A pele que ferve
De Paulo Costa
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Sobre este e-book
O romance ambientado no Brasil e Portugal e pega fogo do começo ao fim. Tensão, magia e forças da natureza.
História de uma menina da periferia do Recife, queimada em partes do corpo, que vira top model internacional. A narrativa aborda questões como sustentabilidade, agroecologia e luta contra o autoritarismo, com toques de realismo fantástico. Tudo com muita música pernambucana e batuques de terreiro.
Paulo Costa
Paulo Costa é escritor, jornalista, publicitário, roteirista, DJ do projeto RADIOLA NO MERCADO e produtor de podcasts. Seis livros publicados. BALADA PARA UMA SERPENTE, romance policial em meio ao movimento mangue. VOCÊ E A MÍDIA, manual de gestão da comunicação pessoal. ESTAÇÃO SILÊNCIO, romance com foco no não dito, naquilo que as pessoas deixam de dizer. A PRATA DAS PÉTALAS narra a vida de uma ex-rainha dos cabarés do Porto do Recife, que vira moradora de rua. VERSOS PUTOS, poemas curtos, haikais, que levam tempo na mente.
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A pele que ferve - Paulo Costa
1 Noite de tambores e incendiários
Noite de sexta-feira. Batuques poderosos orquestrados às trovoadas. Raios deixam rastros rubros quando riscam o céu. O Portão do Gelo, na periferia do Recife, às vezes pega fogo. Lá pelas bandas de Beberibe. Famílias pobres sentem um pouco de calor; outras, medo. Tambores! Algo prestes a acontecer. Um porco, cabrito, galinha, ou uma criança, talvez mais, desaparecerão nas chamas entre o aguaceiro que faz ruas em rios. Fogo no céu bate asas. Assim diz o povo. Uns acreditam, muitos tiram onda. Mãos da cor da noite sem lua e sem estrelas tocam forte no couro dos instrumentos. Em alguns barracos, jovens batem cabeça na pancada das alfaias e guitarras do movimento mangue. Som pesado, maracatu e rock and roll, despencando feito um zepelim de chumbo em algum rádio ou em outra engenhoca sonora, que só alguém muito pobre guarda como relíquia. Quem sabe um toca-fitas daqueles grandes de carregar no ombro, ao pé do ouvido. Coriscos abrem asas na tela noturna.
Em Azenhas do Mar, Portugal, crianças comem churrasco, carne vermelha feito brasa. Os novatos se abraçam aos veteranos jovens e, assim feito comida quente e reconfortante, parecem cair do céu, chegando aos bandos, gaivotas de vários mares. Vai e vem de pessoas no grande salão da Fundação Fênix. Calor. Amor. Medo. Retinas inseguras por sofrimentos carregados na alma se cruzam com outras transbordando esperança. Uma vida nova é possível. Ondas pipocam nas rochas que seguram o pequeno vilarejo ali incrustado para não despencar no oceano. Na imensa mesa redonda com toalha púrpura, ela, toda de vermelho, abre os braços, asas que saúdam os olhares infantis e adolescentes que tentam se reconhecer enquanto tateiam futuros, e as bocas mastigam ansiosas. Marlua abraça todas as pessoas com seus gestos e rosto confiantes, acolhedores.
Minha gente, começa novo tempo na Fundação Fênix! Novas crianças chegam enquanto jovens quase adultos seguem seu caminho ao novo e melhor futuro. Renovação! Faça-se o que tem que ser feito de melhor e com muita luz. Novas e novos, sejam bem-vindos! Os que partem, sigam iluminados. Aumentem o som que esta noite nós celebramos. É festa! Que nossa Black Chama brilhe intensamente!
O peso do Manguebeat ainda ecoa distante nos becos periféricos de Hellcife, como a galera se refere à cidade. Talvez a música role em uma bike com alguém segurando caixa de som na garupa ou reverberando nas caixinhas potentes compradas perto do Mercado de São José, ou na lojinha dos chineses. As batidas se encontram com o batuque agora quase inaudível do terreiro Xabã. Pai Badu, de olhos cerrados, suspira. O ar entra e sai do seu corpo como ventania.
O céu nesta noite de sexta-feira ficou vermelho, irmanadas pessoas! Eu vi! Nós vimos, sentimos... O branco que nos rodeava foi tingido, o terreiro ecumênico ardeu. Vão dizer nos jornais que é a sanha do Cancão de Fogo, da ave-mito que queima para renascer, tira para doar a quem não é pecador. Vão repetir que a chama dita divina o frio aquece. Vão dizer que foi pra nos castigar que o Cancão queimou. Tem sido assim. Pelas redes sociais, principalmente na grande imprensa sombria, correrão as notícias de sempre: Justiça divina para queimar bruxarias. A divindade dessa gente é o ódio.
