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Trabalho análogo à escravidão:  reconhecimento e fundamentalidade
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Trabalho análogo à escravidão:  reconhecimento e fundamentalidade
E-book262 páginas4 horas

Trabalho análogo à escravidão: reconhecimento e fundamentalidade

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Sobre este e-book

A obra investiga as origens sociais, filosóficas e fáticas que levam a submissão do ser humano a condições análogas à escravidão, mas, para além disso, também traz direções a seguir na busca de possíveis soluções aos problemas concretos identificados pela pesquisa.

O trabalho em condições análogas a de escravidão na sua pior forma, em que trabalhadores são reduzidos a condições degradantes e de privação de liberdade, atinge o direito mais elementar do ser humano, o de se autodeterminar. A privação de liberdade das mais diversas formas encontradas no fenômeno em estudo impacta na agenda existencial de cada indivíduo, interrompendo ou mudando o curso de seu projeto de vida, e caracteriza o dano existencial.

Da violação aos direitos fundamentais advém o dever de reparar o dano causado, e o principal desafio é a obtenção da reparação justa e adequada do dano existencial, diante de vários obstáculos que devem ser superados pelo trabalhador, como o tabelamento dos danos imateriais, a onerosa carga probatória exigida e ainda o entendimento jurisprudencial equivocado quanto à caracterização do trabalho análogo a escravo, situações enfrentadas na obra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de set. de 2023
ISBN9786525292571
Trabalho análogo à escravidão:  reconhecimento e fundamentalidade

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    Trabalho análogo à escravidão - Vanessa Rosin Figueiredo

    CAPÍTULO 1 DAS REMINISCÊNCIAS HISTÓRICAS E CULTURAIS DA ESCRAVIDÃO À CONTEMPORANEIDADE DO TRABALHO ANÁLOGO AO ESCRAVO NO BRASIL

    1.1 REMINISCÊNCIAS HISTÓRICAS E CULTURAIS DO TRABALHO E DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

    É relevante para a presente análise identificar a origem do trabalho análogo ao escravo, bem como os fatores sociais, culturais e econômicos que, de alguma forma, influenciaram a prática atualmente combatida. Este capítulo tratará dessas observações pontuais sem nenhuma pretensão de avançar no trabalho de historiadores, mas, sim, de identificar o início do fenômeno e os fatores que desencadearam tal prática repulsiva que perdura até a atualidade.

    A escravidão na antiguidade foi o principal instrumento utilizado para a expansão econômica e social da humanidade. Com os escravos, foi possível a fixação de territórios para a produção de alimentos com a agricultura e com a criação de animais, modificando profundamente a forma de sobrevivência e abandonando as técnicas de coletar frutos, de caçar e de pescar⁷.

    Os povos dominantes anexavam novos territórios por meio de guerras, sujeitando a população conquistada à condição de prisioneiros e escravos. Chegou-se ao ponto, inclusive, de registrar expressiva quantidade de escravos em relação à população existente em Roma e Atenas, como anotam Nascimento, Ferrari e Martins Filho⁸: no século I, A.C., a terça parte de Atenas e, em igual número, Roma, formava a população escrava.

    Assim, por milênios, a escravidão foi praticada de forma aceitável, comum e legalizada por diversos povos. Somente a partir do século XIX é que o tráfico e o comércio de pessoas passaram a ser repugnados pela sociedade e, em muitos países e regiões, foram abolidos.

    Todavia, em outro período ainda fundamental para a história da humanidade, a escravidão e o tráfico de escravos ligaram-se à expansão dos domínios do velho mundo e ao nascimento das colônias. Tais objetivos moviam os reinos e os impérios a uma disputa acirrada pelas novas terras ainda inexploradas. No Brasil não foi diferente, território colonizado por portugueses que pretendiam explorar os recursos da colônia, especialmente o cultivo da cana-de-açúcar, de café e de algodão.

    O entendimento predominante à época subsistia em que as colônias somente seriam prósperas se possuíssem terras férteis e em abundância; além disso, se desenvolvessem a monocultura extensiva em larga escala para o mercado de exportação.¹⁰

    Logo, percebe-se que as colônias formadas apenas por agricultores de subsistência, que trabalhavam a terra para si mesmos, não impulsionaram o desenvolvimento econômico como nas demais colônias, que utilizavam o trabalho escravo. Eric Williams¹¹ relata o caso da Geórgia, em que havia a proibição de contratação de mão de obra escrava pelos mandatários da colônia; assim, os fazendeiros não possuíam meios de produção. A proibição, contudo, foi anulada.

