Os Embriões Crioconservados no Contexto dos Direitos Humanos e sua Tutela na Ordem Jurídica Brasileira
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Os Embriões Crioconservados no Contexto dos Direitos Humanos e sua Tutela na Ordem Jurídica Brasileira - João Alberto de Oliveira Góis
Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. (Bíblia cristã, 1º Coríntios, 13:1)
A tutela da vida humana nunca se revelou tão sensível quanto nos dias atuais em que os avanços das ciências engendram o domínio da natureza através da biologia da vida consubstanciada na biotecnologia.
Esses avanços levaram ao desenvolvimento de técnicas de procriação assistida de humanos, a exemplo da fertilização in vitro, que permite a um sem números de pessoas a realização do sonho da procriação, ainda que portadores de infertilidade ou esterilidade, no exercício dos direitos fundamentais ao livre planejamento familiar e à felicidade.
Todavia, esses avanços trouxeram atualidade a uma controvérsia antiga: quando se tem a vida por iniciada? Teorias biológicas, filosóficas, teológicas, jurídicas disputam a respeito sem se chegar a um consenso.
Especificamente sobre o processo de reprodução assistida, surgiu a problemática sobre a natureza jurídica e destinação daqueles embriões, seres humanos, que se revelam com potencial para se tornarem pessoa – denominados viáveis - porém, porque excederam ao necessário ao procedimento de procriação assistida, restam no limbo existencial.
Nesse contexto, entra o grande dilema de os considerar algo apto, ainda que sob o manto de salvar vidas com doenças degenerativas ou deficiências crônicas, a servir de manipulações em pesquisas com uso de células-tronco deles, relegando-os a um objeto de pesquisa com albergue da doutrina ética utilitarista, ética essa bem desenvolvida por Jeremy Bentham, numa lógica de que os fins justificariam os meios: tudo é permitido, desde que útil; ou considerá-los algo mais que simples instrumento de salvação, algo que revela uma humanidade, um ser humano, em estado primitivo, mas com potência de vir a ser pessoa, com guarida na teoria ética da responsabilidade, defendida por Hans Jones.
Este estudo tem como marcos teóricos a ética da responsabilidade de Hans Jonas (1994); na teoria sobre tratados Internacionais de Direitos Humanos de Flávia Piovesan (2012); no estudo sobre o da vida humana na fase embrionária de Jussara Meirelles (2000), além de outros autores nos campos das disciplinas da filosofia, do direito, da ética.
Adota-se neste trabalho o método dialético-argumentativo com base em pesquisa bibliográfica. Desenvolver-se-á o estudo em três capítulos: o primeiro sobre os Direitos Humanos, seu desenvolvimento, concepções atuais, multiculturalismo e o relacionamento deles com os embriões extracorpóreo; o segundo quanto a biotecnologia, bioética e biodireito relacionados a procriação humana assistida e concepções sobre o início da vida humana do ponto de vista biológico, filosófico, religioso e jurídico, com especial atenção à teoria o terceiro contempla a tutela do embrião crioconservado na ordem jurídica brasileira, analisando-se ainda o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 pelo Supremo Tribunal Federal(STF), em que se discutiu a questão sobre o início da vida humana.
Estudar-se-ão as referidas decisões do STF, para concluir que, ao firmar a tese de que o início da vida não se encontra fixado na Constituição Federal, foi relegado a sua definição a lei de ordem infraconstitucional, no caso o Código Civil, que acolheria a tese de que o início da vida, efetivamente, se daria com o nascimento, embora o julgamento refira-se ao momento da nidação como o de início da tutela da vida, de que é exemplo a proibição do aborto ao incriminá-lo. No julgamento da ADPF 54, o STF foi mais longe: decidiu que o início da vida humana somente teria início com a partir da nidação e da existência de viabilidade de sobreviver.
Essa, a questão que será desenvolvida neste estudo, para concluir que os embriões crioconservados têm um direito de vir a ser pessoa, sendo ser humano a partir de sua concepção, a despeito do que preconizado na Lei de Biossegurança, tida como conforme com a Constituição Federal, infelizmente, com a chancela do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 3510, e reforço do julgamento no ADPF 54.
