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União Poliafetiva: essa família também existe : um hard case para o Direito Brasileiro
União Poliafetiva: essa família também existe : um hard case para o Direito Brasileiro
União Poliafetiva: essa família também existe : um hard case para o Direito Brasileiro
E-book235 páginas4 horas

União Poliafetiva: essa família também existe : um hard case para o Direito Brasileiro

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Sobre este e-book

O Direito das Famílias é um ramo jurídico instigante, em constante renovação, que cedo ou tarde é chamado a dar respostas às novas demandas da sociedade. A união poliafetiva é uma delas.
A despeito de previsão legal, esse formato de família se apresenta como uma realidade, porém pouco debatida e para a qual o direito brasileiro ainda não ofereceu respostas objetivas.
Seria possível uma união estável de mais de duas pessoas em nosso atual sistema jurídico? As relações conjugais e convivenciais devem ser obrigatoriamente monogâmicas, excluindo qualquer outra configuração?
As respostas a essas perguntas demandam esforço hermenêutico, não se resumindo à mera leitura dos dispositivos legais. Enquanto alguns apontam sua impossibilidade com base na ausência de previsão legal e no princípio da monogamia, outros defendem sua viabilidade por não haver vedação expressa e, sobretudo, por ter respaldo nas normas constitucionais que versam sobre a igualdade, autonomia, proteção das famílias e promoção da dignidade da pessoa humana.
Diante de escrituras públicas declaratórias de união poliafetiva lavradas em cartórios no país, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi instado a se pronunciar e, em junho de 2018, decidiu pela proibição dos registros. Desde então uma barreira – ainda que administrativa – foi erguida àqueles que buscam o reconhecimento de uma união poliafetiva como entidade familiar.
A partir daí ganharam destaque não apenas a união poliafetiva, mas também outros formatos de poliamor, sem que se tenha um posicionamento dos Tribunais Superiores. Assim, com essa obra espera-se contribuir com a construção de respostas, na esperança de que elas não se baseiem em crenças pessoais ou culturais quanto à forma supostamente correta de amar e de se relacionar afetivamente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de ago. de 2021
ISBN9786525208084
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    União Poliafetiva - Lívia Henriques de Oliveira Poggiali

    1. INTRODUÇÃO

    Uma das marcas da atualidade é o reconhecimento da pluralidade existente nas sociedades. Desse pressuposto deriva a defesa do direito à diversidade, que vem impactando as culturas, as instituições e, evidentemente, o Direito. Reivindicações pelo respeito à diferença escancaram a urgente necessidade de se abrir espaço para o diálogo e para a convivência com pontos de vista ou modos de viver nem sempre compartilhados ou valorizados. É nesse contexto que emergem as minorias e as pautas historicamente desconsideradas.

    Diversidade tem sido, portanto, palavra de ordem na contemporaneidade. Não por acaso, ante ausência de consensos e dificuldade de respostas aos novos fluxos, o Judiciário tem sido instado a se pronunciar, especialmente quando esses temas envolvem direitos considerados fundamentais. Estes, por sua vez, tomaram novos significados, i.e., passaram a abranger o que muitas vezes ficava à margem. Isso porque os direitos adquirem diferentes nuances de acordo com a lente do sujeito que os observa. Por isso, a busca pela efetiva universalização tem que considerar a pluralidade observada na sociedade.

    Não raro, conceitos e institutos jurídicos tradicionais se mostram insuficientes para abarcar todas as demandas que, apesar de legítimas, carecem de previsão legal, ficando esvaziadas da noção de direito subjetivo. Esse descompasso da realidade com a norma positivada, especialmente quando direitos fundamentais estão em jogo, pode gerar um hard case (caso difícil). Considera-se um caso difícil determinada situação para a qual não se encontra resposta objetiva pela aplicação da regra jurídica; quando há mais de uma norma aplicável; ou mesmo quando a solução encontrada viola normas fundamentais produzindo, no caso concreto, claro senso de injustiça.

    Esse fenômeno, por vezes, tem sido verificado na evolução do conceito jurídico de família, diante de configurações afetivas demandando proteção jurídica, em que pese não haver regulamentação na lei. Diante disso, tem-se preferido a designação famílias, demonstrando a pluralidade de entidades familiares, rompendo com a anterior concepção de família matrimonializada.

    O presente trabalho aborda um desses temas: a união poliafetiva, também conhecida pelo gênero poliamor. Indaga-se se essa união, ainda que não prevista legalmente, encontra legitimidade em princípios constitucionais que carregam direitos fundamentais, notadamente a igualdade (que proíbe a discriminação) e a autonomia (em determinar os projetos de vida e buscar reconhecimento e realização pessoal) – corolários da dignidade da pessoa humana. Consequentemente, discute-se a possibilidade de se conferir efeitos legais próprios das entidades familiares. Conforme se verá, há diferentes conceitos e formatos poliamorosos. Contudo, foi objeto de análise aquela que vem sendo denominada – especialmente no meio jurídico – de poliafetiva, entendida como uma união estável de mais de duas pessoas.