    Nota-se que, ainda que o uso da mão de obra escrava fosse repulsivo, os produtores das colônias entendiam que a escravidão não era uma escolha em detrimento do trabalho livre, ou seja: não havia outra escolha, já que a Europa contava com uma reduzida população no século XVI e não haveria trabalhadores livres suficientes para uma produção em grande escala.

    Segundo Williams A escravidão, na visão dos produtores, era essencial e fez parte daquele quadro geral de tratamento cruel imposto às classes desfavorecidas, das rigorosas leis feudais e das impiedosas leis dos pobres, da indiferença com que a classe capitalista em ascensão estava começando a calcular a prosperidade em termos de libras esterlinas e [...] acostumando-se com a ideia de sacrificar a vida humana ao Deus do aumento da produção."¹²

    E, para além de ser a mola propulsora do capitalismo no Novo Mundo, a escravidão ganhou feições racistas e identitárias numa visão estreita da realidade que movia a lógica da escravidão, que era basicamente um fenômeno econômico. A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão. O trabalho forçado no Novo Mundo foi vermelho, branco, preto e amarelo; católico, protestante e pagão¹³.

    Os primeiros relatos de escravidão nas colônias não foram do negro, mas do índio, que, diante das condições degradantes impostas, das doenças dos brancos e da ausência de liberdade, pereceu, como detalha Fernando Ortiz: submeter o índio às minas, a seu trabalho monótono, insalubre e pesado, sem senso tribal, sem ritual religioso [...] era como lhe tirar o sentido da vida. [...] Era escravizar não só sua carne, mas também seu espírito coletivo¹⁴.

    A fragilidade demonstrada pelos índios logo resultou em mudança de planos dos investidores das novas colônias, porque, sem resistência ao trabalho excessivo, não poderiam os nativos produzir em quantidade e em tempo necessários para a obtenção de lucros almejada; além disso, o estoque de indígenas era pequeno, fazendo com que sua escravidão não fosse lucrativa, como demonstra Eric Williams:

    Os futuros produtos de exportação do Novo Mundo, o açúcar e o algodão, demandavam uma força que o índio não tinha, e exigiam o robusto ‘preto do algodão’, assim como, na Louisiana, a necessidade de mulas fortes para o açúcar gerou o epíteto ‘mulas do açúcar’. Segundo Lauber, ‘comparados as somas pagas por negros na mesma época e no mesmo lugar, vê-se que os preços dos escravos índios eram consideravelmente mais baixos’.¹⁵

    No entanto, isso não significa que o escravo negro foi o substituto imediato do índio. Nesse período, não somente escravos negros eram comprados ou vendidos para impulsionar as produções agrícolas. Juntamente com esse contingente de escravos negros, também foi trazida para as colônias do novo mundo a mão de obra dos brancos pobres, contratados como indeture servants, ou contrato de servidão, o qual estabelecia o engajamento reconhecido por lei em que o contratado deveria prestar serviço por tempo determinado para custear o preço da passagem e, caso não cumprissem o contrato, poderiam ser vendidos em hasta pública.¹⁶

    Surgiu daí a figura do engajador, ou agenciador de mão de obra, que muito assemelha-se aos engajadores do trabalho análogo ao escravo denominados gatos. O engajador do período das colônias fazia propostas tentadoras aos engajados, que – enganados – se sujeitavam a viagens longas em navios de cargas sem espaço ou ventilação, situação que, em muitos casos, levava-os à morte, conforme registra Eric Williams:

    O transporte dos engajados brancos mostra à sua verdadeira luz os horrores da Rota do Meio (como era chamado o comércio triangular entre a Inglaterra, a costa da África e as Índias Ocidentais), não algo incomum ou desumano, mas parte integrante da época. Os emigrantes iam comprimidos como sardinhas. Segundo Mittelberger, para cada um deles era designado um espaço de sessenta centímetros de largura por 1,80 metros de comprimento na horizontal. As embarcações eram pequenas; a viagem longa; a comida; a falta de refrigeração, ruim; as doenças inevitáveis. Uma petição ao Parlamento em 1659 descreve como 72 engajados ficaram trancafiados sob o convés durante toda a viagem, por cinco semanas e meia, entre cavalos de forma que, pelo calor e umidade sob o trópico, suas almas desfaleceram.¹⁷

    Os apontamentos e os registros do autor Eric Williams levam à conclusão de que, nessa mesma época, surgia, juntamente com a escravidão negra, a escravidão branca, instituída por meio da servidão por dívida assemelhada às formas contemporâneas de escravidão e com as mesmas técnicas de aliciamento dos engajados.