Será demonstrado que o STF, no julgamento em apreço, esqueceu-se
de que o Pacto de São José da Costa Rica, documento internacional internalizado na República Federativa do Brasil desde 1992, é expresso em reconhecer como o início da vida o momento da concepção (artigo 4º, I). Esse Pacto tem hierarquia supralegal, conforme reconheceu o próprio STF no julgamento mais recente no bojo do recurso extraordinário RE 466.343/SP, ou mesmo se constituiria num autêntico direito materialmente fundamental, por força da cláusula de abertura do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal.
Dessa forma, este estudo desenvolverá e se guiará pela diretriz de que o embrião humano crioconservado e viável, decorrente de excedente em procedimento de procriação assistida, merece tutela jurídica adequada, porque já se constitui em ser humano e numa individualidade ético-biológica sensitiva e capaz de vir a ser pessoa.
Enfim, porque o autor deste singelo trabalho muito gosta da história dos Direitos Humanos, desenvolveu nele, como introito, uma visão panorâmica deles, a realçar que todo e qualquer direito objetivo, e sobretudo sua concretização, é produto dum processo histórico-dialético da pessoa humana, de todas as pessoas humanas, que devem buscar sua autoimagem e a dos outros semelhantes em verdadeira alteridade, como ser capaz de se conduzir, realizar sonhos e propiciar mudanças emancipatórias para si e em seu meio de vivência.
2. DIREITO HUMANOS: CONCEPÇÕES, MULTICULTURALISMO E ESTADO ATUAL EM RELAÇÃO À REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
Temos o direito de ser iguais, quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes, quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (Boaventura de Sousa Santos)
2.1 A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS
A jornada dos Direitos Humanos acompanha, em certa medida, a jornada da própria civilização, sendo, por isso, relevante estudar e expor seus marcos e fundamentos teóricos e históricos, para se fixar o quadro geral em que se insere o embrião humano como ser humano, cabendo ao Estado e sociedade reconhecer esse estado.
É plausível atribuir ao Egito a primeira civilização a formular, ainda que rudimentarmente, um sistema jurídico individualista; e aos mesopotâmios, os primeiros códigos com regras jurídicas. O documento egípcio com regras de direito, que se tem notícia, é o Papiro de Berlim, da IV dinastia (GILISSEN, 1995, p 51).
Ainda na antiguidade, durante o período de Direito Cuneiforme¹, surgiram os primeiros textos de regras jurídicas, como o Código de Hamurábi (1690 a. C.), possivelmente uma das primeiras codificações sobre a vida, propriedade, a honra, com supremacia das leis sobre os governantes (GUERRA, 2014, p. 4).
Merece notícia o fato de que, no longínquo ano 539 a.C., o rei Ciro da Pérsia conquistou a cidade da Babilônia. Suas ações sobre o povo conquistado marcaram um avanço para o homem. Libertação dos escravos, liberdade religiosa, igualdade racial foram algumas das medidas adotadas por ele, escritas num cilindro de argila cuneiforme. Essa peça de argila hoje é conhecida como Cilindro de Ciro, a qual, apesar de algumas controvérsias, é tida como a primeira carta dos Direitos Humanos no mundo, tendo relevante valor histórico. Seu texto está traduzido nas seis línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas prescrições guardam semelhanças com os primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.²
Segundo Comparato (1999, p. 8), no período axial³, entre 600 e 480 a. C., existiam no mundo cinco dos maiores doutrinadores de todos os tempos – Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel -, os quais apresentavam visões de mundo fixadoras de linha divisória da história da humanidade.
Posteriormente, surgem na Grécia reflexões sobre a igualdade e liberdade do homem (MORAES, 1997, p. 27). As leis gregas, no século VI a. C., em especial as de Atenas, revelavam a importante diferença de que eram elaboradas democraticamente, diferenciando-se, assim, das outras leis da antiguidade. Resultavam da vontade popular reunida em Assembleia (GUSMÃO, 1998, p. 284). Não obstante, a visão filosófica grega não consolidou um sistema de garantias do indivíduo em face do Estado ou governantes, tampouco a cidadania é tida como todos do povo, uma vez que violações à personalidade do cidadão, tal qual concebida à época, não tinha uma tutela jurídica institucionalizada, ficando restrita a uma reação da pólis, com parâmetro numa ideia vaga de justiça, cuja concepção de mundo era sobretudo filosófica (GUERRA, 2014, p. 6).