    A análise da questão proposta é de extrema relevância social e jurídica, uma vez que há um impasse sobre sua validade no sistema normativo brasileiro. A discussão tomou repercussão a partir de 2012 com a formalização de algumas relações mediante escritura pública, em cartórios nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo¹, e com a decisão, em 2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que proibiu a lavratura de tais documentos.²

    A união poliafetiva é uma realidade para a qual o Direito precisa oferecer respostas. As dúvidas acerca da possibilidade de reconhecimento acabam gerando exclusão, além de instaurarem um estado de insegurança jurídica. Tal fato pode ser evidenciado pelo principal fundamento da decisão do CNJ: ausência de previsão legal. Mas para além da falta de autorização legislativa, o grande embate se dá em torno do princípio da monogamia. Enquanto parte da doutrina entende que ele rege as relações conjugais e convivenciais³, outra defende sua superação à luz dos dispositivos constitucionais e da atual concepção de família.⁴ E a polêmica se reforça por não haver em qualquer dispositivo menção expressa à monogamia. Assim, para aqueles que a defendem como princípio, seu conteúdo normativo é extraído principalmente de regras infraconstitucionais, como a vedação da bigamia, a fidelidade como dever conjugal, a caracterização de concubinato, dentre outras. Contudo, paralelamente à discussão sobre a existência ou não do princípio, propõe-se uma reflexão sobre a finalidade de tais regras que veiculariam a monogamia, analisando sobre quais bens jurídicos elas projetam sua tutela.

    Tendo em vista a mudança metodológica operada pela Constituição da República de 1988⁵, seguida, no campo civil, pelo Código Civil de 2002⁶, as diretrizes do ordenamento jurídico convergem para a concretização da dignidade da pessoa humana. E quando se diz pessoa humana, pretendeu-se frisar que se trata da pessoa em seu caráter singular, ela mesma titular de direitos individualizados face ao corpo social. Nesse sentido, a realização de seus direitos fundamentais (muitos, de cunho existencial) se coloca como forma de atingir tal objetivo.

    Assim, a hipótese investigada é que, ainda que tais normas evidenciem a monogamia como princípio, elas têm como fim a proteção da pessoa, seus direitos e interesses e, por isso, sua incidência deve levar em conta a autonomia dos indivíduos quanto às escolhas existenciais e patrimoniais, regidas pela boa-fé. Tendo em vista que a instituição familiar é campo de realização da personalidade é possível falar em direito subjetivo de constituir família. Se para algumas pessoas é no âmbito familiar que se realizam certos direitos fundamentais, é também nesse ambiente que seria possível a existência digna.

    A Constituição da República⁷, ao indicar as normas fundamentais do sistema, dispõe também sobre critérios que norteiam a atividade hermenêutica. Nesse sentido, a igualdade, a autonomia, o pluralismo, na qualidade de desdobramentos da dignidade da pessoa humana, permitem o reconhecimento de uniões poliafetivas como entidades familiares. Além disso, destaca-se o importante papel da boa-fé e da perspectiva de danos a terceiros para balizar a conformação de situações concretas ao ordenamento jurídico.

    O referencial teórico adotado foi o Direito Civil-Constitucional⁸, fruto do movimento neoconstitucionalista, que propõe a releitura dos institutos do Direito Civil (dentre eles, as famílias), sob a ótica das normas da Constituição da República de 1988.⁹ A principal fonte foi o direito positivo, em especial os dispositivos que tratam das famílias, dos princípios e dos direitos fundamentais, além dos requisitos apontados pela doutrina como essenciais à configuração das entidades familiares. Utilizou-se o raciocínio dedutivo a fim de demonstrar que, a despeito da ausência de previsão legal e do princípio da monogamia no Direito das Famílias, há direitos subjetivos que emanam diretamente da Constituição da República, sendo merecedores de tutela jurídica, a exemplo do direito de constituir família.

    Será analisado no capítulo dois a evolução dos paradigmas da atuação judicial, do positivismo ao pós-positivismo, o chamado neoconstitucionalismo, e a necessidade de metodologias para aplicação de princípios jurídicos, dentre eles, o da dignidade da pessoa humana. No capítulo três, será apresentada a gênese do princípio da dignidade da pessoa humana, seus conteúdos e relação com o direito subjetivo de constituir família. Em seguida, o capítulo quatro adentrará na discussão acerca da existência da monogamia como princípio jurídico, sua origem na humanidade e incorporação na legislação. Já no capítulo cinco, serão apresentadas as transformações do conceito jurídico de família, em especial a partir da Constituição de 1988, com a ampliação do rol de entidades, elementos caracterizadores, passando também pelas tentativas de reconhecimento de uniões poliafetivas, a decisão do CNJ e breve análise dos contratos no Direito das Famílias. No capítulo seis, abordar-se-á a atuação do Judiciário no controle de constitucionalidade e a questão da legitimidade democrática desse papel contramajoritário diante de temas que desafiam as soluções legislativas. Por fim, será apresentada a conclusão sobre a viabilidade jurídica de se reconhecer a união poliafetiva como entidade familiar, congregando todos esses aspectos analisados.