    Portanto, ainda que em diferentes condições de contratação, já que havia um contrato precário de trabalho no caso do branco engajado, essa mão de obra branca e pobre estava sujeita a situações semelhantes de degradância, pois o contrato por tempo determinado, antes voluntário e livre, e firmado em troca da viagem e do sustento, acabava por transformar-se a longo prazo em uma relação de propriedade sobre os direitos da pessoa e do seu corpo, como se fosse verdadeiro objeto.

    Segundo afirma o mesmo autor, esse transporte de engajados e de degredados gerou um poderoso setor de interesses econômicos na Inglaterra e movimentou as colônias. A tentativa era sempre de minimizar a situação dos engajados ou degredados, modificando, por exemplo, o nome do tipo de contrato de "servitude, que indicaria escravidão, por service", que indicaria serviço, mas nem assim houve qualquer mudança no tratamento dos engajados brancos que eram açoitados da mesma maneira que os negros.¹⁸

    É bem verdade que a escravidão do engajado branco era por tempo determinado, enquanto a do negro perdurava por toda a vida. Ademais, o engajado branco possuía direitos, muito embora fossem limitados; ele os possuía e eram reconhecidos por lei e pelo contrato firmado. Logo, ele nunca foi considerado bem móvel ou imóvel como o negro. Além disso, ao final do contrato, o engajado poderia, conforme as condições contratuais, obter um lote de terras e invariavelmente tornava-se sitiante; assim, foram os pioneiros para expansão na América e em Cuba.¹⁹

    Apesar de a contratação de engajados funcionar por algum tempo, apresentava sérios inconvenientes, pois a demanda de engajados estava tornando-se cada vez mais escassa com todos os processos judiciais e com as condenações que os negociadores de mão de obra enfrentavam. Dessa forma, os engajados não chegavam à América em quantidade suficiente para substituir aqueles que já haviam cumprido o prazo de seu contrato. Outrossim, nas fazendas era muito mais fácil a fuga dos engajados do que a dos negros, que poderiam ser capturados a qualquer tempo como fugitivos ou vagabundos. Por isso, mesmo os alforriados acabavam ficando na localidade em que eram conhecidos, estando menos sujeitos à captura.²⁰

    Além disso, o engajado esperava o recebimento de terras como dito, enquanto para o negro não havia essa perspectiva. Aliás, podiam arrancar com açoites a obediência mecânica e completa sujeição moral e intelectual necessária à escravidão. Todas essas diferenças fizeram com que os novos latifundiários racionalizassem a escravidão negra como a alternativa econômica mais viável, especialmente porque o escravo negro era mais barato, já que o custo de um escravo branco por dez anos de serviço comprava a vida inteira de um negro:

    Como declarou o governador de barbados, os fazendeiros locais descobriram pela experiência que três pretos trabalham melhor e mais barato do que um branco. O serviço forçado branco foi a base histórica sobre a qual se edificou a escravidão negra. Os feitores de degredados nas fazendas não tiveram dificuldade em se tornar feitores de escravos. Eis aí, portanto, a origem da escravidão negra. A razão foi econômica, não racial; não teve nada a ver com a cor da pele do trabalhador, e sim com o baixo custo da mão de obra. Comparada ao trabalhador indígena e branco, a escravidão negra era muito superior.²¹

    Portanto, a lógica que movia a economia da época era de que a agricultura de pequenas propriedades fazia prosperar os brancos engajados e, em contrapartida, as grandes fazendas necessitavam do fornecimento de mão de obra escrava em grande quantidade. Todas essas razões contribuíram de forma exponencial para o aumento da escravidão negra nas novas colônias, bem como para o tratamento desumano e degradante ao qual os escravos negros foram submetidos.

    Como resposta a tantas crueldades cometidas contra os escravos, irromperam-se, em todo mundo, movimentos abolicionistas, que somente ganharam maior projeção a partir da Revolução Francesa, que, impulsionada por ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, concedeu direitos políticos iguais aos negros livres em 1792 e emancipou os escravos em 1794, muito antes que qualquer outra nação. Posteriormente, foi seguida da Inglaterra, que determinou o fim do tráfico de escravos em 1807 e a abolição dos escravos nas colônias britânicas em 1833.²²

    É importante destacar, nesse processo abolicionista, a participação marcante e a notável perseverança e resistência mantida pela colônia de Saint-Domingue, que não se curvou diante do poderio armamentista e econômico da França.

