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Família Queer e a Desconstrução do Heteronormativismo
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E-book399 páginas5 horas

Família Queer e a Desconstrução do Heteronormativismo

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Sobre este e-book

A presente obra apresenta para o leitor uma teoria jurídico-filosófica possibilista e inclusiva, que tem por escopo contribuir com as discussões acadêmicas sobre a necessidade de desconstrução do sistema heteronormativo e a reconstrução de um sistema normativo, que revogue normas constitucionais e infraconstitucionais que excluem ou selecionam sujeitos com base em critérios biológicos, para proteger a pessoa humana, tão somente pela sua condição de ser humano, independentemente de sua opção sexual, gênero, cor, credo etc. O uso do termo Família Queer digna-se a alargar o ramo do Direito de Família, pois precisa contemplar, de forma efetiva e abrangente, todas as novas configurações familiares, face às novas identidades que deixaram de ser singulares e passaram a ser plurais, sopesando tão somente o amor, o respeito, a cumplicidade e o animus de constituir família como elementos valorativos para o Direito.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de abr. de 2021
ISBN9786559561476
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    Família Queer e a Desconstrução do Heteronormativismo - Vilmária Cavalcante Araújo Mota

    Bibliografia

    1. INTRODUÇÃO

    A Teoria Queer, utilizada como um dos referenciais teóricos neste estudo, fundamenta-se em três matrizes: a teoria pós-estruturalista, o feminismo e os grupos anarquistas ativistas. Assim o é por enxergar e analisar a sexualidade como uma construção social e histórica, na qual é importante reconhecer os processos de subjetivação e assujeitamento do homem, aceitando que há uma multiplicidade identitária a partir da ênfase na diferença e não mais na semelhança, aproximando- se a ideia da diferença não entre os sexos, mas entre os gêneros.

    A Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos, no final da década de 1980, como uma alternativa para os estudos sobre minorias sexuais e de gênero, rejeitando qualquer forma de essencialismo, afirmando ser a identidade apenas uma performance identitária, defendendo que qualquer categoria de representação deve dar ênfase à diferença. Essa Teoria foi fortemente influenciada pela obra do filósofo francês Michel Foucault e pelos Estudos Culturais norte-americanos (MISKOLCI, 2015).

    Dessa forma, os Estudos Queer têm-se empenhado em evidenciar que a ordem social vigente na sociedade assenta a heterossexualidade como natural e compulsória, vista como uma lei da coerência social que impõe uma lógica linear entre sexo-gênero-sexualidade; em outras palavras, a ordem social vigente determina que o sexo biológico defina a identidade de gênero (mulher/fêmea; homem/macho), assim como também sua sexualidade.

    Destarte, tais estudos propõem a superação dessas oposições e binarismos (masculino/feminino, heterossexual/homossexual, macho/fêmea) que permeiam os muitos fenômenos sociais nas mais diferentes esferas. Contudo, neste estudo, focalizar-se-á a instituição família como uma das esferas sociais na qual essas dicotomias são facilmente observadas e construídas, configurando-se num fenômeno extremamente conflituoso que tem deixado a sociedade e o Direito sem saberem como lidar com as novas tipologias de família que se formam a partir das contemporâneas identidades e subjetividades humanas que rompem a heterossexualidade e os papéis sociais – como a constituída pelos homossexuais, pelos transgêneres, intersexos e travestis. Sabe-se que a heterossexualidade se manteve silente, mas salientemente como norma dominante (heteronormatividade), estabelecendo privilégios, promovendo desigualdades e legitimando violências e opressões a toda forma de ser e viver o sexo-gênero-sexualidade que refugasse essa ordem heteronormativa.

    Ressalta-se que esses estudos atravessaram fronteiras e, hoje, no Brasil, o movimento e o pensamento queer vêm encontrando espaços e formas de expressão que, ao mesmo tempo em que mantêm o tom transgressivo e provocador, manifestam-se com cores, práticas e modos próprios daqui, inclusive com outras denominações como Estudos transviados, Estudos CUS, Estudos de Gênero e Sexualidade, entre outros.

