valia uma fortuna.

    O estranho gemeu e moveu-se de leve, fazendo Kalian saltar para trás com o susto. Ficou imóvel, prendendo a respiração por alguns instantes tensos. Como ele não se mexeu novamente, andou em sua direção e virou-o de costas com cuidado.

    Agora que estava perto, Kalian percebeu que o estranho era, na verdade, uma mulher. Por baixo das peles, usava uma espécie de túnica metálica que ele nunca tinha visto. Curioso, encostou o dedo na malha que, diferente do que ele esperava, não estava fria. Ela trazia o cabelo preto e comprido preso em uma trança enfiada dentro das vestes. Não devia ser muito mais velha do que sua mãe e, ao que tudo indicava, não estava nada bem. Além de ensopada de suor, seu corpo encontrava-se incrivelmente quente, o que não era, de maneira alguma, um bom sinal. Pelo menos ela não estava ferida nem possuía sangramentos aparentes. Pouco ele poderia ajudá-la se aquele fosse o caso.

    Olhou para os lados, preocupado. Precisava tirá-la dali o quanto antes. Não seria surpresa se outras feras aparecessem, atraídas pelo cheiro da matança recente. E ele não estava nem um pouco disposto a virar refeição. Levá-la para o alto do rochedo seria impossível: não teria forças para escalar carregando a mulher. Na verdade, duvidava que conseguisse carregá-la nas costas muito longe, uma vez que ela deveria ter, pelo menos, o dobro de seu peso.

    Apesar de nada educado de sua parte, a única maneira de movê-la seria arrastando-a.

    Não era a melhor das ideias, considerando que ele poderia acabar piorando o seu estado; ponderou por alguns instantes, mas, como a alternativa seria deixá-la para morrer, Kalian seguiu em frente. Pegou a espada caída e a recolocou na bainha presa à cintura da mulher. Posicionando-se atrás dela, fez força para levantá-la por baixo dos braços e a arrastou por alguns passos. Ofegante, repetiu o processo algumas vezes até encontrar uma pequena cavidade na rocha, distante o suficiente, onde a colocou.

    Chamar aquilo de caverna seria o mesmo que chamar o Grande Deserto de amontoado de areia, mas teria que servir. Não tinha forças para levá-la mais longe.

    Subiu novamente o rochedo e recuperou suas coisas. Na volta, ao passar perto da fogueira, percebeu uma bolsa de couro rústico atirada ao chão: agarrou-a e a trouxe consigo. Ao chegar onde havia deixado a mulher desacordada, sentou-se no chão largando suas tralhas de lado e mantendo a bagagem dela no colo.

    Bebericou um pouco de água de seu odre e, com um olho atento na direção da estranha, abriu a bolsa dela: dentro havia um odre de água e um embrulho contendo parte de um pão escuro e amassado, além de duas tiras compridas de carne-seca.

    Um saco de boca amarrada guardava um pequeno retângulo de madeira lisa e avermelhada. O objeto era um pouco maior do que sua mão e prendeu a atenção do rapaz por alguns instantes: ele não tinha aberturas ou dobradiças aparentes, como se fosse maciço. Certo de que ninguém em sã consciência carregaria consigo um pedaço maciço de madeira polida, supôs que deveria ser uma caixa. Sacudiu-a para ver se fazia barulho ou se algo rolaria lá dentro, mas não percebeu qualquer som ou movimento. Apesar da vontade de esmagar a caixa com uma pedra apenas para satisfazer sua curiosidade, guardou-a de volta no saco e o colocou na bolsa.

    Retirou os panos que cobriam o rosto da mulher e improvisou um travesseiro para ela, ensopando um deles com água do odre e o aplicando em sua testa acalorada. Ela mexeu-se de leve quando o pano molhado lhe tocou a pele, o que ele interpretou como um bom sinal. Caso acordasse e fosse capaz de andar, poderia levá-la até sua aldeia. Lá, sua mãe cuidaria da enfermidade e eles, talvez, até recebessem alguma recompensa da mulher.