    Diante de tal resistência, aliada aos inúmeros outros movimentos e petições, a França declarou em 1794 a abolição da escravidão, libertando os cidadãos das colônias como cidadãos franceses com todos os direitos assegurados. No entanto, em 1802, Napoleão prendeu o líder da rebelião da Colônia em Saint-Domingue, Toussaint Louverture, e restabeleceu a escravidão nas colônias. A colônia, contudo, manteve firme a sua resistência ao exército de Napoleão, sendo a primeira nação liberta liderada por escravos, atualmente conhecida como Haiti.

    Os EUA somente aboliram a escravidão em 1865, quando a 13ª e 14ª Emenda da Constituição foi ratificada. A demora foi especialmente mantida pela insistência das colônias do sul, as quais, desde o início da colonização, utilizavam da mão de obra escrava nas monoculturas dos grandes latifúndios.

    No Brasil, a escravidão negra também serviu ao impulsionamento da exploração de novas riquezas e da ocupação das novas terras pelos colonizadores portugueses entre os séculos XVI e XIX. A contribuição da força do trabalho escravo para o desenvolvimento e para a expansão econômica da nova colônia é extremamente relevante; entretanto, da mesma forma, é indiscutível o alto custo pago pelos escravos pela exploração e pela humilhação sofridas, por tornarem-se mercadoria, coisa e patrimônio do seu senhor.

    O país também foi um dos últimos a abolir legalmente a escravidão em 1888. Os escravos, agora livres, diante da pobreza e da necessidade de sobrevivência, forçaram-se a servir novamente os mesmos senhores, porém dessa vez na condição de trabalhador livre. Todavia, a transição do negro escravizado para uma condição de igualdade de tratamento com o branco livre não ocorreu imediatamente, mas, sim, de forma lenta e gradual, como assevera Emília Viotti da Costa:

    Com a abolição, exigiu-se a elaboração de uma nova autoconcepção de status e papéis sociais por parte dos negros e mestiços, a formação de novos ideais e padrões de comportamento. Ela implicava também na mudança de comportamento do homem livre e branco diante do liberto, do negro não mais escravo. Impunha-se um novo ajustamento inter-racial. A súbita equiparação legal entre negros e brancos, em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de valores que se elaborara durante todo o período colonial. Econômica, social e psicologicamente, os ajustamentos foram lentos.²³

    Além desse contingente de escravos livres, houve, ainda, um grande movimento dos produtores rurais, antes da extinção da escravatura, para contratação de imigrantes que, embora livres, trabalhavam nas mesmas condições degradantes que os escravos:

    A fórmula utilizada pela grande propriedade cafeeira foi a importação de estrangeiros, inicialmente da Itália e, posteriormente, da Espanha, Portugal e Japão. Eles formaram um fluxo volumoso e sucessivo, produzindo vasta oferta de braços. Sem recursos, isto é, previamente expropriados, os imigrantes chegavam com o sonho de fare l’América, ou seja, vieram dispostos a se submeter à disciplina do trabalho. Essa foi a solução mais adequada para o capitalismo em formação nessa parte do país, pois, de outra forma teria sido necessário mobilizar o desacreditado segmento nacional que foi incorporado ao processo produtivo em outras regiões, durante o século XIX, mas não em São Paulo.²⁴

    A força do trabalho escravo negro, então já escassa, foi aos poucos sendo substituída pelos imigrantes, contudo ainda era necessária a exploração dessa mão de obra para se manter o avanço capitalista. Dessa forma, para a continuidade dos lucros pelos grandes proprietários de terra, especialmente em decorrência da explosão cafeeira em São Paulo, a inciativa privada passou a recrutar e a distribuir os imigrantes nas lavouras de café.

    Em São Paulo a imigração processou-se de maneira inteiramente diferente. Foi a repressão ao tráfico e o consequente encarecimento do escravo que estimularam a imigração. Não houve colonização, mas importação de braços. Não se procurou, no princípio, colonizar, mas substituir o braço escravo pelo imigrante. Mais tarde, depois do 13 de maio, quando já estava enraizada a cultura do café em grandes fazendas, não se cuidou de colonizar, mas de fornecer braços à lavoura. Essa é a frase que se lê nos jornais do tempo, é o que pedem os deputados na Assembleia

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