    A fim de que se pudesse melhor compreender a Teoria Queer e seus postulados, estudos teóricos de escritores pós-estruturalistas como Michel Foucault, Judith Butler, Giorgio Agamben, Letícia Lanz, Richard Miskolci, Jacques Derrida, Theodor Adorno, entre outros, foram essenciais, visto que o pós-estruturalismo instaura uma teoria da desconstrução que pode ser utilizada para considerar outras realidades além da linguística e textual, como, por exemplo, a construção social e subjetiva do ser que se encontra em perpétuo devir, pois, de acordo com o filósofo Heráclito de Éfeso, nada neste mundo é permanente, exceto a mudança e a transformação.

    Nesse sentido é que os estudos Pós-estruturalistas ajudaram a compreender que o significante e o significado construídos para os termos sexo/gênero/sexualidade, bem como para os papéis sociais desenvolvidos pelos indivíduos homem/mulher na sociedade não estão umbilicalmente ligados, mas encontram-se de forma desconexa e incompreensível nessa lógica binária. Há infinitas possibilidades de significantes e significados para esses termos e esses papéis sociais que necessitam ser apreendidos pelo Direito, por meio da desconstrução desse sistema que o fundamenta, utilizando-se de saberes construídos por outras ciências, como a psicologia, a psicanálise, filosofia, entre outras.

    Dessa forma, pode-se afirmar que o ser humano não pensa ou existe no cerne de uma lógica cartesiana, em que signo e significado encontram-se intimamente ligados, mas é marcado por significantes, o que faz de cada ser humano um ente único, que pode ou não estar conforme os binarismos reinantes na sociedade pós-moderna; por conseguinte, o homem é um ser de significantes e não apenas de signos e significados.

    Ao desenvolver esse estudo crítico e anárquico, espera-se apresentar, por meio desta tese, uma teoria jurídico-filosófica possibilista e inclusiva que favoreça a continuidade das discussões jurídico-acadêmicas acerca da desconstrução dos discursos ainda predominantes no espaço-tempo da família que enfatizam as concepções naturalizantes de sexo/gênero/sexualidade como critérios definidores das tipologias familiares previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, acentua-se a necessidade de construir novas abordagens a partir de outros conhecimentos e áreas de saberes, como, por exemplo, a psicanálise, psicologia, filosofia, entre outras, que incluam as sexualidades de pessoas homossexuais e, principalmente, dos transgêneres e intersexuais no espaço de inteligibilidade habitado pela norma heterossexual, que define e normaliza as tipologias familiares existentes, ressaltando o modo como a heteronormatividade, presente nos discursos dominantes, contribui para a criação de vidas nuas das pessoas dissidentes e seus arranjos familiares considerados anormais.

    Nesse sentido, o presente estudo pode ser categorizado como um contramétodo por admitir que, por trás do mundo tal como descrito pela ciência, oculta-se uma realidade mais profunda, ou que as percepções podem ser dispostas de diferentes maneiras e que a escolha de uma particular disposição correspondente à realidade não será mais racional ou objetiva que outra (FEYERABEND, 1977). Ou seja, o monismo metodológico prevalente nas Ciências Sociais e a primazia do conhecimento científico sobre as demais formas de conhecimento ou visões de mundo impossibilitam uma visão mais ampla de um campo de investigação como o das atuações queer.

    Nesse sentido, reconhecer a existência de outras identidades que vão para além do binarismo de gênero (homem/mulher) proporciona a inferência de que há outras formas de constituição de famílias para além daquelas que estão constituídas e regulamentadas pelo Direito, pois essas novas identidades influenciam e são influenciadas por essas novas constituições familiares e, por isso, deve ser revisto o conceito de família, para ampliá-lo, torná-lo poroso e adequado às famílias queer.

    Para tanto, partiu-se da premissa de que a lógica binária e heteronormativa das relações de sexo/gênero dão suporte ao sistema jurídico vigente, tanto no plano individual quanto familiar e social, implicando a constatação de que, historicamente, esse sistema tem-se prestado à opressão feminina e à discriminação contra pessoas desviantes (lésbicas, gays, travestis, intersexuais etc.). Daí, tomou-se uma posição analítica anarquista voltada para a construção de um conhecimento crítico e reflexivo sobre a reinterpretação das normas jurídicas, num sentido capaz de romper com a histórica legitimação de desigualdades heteronormativas, reconhecendo que as tipologias familiares existentes, fundamentadas no caráter biológico binário de seus componentes, excluem os arranjos familiares formados por transgêneres e intersexuais, trazendo estranheza às relações de conjugalidade e filiação existentes nessas famílias.