    Era óbvio que ela vinha do Continente, o que explicava muita coisa. Todos sabiam que os predadores do deserto não temiam o fogo. Muito pelo contrário, aprenderam que perto da luz e do calor é onde encontram com facilidade sua presa favorita: viajantes incautos.

    A mulher devia ser uma aventureira em missão. Ou uma guerreira sagrada. Mesmo que não fosse nada disso, Kalian sabia que ninguém nos três desertos tinha roupas como aquelas ou uma aparência tão imaculada. A pele dela era tão alva quanto se podia ser. Os cabelos estavam em bom estado e só a sua espada deveria valer mais do que os pertences de todos em sua aldeia.

    Mas e se ela for perigosa?, inquietou-se ele. Vira com seus próprios olhos a carnificina que, mesmo doente, a mulher fora capaz de promover. E os clarões de luz que aconteceram quando ela atacou se tratavam, sem sombra de dúvida, de magia. E se ela acordasse e decidisse que ele era um inimigo, e então o estripasse como fizera com os cães d’areia? De repente, arrependeu-se de ter mexido na mochila dela.

    Sentiu-se um tolo por não ter pensado nisso antes. Ele sabia que existiam mulheres-bruxas no continente; já lera livros e ouvira histórias sobre elas. Roubavam recém-nascidos para revirar as entranhas e lançar feitiços. Praticavam magias nefastas, transformando rapazes enamorados em criaturas horrendas, e não tinham piedade nem eram capazes de sentir amor. E ele não duvidava que fossem capazes de abater matilhas inteiras de cães d’areia.

    Mas também sabia que as bruxas eram velhas horrendas, distorcidas pelos malefícios que praticavam, criaturas enrugadas e verruguentas, com olhos injetados e raivosos. E aquela mulher não era velha e, mesmo coberta por sujeira e sangue, ainda era bonita.

    O vento frio da noite acalmou um pouco seus nervos; bruxa ou não, ele não iria abandoná-la ferida. Não era certo. Se, ao acordar, a mulher se mostrasse hostil, ele fugiria correndo sem sequer olhar para trás. Caso contrário, explicaria que revistou suas coisas apenas na tentativa de ajudá-la e que sentia muito se a tivesse ofendido.

    Encostou a cabeça na rocha e cobriu-se novamente com as peles para tentar se aquecer. Teria que ficar acordado fazendo vigília. Caso algum predador fosse atraído pelo cheiro do sangue derramado mais cedo, precisaria fazer algo a respeito. Ainda que não tivesse certeza do que poderia fazer para proteger a si mesmo, muito menos a estranha desfalecida…

    Três coisas ele poderia dizer sobre aquela noite: que foi longa, fria e inquieta. A todo momento, checava para ter certeza de que a mulher não estava acordada, ao que ela apenas gemia, eventualmente balbuciando coisas incompreensíveis. Qualquer sopro de vento mais forte que o normal o deixava tenso, fazendo com que olhasse em todas as direções, procurando as feras que poderiam saltar sobre eles a qualquer instante. Além disso, estava desabrigado e as poucas peles com as quais se agasalhara não impediam que o frio da noite fizesse seu queixo bater, gerando tremores que percorriam seu corpo em uma tentativa desesperada de aquecê-lo. Não culpava mais a mulher por ter acendido uma fogueira; ele mesmo faria uma se não soubesse ser suicídio. Encolheu-se ainda mais contra a rocha gelada e reconfortou-se com o pensamento de que em breve o sol nasceria.

    E, de fato, apenas umas poucas estrelas e a primeira lua continuavam no céu, iluminando fracamente os arredores. Isso era sinal de que faltava pouco para o amanhecer.

    Aos poucos, as cores da aurora começaram a se insinuar através da negritude logo acima. Antes de o sol nascer, guardou as peles e começou a organizar os pertences, alongando-se e fazendo estalar os membros enrijecidos. Precisava mover a mulher para o mais longe possível dali, de preferência para um lugar protegido. Retirou e torceu o pano molhado que aplicara na testa dela, que secara quase completamente, encontrando-se morno pelo contato com a pele quente. Guardou tudo com rapidez e preparou-se para içá-la como fizera na noite anterior.