Pai Badu, o Cancão existe mesmo, é real ou é só invenção das sombras? É do lado sombrio ou estão trabalhando a mística dele falsamente, ao avesso, pra deturpar e manipular todo mundo? Minhas irmanadas pessoas e energias divinas, o real está dentro e fora de nós. É palpável só com as mãos e os olhos ou com a nossa energia divina? Quantas vezes estamos dormindo de olhos abertos e nos distraímos por tudo que nos envolve, que passa quase dentro da gente e não vemos? E quantas vezes sonhamos de olhos arregalados no sono real da alma onde vivemos concretudes etéreas que chegam a marcar até nossa carne? Quando a realidade é um pesadelo, o intocável, o sensível apenas nas dimensões mais sutis da alma, pode ser a concretização de realidades há muito adormecidas ou que só agora foram desencantadas às nossas percepções externas. A magia é uma realidade mágica.
Ventania. Folhas chacoalhadas, vozes verdes da terra ecoando por todo Terreiro Ecumênico. O vento quer reger o momento, assumindo tons e timbres diversos na harmonia da noite, abrindo caminhos e almas. Orquestra de sopros agudos aqui, nas frestas dos bambus, mais graves acolá, entre encanamentos esculpidos com galhos retorcidos, folhagem úmida, teias, pólens e lodo.
Temos aqui vários cristãos, mestres que plantam o divino com amor. Budistas, kardecistas. Brancos, negros. Povo de terreiro, da umbanda e do candomblé, os encantados da tradição dos pais da nossa terra, índias e índios, tudo irmanado. A gente sente o poder da natureza. Nós somos a natureza. Procuramos ver, aprender e apreender com olhos e corações holísticos. Coração de terra, de ar, de planta, de bicho, coração de universo. Buscamos purificação para toda a gente faz tempo. Parece que os tempos carecem cada vez mais de luz. Por isso, purificar nos purificando é imprescindível. Do alimento que comemos ao que ofertamos, nada tem veneno. A peçonha química não alimenta, corrói. Não nos empeçonhamos nem queremos isso pra ninguém. Há anos compartilhamos esses conhecimentos ancestrais, tentando aproximar pessoas diferentes, buscando mostrar que não há mal em cada um ser como é, desde que o viver de cada um não prejudique a vida de outros. E do mundo! Mas eles querem queimar, apagar conhecimentos seculares com cinzas e semear a ignorância. Nem o poder das ervas respeitam. Ignoram a jurema. Nossa gente sofreu com mais fogo... Mas... vai ser diferente desta vez. Eu vi! Vocês viram, irmãzinhas e irmãozinhos. O mel endureceu, a quartinha com o vinho estourou, a pera e a canjica queimaram, o branco ficou cinza. Nossa noite de oferendas calou. Mas será diferente. Sinto, aqui no peito, quase uma paz. As energias cochicham que algo mudou pra melhor esta noite. Como assim, Pai Badu? E essa destruição toda? Cada vez mais perseguem a gente.
Nas falésias de Azenhas do Mar as ondas arrebentam. A rocha treme. Marlua caminha entre jovens e crianças, colaboradores da Fundação Fênix, patrocinadores e lideranças empresariais do mundo dos cosméticos e tantos produtos naturais. E Amora Santini, amiga e braço direito de Marlua, olha sua evolução entre os convidados com orgulho. Todos, atenciosos, acompanham seu andar. Não. Andar, não. Parece voar suavemente com sua leve e bem talhada roupa vermelha com várias camadas de tecidos flutuantes. Espalham no grande e iluminado salão o aroma do perfume recém-lançado por Marlua, em mais uma grande campanha publicitária mundial. A fragrância Black Chama. Grandes velas aquecem e fortalecem a luz dessa noite cravejada de conquistas que se somam a outras na trajetória árdua, aguada de suor, de fogo nos olhos na sanha da realização coletiva.
Escutem, queridas pessoas! Após a celebração deste novo ano que começa, aqui na Fundação Fênix, teremos que nos esforçar ainda mais por nós e pelas pessoas que ajudamos. O novo lançamento foi outro sucesso, apesar de alguns boicotes que enfrentamos. Talvez o maior até agora! Parte de toda verba vem pra cá, pra vocês e projetos com várias parcerias para fortalecimento da vida sustentável na Terra. E pra lutar contra os avanços do autoritarismo. Vamos continuar denunciando os males do retrocesso, da exclusão e da ignorância em todos os lugares em que eu for recebida. E aonde eu não for, nossa marca chegará, reverberando esses valores. Sigamos brilhando como a lua que guia esta noite especial. Brindemos ao luar, ao mar. O presente é nosso. A felicidade não tem agenda, vamos celebrar. Ao mar, à lua que abraçam a gente e as nossas conquistas. E que lua! Com esse visual quase carmim faz lembrar as mangas da minha terra.
Uma pera rola das mesas de oferendas a Ozalã, orixá do alto da falange espiritual. Tecidos brancos, talvez chamuscados pelas mãos da intolerância, flutuam nos biombos de bambu onde acontecem consultas