    Assim, quando se coloca em questionamento o binarismo fundante, pode-se pensar em multiplicidade de gêneros e sexualidades que possibilitam outras dimensões da constituição dos sujeitos. A partir dessa constatação, percebe-se que outras dimensões da vida também são perturbadas, multiplicadas, complexificadas, como é o caso das entidades familiares que se pretendem apresentar.

    É nesse sentido que os estudos de Michel Foucault, de autores pós- colonialistas e dos autores que fundamentam a Teoria Queer (Queer Theory) serviram a esta tese, possibilitando compreender como a sexualização se instalou no âmbito das relações sociais como mecanismo de controle e disciplinamento e, em especial, no campo das entidades familiares, heterossexualizando ou homossexualizando instituições, discursos e direitos, como uma teia que articula vários elementos heterogêneos dispersos que inventam, reajustam e modificam constantemente a racionalidade sobre como se deve constituir uma entidade familiar, sobretudo, quanto ao sexo, sexualidade e gênero das pessoas que a compõem.

    Por conseguinte, a família assim se transforma na potência da sexualidade regrada, medicalizada, observada e contida. Como um contramétodo, os estudos queer buscam afastar a ideia de anormalidade que ronda culturas não hegemônicas, caracterizadas pela subversão ou rompimento com normas socialmente prescritas de comportamento sexual/amoroso.

    Nesse sentido, não se pode mais garantir que a sexualidade seja o eixo principal de processos sociais que marcaram e ainda moldam as relações sociais e jurídicas, mas, ao contrário, emerge a ideia de um ponto nodal de intersecções de diferenças, pelo que as lições de Derrida sobre alteridade reforçam a ideia de que, para se compreender tantas diferenças identitárias de gênero, raça, classe, sexo, torna-se essencial o exercício da alteridade, pois a crítica e o desprezo, a priori, são práticas negativas para todos. Saber conviver com as diferenças é libertador para quem consegue aceitar o outro como ele é.

    Portanto, torna-se indispensável propor a desconstrução dessa lógica binária que fundamenta a heteronormatividade, assim como o heterossexismo, o sexismo, o patriarcado, entre outros sistemas e prescrições éticas, estéticas, legais e sociais, advindos de um legado civilizatório eurocêntrico, protagonizados pela Igreja e pelo Estado por meio de suas prescrições morais para que se construa uma dimensão existencial do Direito das Famílias, desvelada numa perspectiva civil-constitucional, avessa aos pré-conceitos, pré-julgamentos, sempre visando à promoção e à proteção da dignidade da pessoa humana, porquanto, que traduzirá a preocupação com a função social das famílias na atualidade e não sua composição.

    Porquanto, uma vez introduzida a realidade de vida, de amor e de afeto na experiência normativa, implicará a não rejeição das relações familiares constituídas por pessoas desviantes, desprovidas de proteção e valores jurídicos, deixando-se em segundo plano os deveres constitucionais a que corresponde o amor responsável.

    Dessa forma, a presente tese tem como objetivo geral a construção de um novo conceito para família, por meio da desconstrução do sistema heteronormativo e a reconstrução das tipologias familiares existentes a partir do reconhecimento e legitimação da Família Queer como uma dimensão existencial do Direito das Famílias, por meio da edição de uma Emenda Constitucional que proporcione uma hermenêutica ao Direito de Família que não se descure da subjetividade do sujeito de direito, ao aplicar os princípios e garantias constitucionais de igualdade, liberdade, autonomia, pluralismo familiar, entre outros, resguardados na Carta Política brasileira, garantindo a dignidade humana das pessoas que compõem essas novas tipologias familiares e, por conseguinte, revogando normas constitucionais e infraconstitucionais que excluem ou selecionam sujeitos com base em critérios biológicos para proteger a pessoa tão somente por sua condição de ser humano, independentemente de sua orientação sexual, gênero, cor, credo etc.