Por sua vez, os romanos, que pensavam juridicamente, distinguiram o justo do lícito. Daí que conceberam dimensões da ordem jurídica: o direito natural, o racional e o perpétuo. Desses, gozava de superioridade o direito natural. Marco importante desse período, foi a Lei das XII Tábuas, consagradora de liberdade, propriedade e proteção ao cidadão (GRECO FILHO, 1989, p. 25).
No período de predominância do Cristianismo, segundo o qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus
, entra em evidência a concepção de que a pessoa humana teria direitos na organização política e possuía um vínculo direto com a divindade, com superação da visão de que o Estado seria uma unidade perfeita, passando o homem à condição de pessoa. A Patrística, primeira grande escola cristã, cujo representante maior foi Santo Agostinho, ensinou que o Estado secular seria imperfeito, justificando-se como transição para o Estado divino, a Civitas Dei. Essa escola assimilou elementos das culturas grega e romana, e tinha preocupações em valorizar a dignidade humana (ALVES, 2001, p. 21).
A segunda escola cristã - a Escolástica - cujo maior representante foi Santo Tomás de Aquino, busca no homem a natureza comunitária, com vistas à constituição dum Estado justo. Tomás de Aquino, influenciado pelo pensamento aristotélico, formulou uma síntese do pensamento cristão sobre a pessoa humana, conforme a qual a dignidade humana decorre da imagem e semelhança de Deus. Para essa concepção, pessoa é um fim em si mesmo e não um meio para qualquer outro fim, consoante o pensar tomista. Dessa forma, o Cristianismo revela o homem, com sua visão de dignidade humana e fraternidade universal, consistindo isso no seu caráter revolucionário da época. Nesse sentido, diferencia-se da concepção greco-romana de homem, cuja ideia, enquanto indivíduo, natureza e dignidade, lhe era oculta. Porém, o pecado da visão cristã em voga foi a ausência de mecanismos concretos para proteção da pessoa humana, cuja construção teórica bem fundada se revelava de pouca eficácia prática (CONCEIÇÃO, 1990, p. 19).
De todo modo, essa concepção cristã, com sua doutrina de dignidade humana, consistiu no marco do antes e depois
, para o desenvolvimento de um verdadeiro humanismo que serviu de mola propulsora já na era moderna, a exemplo da encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, editada em 1891 (ALVES, 2001, p. 15).
Outro marco para os Direitos Humanos, séculos depois, foi a Carta Magna – a Grande Carta. Em 1215, depois de o rei João sem terras da Inglaterra ter exercido o poder de forma abusiva, com cobranças excessivas de tributos, os súditos o forçaram a editar esse texto de lei, limitando o poder real frente aos barões, então grandes proprietários de terras. Essa carta de direitos assegurou a todos os cidadãos livres possuírem e herdarem propriedade, serem protegidos de impostos excessivos e os princípios de processo devido e igualdade perante a lei. A maior conquista dessa carta, ainda que implícita, foi que, pela primeira vez, o rei passou a se submeter às leis que editava, sendo a semente mais visível da concepção do império da lei (COMPARATO, 1999, p. 60-65).
A despeito desse marco, a civilização não se deu por satisfeita. A humanidade pedia passagem no seu incessante processo dialético-histórico. Nuvens de mudanças ensaiavam o crepúsculo da Idade Média, com o raiar do Renascimento com as ideias iluministas.
O marco posterior dos Direitos Humanos pode ser encontrado na ação petição de direitos (Peticion of Rights), elaborada em 1629 pelo parlamento inglês e submetida ao rei Carlos I como uma declaração de liberdades civis, na qual se firmaram os princípios de que nenhum tributo poderia ser imposto sem o consentimento do parlamento, nenhum súdito poderia ser encarcerado sem motivo demonstrado.