    1 Cf. ‘ESTAMOS documentando o que sempre existiu’, diz tabeliã que uniu três. UOL Notícias, São Paulo, 28 ago. 2012; AMÂNCIO, Thiago. Casais de 3 ou mais parceiros obtêm união com papel passado no Brasil. Folha de São Paulo, [S. l.], 24 jan. 2016; RODRIGUES, Mateus. Dois anos após conseguir o registro da união poliafetiva, trio do Rio ainda enfrenta problemas burocráticos. G1 Globo, Rio de Janeiro, 5 jul. 2018; UNIÃO estável entre três pessoas é oficializada em cartório de tupã, SP. G1 Bauru e Marília, [S. l.], 23 ago. 2012.

    2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Plenário). Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 120, 29 jun. 2018.

    3 Helanne Barreto Varela Gonçalves defende a inviabilidade jurídica de se reconhecer a união poliafetiva como entidade familiar tendo em vista o não atendimento ao princípio da monogamia que entende pautar o afeto (confiança) e boa-fé objetiva (conduta proba) no contexto das relações familiares. Cf. GONÇALVES, Helanne Barreto Varela. O respeito à liberdade de amar ou a ruptura do modelo monogâmico de família. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, v. 1, n. 2, p. 178-196, jul./dez. 2015. Rodrigo da Cunha Pereira também elenca a monogamia como princípio do Direito de Família embora não aborde, especificamente, as uniões poliafetivas. Cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Uma principiologia para o Direito de Família. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 5., 2005, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006. p. 844-851.

    4 Cf. SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: a sua superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013.

    5 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

    6 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

    7 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

    8 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Luís Roberto Barroso [website], [S. l.], [2017].

    9 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

    2. OS PARADIGMAS DA ATUAÇÃO JUDICIAL

    A noção de paradigma aqui explorada diz respeito a uma forma de pensar situada num tempo e espaço e que influencia as teorias e métodos de determinado período histórico. Nesse sentido, será analisado como os paradigmas vigentes desde a modernidade impactaram o Direito e as ciências em geral, a partir das contribuições de Menelick de Carvalho Netto¹⁰ e de Boaventura de Sousa Santos¹¹, respectivamente.

    De acordo com Menelick de Carvalho Netto, o conceito de paradigma vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn e se traduz em pré-compreensões [...] que a um só tempo torna possível a linguagem, a comunicação, e limita ou condiciona o nosso agir e nossa percepção de nós mesmos e do mundo.¹² Para ele, os paradigmas possibilitam explicar o desenvolvimento científico como resultado de um processo de rupturas de grandes esquemas gerais.

    Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, trabalha a ideia de um saber científico a partir da perspectiva de uma era e que, portanto, está sujeito a variações quando se mostra descompassado em relação a tudo o que o habita.¹³

    Assim, os paradigmas condicionam as ideias e a hermenêutica jurídica, como forma de interpretação e aplicação do Direito, não escapa a essa influência. Essa reflexão se mostra relevante na medida em que a ciência, como forma de conhecimento, pretende se distinguir do senso comum, da religião etc., ao propor um conhecimento não afetado por subjetividades. Parte do pressuposto de que a partir da definição de um objeto e do método adequado, o produto dessa investigação será um conhecimento objetivo, isento de valores e passível de controle. De fato, enquanto o conhecimento do senso comum tem enfoque prático, a ciência anuncia um conhecimento universal, invariável no tempo e espaço, que independa do sujeito e forneça certezas até que sejam superadas por outras que melhor resistam à verificação de erro, nos moldes propostos por Karl Popper.¹⁴

    Todavia, a abordagem paradigmática permite discutir que a escolha de um método para o estudo de determinado objeto tem como pano de fundo uma teoria, e sobre esta parece haver grande influência do paradigma de uma época, direcionando a percepção do cientista. Particularmente no Direito, isso interfere na atividade hermenêutica, o que pode ser observado a partir dos paradigmas positivista e pós-positivista apresentados a seguir.

    2.1 O PARADIGMA POSITIVISTA

    O positivismo afirmou-se no Direito como resultado de um paradigma que creditava às ciências sociais um caráter não científico. Isso se explica, segundo Boaventura de Sousa Santos, porque a partir da revolução científica do século XVI foi imposto um modelo de racionalidade científica em que para ser ciência era necessário um método objetivo e racional, na esteira do que vinham fazendo as ciências naturais.¹⁵

    Ocorre que nas ciências sociais estabelecer relações de causalidade, identificar padrões e leis universais nem sempre é possível. Os fenômenos sociais são complexos, regidos por inúmeros fatores. Por isso, historicamente, outros métodos e teorias se desenvolveram, a exemplo da

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