    Destaca-se que o escopo desta tese não é avaliar ou julgar a conduta dos indivíduos participantes dessas estruturas familiares como certa ou errada, moral ou imoral, normal ou anormal, visto que essa não é tarefa dos intérpretes do Direito; almeja-se encontrar a melhor solução para os conflitos existentes nesses casos, visto que tais sujeitos não podem ser condenados à invisibilidade jurídica.

    Em face de todo o exposto, buscou-se responder aos seguintes questionamentos: Como se construiu o sistema heteronormativo que rege as relações sociais? "Como desconstruir o sistema heteronormativo e reconstruir as tipologias familiares atuais, fundadas numa heterossexualidade natural e compulsória a partir dos princípios da liberdade, pluralidade e da pluralidade familiar, entre outros, como corolários da dignidade humana, sob a luz da Teoria Queer? As uniões entre pessoas trans constituem famílias? Que tipo de família? Pode-se incorporar essas famílias queer em algum tipo de família reconhecida pela Constituição ou seria uma nova constituição familiar, diferente das existentes?".

    A fim de atingir o objetivo proposto, buscaram-se cumprir objetivos menores, quais sejam: 1) compreender sob a perspectiva da Teoria pós-colonial a construção do sistema heteronormativo nas relações sociais e sua interface com as instituições jurídicas, em especial com o Direito de Família; 2) demonstrar as implicações do sistema heteronormativo na construção da História da Família e sua evolução; 3) apresentar o desenvolvimento do conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro; 4) descrever as tipologias familiares existentes e descritas no ordenamento jurídico brasileiro, bem como as reconhecidas pela Doutrina e Jurisprudência na contemporaneidade sob a perspectiva da Teoria Queer; 5) explicitar os princípios jurídicos que sustentam essa desconstrução da heteronormatividade e a reconstrução das tipologias familiares diante das novas identidades de gênero; 6) propor uma desconstrução e reconstrução das tipologias familiares a partir da Teoria Queer; 7) apresentar a Família Queer como uma tipologia familiar não normativa e suas possibilidades de diferença a partir das novas identidades de gênero que geram os atuais arranjos familiares, em especial, família constituída por transgêneres e intersexuais; 8) demonstrar como a heteronormatividade exclui os arranjos familiares que fogem à hegemonia da norma, criando vidas nuas, ignorando o macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

    Como metodologia para a realização deste trabalho, considerou-se a abordagem dos dados coletados, a finalidade e método, bem como os meios utilizados para a coleta.

    Trata-se de um estudo com uma abordagem qualitativa, realizado num contexto favorável à utilização desse método, visto que possibilitou analisar criticamente a ideologia heteronormativa que influencia a regulamentação jurídica e social das entidades familiares, a partir dos estudos realizados pelo pós-colonialismo, pós-estruturalismo e pela Teoria Queer, a fim de desconstruir a heteronormatividade vigente no Direito de Família, reestruturando as tipologias familiares apresentadas pela norma jurídica atual, a partir dos princípios constitucionais da liberdade, pluralidade familiar, autonomia e da felicidade, como corolários da dignidade humana, para que se reconheça a Família Queer, como uma entidade familiar que se encontra solidificada por meio do amor, do respeito, da cumplicidade e da liberdade de ser e aprender-se, respeitando e resguardando as diferenças, não apenas a diversidade e o multiculturalismo.

    Este trabalho aplica a metodologia que apoia a seleção e a priorização de um conjunto de dados bibliográficos que representam o estado da arte no assunto pesquisado. O processo envolveu a formação de uma base de dados preliminar bruta, seguida da aplicação de uma série de etapas de filtro para a formação de uma base de dados convergente com os objetivos da pesquisa ora proposta, finalizando- se com a priorização desses dados por meio do Método de Apoio à Decisão (MAD).

    Tal método favoreceu a Composição Probabilística de Preferências (CPP), por meio da seleção de artigos e livros em diferentes contextos e saberes, os quais favoreceram enfocar a posição do discurso heteronormativo na construção das subjetividades e das identidades, legitimadas socialmente pela união do social, da história e das ideologias, produzindo sentidos na formação do indivíduo e da família. Nesse ponto, a abordagem probabilística facilitou a proposta para inclusão de alternativas, novos critérios e novas formas de composição das famílias nos âmbitos social e jurídico.