Nesse período, desponta o jusnaturalismo moderno – mais de cunho racionalista - com a doutrina filosófico-jurídica que funda os Direitos Humanos era moderna, que rompe com a tradição do direito natural antigo e medieval de acordo com o filósofo Thomas Hobbes (século XVII). O modelo jusnaturalista ou hobbesiano tem como principais características: i) individualismo: indivíduos que vivem num estado de natureza anterior a criação do Estado, com direitos intrínsecos; ii) estado de natureza: é um pressuposto comum a todos os pensadores deste período, os caracterizando de modo divergente; iii) contrato social: é entendido com um pacto artificial, entre indivíduos livres para a formação da sociedade civil; iv) o Estado: nasce da associação dos indivíduos livres, para garantir a efetiva realização dos direitos naturais inerentes aos indivíduos (TOSI, 2008).
O jusnaturalismo moderno teve uma importante influência sobre as grandes revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII: a declaração de Direitos de 1668, que concluiu o período da revolução inglesa; a Declaração dos Direitos do Estado da Virgínia de 1777; a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão da Revolução Francesa de 1789 que abriu caminho para a proclamação da República. Os direitos de tradição liberal têm o seu núcleo central no chamado direito de liberdade, conforme já se demarcou e se expressará a seguir (TOSI, 2008).
Por sua vez, a 4 de julho de 1776, o congresso dos nascentes Estados Unidos da América aprovou a Declaração de Independência, em que se acentuaram duas categorias de direitos: direitos individuais e o direito de revolução, ideias que vieram a inspirar a Revolução Francesa. Essa importante Declaração previu que todos os homens são iguais perante Deus e que Este lhes deu direitos inalienáveis, acima de qualquer poder político, citando a vida, a liberdade, a busca pela felicidade e relacionando e confrontando uma série de abusos cometidos pelo rei da Inglaterra, explicando os motivos justificadores da separação política.
A Revolução Francesa, iniciada em 1789, implicou a formulação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que consolidou os ideias iluministas. Pensadores como Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant foram fundamentais para a formalização dos Direitos Humanos. Hobbes justificava a existência do Estado, defendendo que este era necessário para se evitar uma guerra entre os civis; Locke, com o jusnaturalismo, defendia a existência de direitos naturais a todos os seres humanos, como o direito à vida, a liberdade e a propriedade (COVOLAN, 2010, p. 3-4).
Era uma época em que o Estado limitava-se à garantia dos direitos individuais através da lei, e, por isso, esses direitos são chamando de direitos de liberdade negativa, por ter como objetivo a não-intervenção do Estado na esfera de autonomia das pessoas. Não obstante, as várias declarações de direitos das colônias norte-americanas não consideravam os escravos como titulares de direito, tanto quanto os homens livres; as mulheres também não eram consideradas como sujeitos de direitos iguais aos dos homens, fatos que deporiam contra a vocação de universalidade dos Direitos Humanos, somente alcançadas mais de um século a frente.
Dessa forma, parcela significativa da humanidade ficava excluída do gozo dos direitos existenciais da pessoa humana, e portanto da tutela estatal e dos nascentes Direitos Humanos, pois eles ainda não valiam nas relações internacionais; com efeito, nesse período na Europa, ao mesmo tempo em que proclamavam os direitos universais do homem, não os universalizavam concretamente: o discurso não se fazia realidade. Assim, a tradição liberal dos direitos do homem, que domina o período XVII até a metade do Século XIX, mostra-se insuficiente para resolver problemas criados pelo capitalismo. Nessa época, o socialismo encontra suas raízes nos movimentos mais radicais da Revolução Francesa, que queriam também a realização da igualdade (TOSI, 2008).
A alvorada do século XX iniciou-se sob o influxo do imperialismo, presente acirrada disputa por territórios entre Estados-nações, como Inglaterra, França e Alemanha, para suprir a demanda por matérias primas, mercados consumidores e exportação de excedentes de recursos financeiros, acumulados nas primeiras décadas de industrialização no continente europeu, e emigrações de população ociosa – apelidada com precisão de Ralé por Hannah Arendt - , para as novas possessões, sobretudo, nos continentes africano e asiático (ARENDT, 1989, p. 348).
Merecedores de registro são