    Assim que a ergueu, a mulher soltou um gemido alto e contorceu-se. Kalian apressou-se em largá-la no chão. Seus olhos estavam entreabertos e ela engasgou um murmúrio com a voz trêmula:

    — Cor… vo…!

    Kalian abriu a bolsa às pressas e pegou o cantil, imaginando que um pouco de água a ajudaria. Derramou com cuidado algumas gotas na boca da estranha, que bebeu devagar e com esforço. Nem bem ela havia tomado alguns goles, uma forte convulsão sacudiu o seu corpo. Segurou-a com força para que não batesse a cabeça nas pedras; as pálpebras da mulher tremiam freneticamente deixando à mostra apenas a parte branca dos olhos e, depois de alguns espasmos, as convulsões pararam e seu corpo relaxou.

    O sol já nascera e estava começando a esquentar. Kalian enxugou o suor da testa da mulher e de sua própria. Sabia que a condição da estranha era crítica, mas não fazia ideia de que mal a acometia.

    — KALIAN! — gritou uma voz potente às suas costas.

    Sua primeira reação foi virar-se assustado na direção do grito e agarrar a pedra mais próxima ao seu alcance. Logo em seguida, largou a pedra e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se aliviado ao reconhecer quem o chamava.

    Em cima de uma rocha, a alguns passos de onde estava, seu padrasto o olhava com espanto. Ele trajava vestes como as suas, porém pretas e em menor quantidade, dando mais liberdade ao corpo musculoso. Trazia um porrete de madeira reforçado com couro pendurado à cintura e uma bolsa leve presa nas costas. Sua pele escura era marcada por cicatrizes e tatuagens de guerreiro que se espalhavam por todo o corpo até o topo da cabeça raspada, uma para cada fera derrotada.

    — Obur! — chamou Kalian com urgência. — Me ajuda aqui! Essa mulher precisa de ajuda. Achei ela ferida ontem à noite! Se a gente não levar ela pra aldeia ela vai morrer!

    Transcorrido um momento de hesitação, Obur transpôs a distância entre os dois com passos longos e ágeis; sua expressão era assustada e seu olhar corria dele para a estranha com uma velocidade impressionante.

    — Kalian! — repetiu Obur, fixando-o nos olhos. — Que bosta é aquilo ali atrás? — perguntou, apontando freneticamente para suas costas. Antes mesmo que tivesse tempo de abrir a boca para responder, ele continuou:

    — Tua mãe tá loca com o teu sumiço! Me mandô te procurá com medo que tivesse te acontecido alguma coisa! Procurei, procurei e achei um bando de carnicero dando volta no céu! — exclamou gesticulando para cima.

    Kalian não havia reparado, mas um bando de aves de carniça já havia começado a rodear o local onde acontecera a matança na noite anterior.

    — Fiquei preocupado, né! — argumentou o padrasto. — Achei que tinha perdido um filho! Mas, quando chego aqui, acho um bando inteiro de cão d’areia morto, estraçalhado. E tu com uma mulher quase morta no colo! — exasperou-se ele, sem desgrudar os olhos de Kalian. — Que qui tá acontecendo aqui? — exigiu saber.

    Ele não tinha ideia por onde começar a explicar. A situação toda era estranha o suficiente para que ele mesmo estivesse confuso a respeito do que acontecera. Mas sabia que Obur não aceitaria meias respostas ou explicações vagas. Por conta disso, decidiu começar pelo princípio:

    — Como você sabe… — falou, pigarreando e largando a mulher com cuidado de volta no chão. — Saí de casa pra procurar as cabras que fugiram…

    — Fugiram, nada! — interpôs Obur, com um olhar de acusação. — Que tu perdeu!

    — Sim… — admitiu, engolindo o orgulho. — Que eu perdi.

    Ele odiava a maneira como o padrasto fazia com que se sentisse. Como se fosse imprestável, não mais do que um estorvo. Imaginou se ele ficaria mesmo triste se os carniceiros estivessem rodeando seu corpo morto.

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