    Na investigação, quanto aos fins, utilizou-se as pesquisas descritiva e explicativa; descritiva porque tem por objetivo descrever criticamente a História da Família, enfocando a relação entre a construção de teorias dos estudos sobre sexualidade e gênero sob a perspectiva biológica e a desconstrução desses estudos diante de uma nova proposta que considera as minorias sexuais e de gênero em sua multiplicidade e em diversidade sociocultural como a Teoria Queer e os estudos pós- estruturalistas.

    Explicativa quando visa aclarar as subversividades das identidades de gênero dissidentes, analisando o significado e o significante (sexo, gênero e sexualidade); compreendendo a construção da ideologia heteronormativa, buscando explicar os motivos que levam a sociedade a se submeter à hegemonia das normas, bem como demostrar que a heteronormatividade exclui os corpos estranhos e cria vidas nuas, quando não reconhece essas novas identidades que constituem os novos arranjos familiares.

    Quanto aos meios, esta pesquisa é essencialmente teórica, desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica expressa em publicações nacionais e internacionais, inclusive na imprensa, sobre os temas diretamente envolvidos na tese. O levantamento bibliográfico compreendeu, preferencialmente, obras que conseguem representar o estado da arte sobre os temas abordados, além de primar pela qualidade, abrangência e significância. Para tanto, textos sobre Psicanálise, Filosofia, Bioética, Medicina e Direito que permitiram analisar as questões que perpassam a transexualidade e o homossexualismo no momento social e jurídico atual foram selecionados.

    A referida pesquisa encontra-se estruturada em nove capítulos, a constar desta introdução, contendo os conteúdos descritos a seguir.

    No Capítulo II, os estudos pós-coloniais ajudam compreender o processo de construção da heteronormatividade no desenvolvimento histórico-social da organização familiar como sendo uma herança da colonialidade do ser e do saber imposta sobre o sexo, a sexualidade e o gênero da construção das subjetividades do sujeito, realizada pelos europeus por meio do processo de subalternização sofrido por alguns povos, sobretudo, das Américas.

    Em seguida, no Capítulo III, busca-se compreender a família como um grupo social que influencia e é influenciado por pessoas e instituições sociais, ou seja, um grupo pelo qual transcorre o próprio momento histórico e, por isso, pode apresentar formatos e definições diversos, os quais se alteram no passar do tempo. Para tanto se verá como a heteronormatividade se arraigou nas diversas formações familiares, desde a antiguidade até a atualidade. Ver-se-á que a evolução legislativa do conceito de família no Direito brasileiro sempre acompanhou os valores e as necessidades pungentes da sociedade em cada tempo histórico, desde a Antiguidade até a Pós-modernidade. Além das transformações humanas e sociais, também os poderes político, econômico e religioso, vigentes em cada época, afetaram a construção do modelo familiar no Brasil.

    Constatar-se-á que, embora a hermenêutica constitucional permita aquilatar como família outros arranjos familiares para além daqueles descritos pela norma constitucional, não há como negar que essa, assim como o Código Civil e as Leis Especiais que regulamentam o Direito de Família encontram-se impregnados por uma lógica binária (homem/mulher) que reforça a matriz heteronormativa construída durante todo o processo de organização social e que baliza a construção do Direito, favorecendo o exercício do subjetivismo do julgador.

    Seguindo com a análise teórica para desconstrução do sistema heteronormativo vigente, o Capítulo IV realiza uma análise crítica acerca da normalização dos arranjos familiares focada na sexualidade e regulada pelo Direito de Família vigente, revelando-se como esse processo de padronização é violento, excludente e intolerante com todos os arranjos familiares que violem a heteronormatividade e qualquer outra normalização, haja vista causarem restrições e até supressões arbitrárias e violentas de direitos e oportunidades aos indivíduos pertencentes aos grupos inferiorizados, subalternos, como gays, lésbicas, transgêneres, intersexos, entre outros.

    Por conseguinte, no Capítulo V, assegura-se que se deve compreender o conceito de família como elástico, poroso e em contínua evolução, desprendido dessas prescrições inexoráveis, de binarismos imutáveis, resguardando acima de tudo a dignidade da pessoa, sua liberdade de ser e aprender-se, a igualdade entre todos, independentemente de sua categorização identitária (raça, sexo, credo, classe etc.). Sob essa óptica, sustenta-se a proteção jurídica e social das novas tipologias familiares que vêm sendo consideradas como entidade familiar pela doutrina e pela jurisprudência pátria, assentada em fundamentos principiológicos, tal como a dignidade da pessoa humana, a pluralidade familiar, a igualdade e a liberdade, tendo o afeto e a solidariedade como sentimentos que balizam essas relações familiares.

    Nos Capítulos VI e VII, enfatiza-se a necessidade de construção de uma dimensão existencial do Direito das Famílias que não mais se encontre atrelada unicamente ao Código Civil, mas que também esteja explicitamente assegurada na Constituição Federal, otimizando e efetivando a adoção de princípios, como a dignidade da pessoa humana, a pluralidade familiar, a igualdade e a liberdade, tendo o afeto e a solidariedade como sentimentos que balizam essas relações familiares, sem descurar das subjetividades que constitui os sujeitos desejantes. Nesse intento, propõe-se a edição de uma emenda constitucional que ordene a desconstrução de todo e qualquer binarismo fundante do heteronormativismo para legitimar e reconhecer os arranjos familiares que refuguem a heteronorma, bem como todas as suas consequências jurídicas e sociais, concretizando o Estado Social Democrático por meio do respeito e efetivação aos direitos fundamentais.

    2. O SISTEMA HETERONORMATIVO NAS RELAÇÕES SOCIAIS

    A fim de que se possa compreender o processo de construção da heteronormatividade no desenvolvimento histórico social da organização familiar faz- se necessário conhecer a forma como se deram a colonialidade epistemológica e os processos de subalternização de alguns povos por meio dos estudos realizados pelos teóricos do pós-colonialismo.

    Walter Mignolo (2003) afirma que, ao longo da formação do sistema moderno/colonial, ocorreu uma verdadeira colonização epistemológica pautada no etnocentrismo e no eurocentrismo¹ enraizados no seio da modernidade², em várias áreas do saber: filosofia, literatura, religião, assim como na ciência. Dessa forma, o legislador ao se ocupar da família não o fez para retratar as relações humanas oriundas da própria natureza, mas vislumbrou organizá-las segundo o ideal de vida social dominante, impondo uma higidez para a sua constituição, advindo daí a imposição de direitos e deveres de forma diferenciada para homens, mulheres, crianças, idosos, entre outros indivíduos.

    Nesse processo de formação social, somente alguns indivíduos, a partir de determinados lugares, culturas e línguas, têm o direito ao pensamento, à filosofia, à ciência. O autor desfila uma lista de nomes na qual inclui Hegel, Weber, Kant, bem como os críticos da modernidade como Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Michael Foucault, Pierre Bourdieu, Jürgen Habermas, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Norbert Elias, como sendo os iluminados, situados num espaço geo-histórico da Terra (Europa, França, Alemanha, entre outros), em que seus saberes são colocados como verdades, desprezando-se ou olhando de viés qualquer outro conhecimento construído por autores de outros espaços geo-históricos, como os africanos, latino-americanos, árabes.

    Ressalta-se que essa concepção também é percebida e rechaçada por Feyerabend (1977); para quem a ideia de um conhecimento universal, que cria um padrão racionalidade universal, consiste numa forma de dominação que se assemelha às crenças de dominação que assolam a humanidade há muitos anos.

    Nessa lista de pensadores de segunda ordem, o autor alude a nomes como Paulo Freire, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Darcy Ribeiro, Roberta Menchú, Rivera Cusicanqui, Rodolfo Kusch, Franz Fanon, Abdelkebir Khatibi, entre outros, como pensadores que desenvolveram axiomas e conhecimentos a partir da colonialidade do poder e da diferença colonial.

    Nessa esteira de pensamento, Walter Mignolo (2003) afirma existir uma relação entre colonialidade³ e epistemologia, construindo uma genealogia dos processos de subalternização das ideias e das identidades dos colonizados, definida por Boaventura Sousa Santos (2010) como epistemicida, pois desconsidera todo saber que não se assente na ciência moderna/colonial, tida como um modelo único, universal e objetivo a partir da Europa (OLIVEIRA; CANDAU, 2013).

    Portanto, a colonialidade consiste num fenômeno histórico que excluiu outros saberes, outras formas de decodificar e ver o mundo, desautorizando as epistemologias periféricas (epistemologias do norte/colonizados). Dessa forma, essa colonialidade do saber⁴ é representada na geopolítica do conhecimento, numa lógica irrepreensível, na qual a verdade e a ciência são atributos exclusivos das metrópoles (epistemologias do sul/colonizadores), cabendo à periferia e a seus sujeitos o status de objetos, rotulados como populares, leigos, naturais, ignorantes, sem lei (SANTOS, 2010, p. 72). Essa ação é denominada por Restrepo e Rojas (2010) de colonialidade do ser⁵.

    Todavia, o pensamento de Mignolo (2003) não se restringe à crítica sobre a colonialidade epistemológica e os processos de subalternização, vai além. Ele assinala a emergência de uma gnose ou pensamento liminar, voltados para uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento, projetados para uma redistribuição geopolítica, até então pautada na colonização epistêmica e na subalternização de todas as formas de saberes que não estivessem pautadas nos cânones da ciência eurocêntrica.

    Face ao exposto, toda epistemologia que fundamenta a presente tese encontra-se constituída sob o viés de um pensamento restaurador, que possibilita aos subalternos construírem suas próprias narrativas, visando desvencilhar-se das armadilhadas evidenciadas pela crise de uma lógica binária que fundamenta a heteronormatividade, assim como o heterossexismo, o sexismo, o patriarcado, entre outros, como um legado civilizatório eurocêntrico, protagonizados pela Igreja e pelo Estado por meio de suas prescrições morais e legais.

    2.1 SOB A ÓPTICA DO PÓS-COLONIALISMO: A CONSTRUÇÃO E A DESCONSTRUÇÃO SOCIAL DA HETERONORMATIVIDADE E SUA INFLUÊNCIANAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS

    Na perspectiva da subalternidade e nesse contexto epistemológico, pode-se afirmar que a heteronormatividade, assim como o heterossexismo, o sexismo, o patriarcado, entre outros, fazem parte de todo um legado civilizatório eurocêntrico, protagonizados pela Igreja e pelo Estado por meio de suas prescrições morais, legais, éticas e estéticas que colocam os indivíduos em relação de superioridade e desigualdade a depender de sua identidade.

    Nesse sentido, Guilherme Silveira preleciona que,

    [...] a construção da homofobia e da heteronormatividade foram introduzidas nas comunidades subalternas e colonizadas do Sul por meio da vontade autoritária dos colonizadores europeus, que teve como protagonista a Igreja Católica, com seus dogmas de santidade e suas missões catequizantes, bem como pela exportação do sistema patriarcal da sociedade e da imagem icônica da família burguesa européia [sic] que, conforme exposto acima, era baseada na supremacia masculina e na inferioridade, que acarreta, com isto, dever de obediência e subordinação do gênero oposto, qual seja, a mulher (SILVEIRA, 2014, p. 84, grifo nosso).

    Com o escopo de melhor esclarecer e agregar rigor teórico e histórico aos termos heterossexismo e heteronormatividade, os únicos que importarão neste momento para a tese, apresentar-se-ão os conceitos elaborados por Richard Miskolci, segundo o qual o

    Heterossexismo é a pressuposição de que todos são ou deveriam ser heterossexuais. [...] A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo dessas relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. A heteronormatividade é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutor. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero. (MISKOLCI, 2015, pp. 46-47).

    No mesmo sentido, Marcos Matos esclarece que

    O termo homossexual teria surgido em um artigo de Euler Renato Westphal, sobre as sensações sexuais contrárias, em 1870 (FOUCAULT, 1999, p. 43); e o termo heterossexual, por sua vez, apareceu pela primeira vez em um artigo. de Jamer G. Kiernan, em 1892, acerca das manifestações anormais do apetite sexual. (MATOS, 2012, p. 15, grifo nosso).

    Para Oscar Guasch (2000), a heterossexualidade é um produto não universal, tendo sido criado numa época em que as condições sociais se encontravam fundamentadas nas tradições judaico-cristãs que organizam a sociedade ocidental. Nesse sentido, afirma o autor que a

    Heterossexualidade: um monstro linguístico: ortossexualidade seria mais correto e mais lógico, ortodoxia e heterodoxia. O primeiro termo

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