Elementos Configuradores da Multiparentalidade: como constatar a Multiparentalidade em casos concretos
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Elementos Configuradores da Multiparentalidade - Marcelle Mariá
1. INTRODUÇÃO
O conceito social e, consequentemente, jurídico de família passou por diversas alterações nos últimos tempos. Não por outra razão a filiação também sofreu mudanças em sua concepção. Edson Fachin (1996) ressalta que a acepção jurídica da parentalidade, fruto da presunção de paternidade, recepcionada para tentar aproximar a filiação da origem genética, foi o primeiro momento da parentalidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Superado esse momento, a filiação genética ganhou força, motivada pela criação e pelo fortalecimento do exame em DNA. Embora não desaparecida, a parentalidade biológica passou, por fim, a conviver com a socioafetiva, que, segundo João Baptista Villela (1979), corresponde à única e verdadeira paternidade.
Nesse cenário, em que convivem as duas formas de paternidade – biológica e socioafetiva –, surgiu a discussão acerca da possibilidade de quebra do modelo vigente da biparentalidade. Assim, instituiu-se a multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de cumulação de mais de um vínculo paterno e/ou materno em relação a uma só pessoa.
No Brasil, pelo menos desde 2012 há casos esparsos nos tribunais que reconheçam a possibilidade de multiparentalidade, com decisões fundadas na doutrina especializada. Todavia, somente em 2017 o STF, em julgamento de recurso extraordinário a que se atribuiu repercussão geral, reconheceu a possibilidade, à luz da Constituição, da cumulação de vínculos de parentesco de diferentes origens. A tese aprovada pelo Supremo foi no sentido de que: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios
. (BRASIL, 2017a).
Observa-se, portanto, que, por se tratar de matéria infraconstitucional, o STF não teceu detalhes sobre os efeitos jurídicos decorrentes da multiparentalidade, restando ao STJ e à doutrina esta incumbência. Esses, por sua vez, não destoam no sentido de que todos os direitos e deveres relativos à filiação devam se fazer presentes nas situações de multiparentalidade, com base no princípio da igualdade da filiação estampado na CR/88 (BRASIL, 1988).
Constata-se, ainda, que uma interpretação literal da tese fixada pelo STF não esclarece se há elementos mínimos configuradores da multiparentalidade, ou seja, não confere segurança no sentido de se estabelecer uma forma de verificar a ocorrência, na prática, do instituto. Isso, como dito, por consistir em matéria infraconstitucional, cabe ao Poder Legislativo, ao STJ e à doutrina.
Nessa perspectiva, é preciso ter em mente que a aplicação indistinta da multiparentalidade pode ocasionar insegurança jurídica e propiciar a regularização de diversas situações indevidas. Citem-se, por exemplo, os casos de adoção para fins previdenciários, a qual é proibida e pode ser viabilizada pela aplicação não criteriosa da multiparentalidade.
Outra situação que merece detida análise é o caso hipotético de uma babá que sempre cuidou com afeto e carinho de uma criança: seria ela sua mãe? Ou, até mesmo, a de um patrão rico que sempre assistiu financeiramente o filho da empregada doméstica, por simples ato de liberalidade: será que ele poderia ser pai dessa criança para fins de multiparentalidade?
Ora, os exemplos citados revelam situações em que as pessoas envolvidas exercem alguma atividade semelhante a que um verdadeiro pai/mãe exerce. Por isso o risco de se aplicar a multiparentalidade sem uma avaliação mais profunda e sem qualquer parâmetro mínimo para seu reconhecimento deve ser enfrentado por pesquisa jurídica.
Assim, o presente estudo visa a perquirir, com base em uma análise bibliográfica e jurisprudencial, a possibilidade de se delimitar os elementos configuradores da multiparentalidade e, caso seja possível, quais seriam esses.
Para tanto, traz no primeiro capítulo uma breve contextualização do momento atualmente vivenciado, que corresponde a uma mudança de paradigma em relação ao conceito de parentalidade, mais especificamente com uma crescente valorização dos laços afetivos.
No segundo capítulo, analisa-se como alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros entendem o tema, verificando se há semelhanças e se as diferenças poderiam inspirar uma eventual mudança na legislação brasileira.
Já no terceiro capítulo, o trabalho parte para uma análise sobre a multiparentalidade em si, compreendendo algumas decisões judiciais que versaram sobre o tema, tal como o próprio acórdão do RE nº 898060/SC, do STF (BRASIL, 2017a), que expressamente reconheceu a multiparentalidade; e os provimentos nº 63/2017 (BRASIL, 2017b) e 83/2019 do CNJ (BRASIL, 2019), que também versaram sobre a temática.
Por fim, no quarto e último capítulo, passa-se a buscar a solução ao problema apresentado, no sentido de se verificar quais os elementos configuradores da multiparentalidade.
Como marco-teórico, essa pesquisa adotou a definição de parentalidade desenvolvida por João Baptista Villela (1979), considerando que há uma só espécie de parentalidade relevante para o Direito: a socioafetiva.
2. PARENTALIDADE EM TRANSIÇÃO
O tema filiação
sofreu e vem sofrendo inúmeras alterações nas últimas décadas. Essas modificações são fruto de uma crescente e paulatina mudança na concepção quanto ao conceito de parentalidade, em que, cada vez mais, valorizam-se os vínculos oriundos do afeto. Assim, é possível afirmar que o momento atual representa uma grande mudança de paradigma em relação ao tema, conforme se verá.
2.1 UMA MUDANÇA DE PARADIGMA: DA PARENTALIDADE BIOLÓGICA À DESBIOLOGIZAÇÃO
DA PARENTALIDADE
A discussão jurídica acerca do que se entende por família, embora antiga e recorrente, é sempre atual, especialmente porque não depende apenas do conhecimento das leis, mas demanda um enorme esforço no sentido de se compreender o que se passa no mundo. Exige sensibilidade quanto ao não-jurídico, fazendo com o que o Direito precise andar de mãos dadas com outras ciências e com o senso comum.
Nesse sentido, Maria Goreth Macedo Valadares (2016, p. 7) destaca que já não existe mais uma moldura predefinida do que se possa chamar de família
, o que demonstra, inclusive, a incapacidade do Direito e de qualquer outra ciência em pré-definir e engendrar esse conceito, limitando-se apenas a prever consequências ao que naturalmente se entende por família.
Assim, em virtude de não existir um conceito estático, esse estará sempre em mutação. A observação da convivência social é que, ao longo do tempo, ensinará o que é ser família
, cabendo ao Direito (ou às outras ciências) apenas acatar e nela se basear. Em termos práticos, isso quer dizer que sempre que for possível delimitar um período em que o Direito tenha entendido e protegido determinadas relações familiares, inevitavelmente estará vinculado ao que socialmente tenha sido vivenciado, bem como sua mudança estará igualmente relacionada à alteração do comportamento social. Em outras palavras:
O modo pelo qual o Direito demarca as relações familiais naturais, atribuindo-lhes relevância jurídica, se mostra diverso em cada momento histórico. Não obstante essa diversidade, é possível dizer-se, de um modo geral, que a família ocupa uma posição central na história social, captada pela ordem jurídica.
A partir do obrigo jurídico de uma determinada concepção de família, o Direito organiza as relações internas de seus membros, e da mesma com o mundo que lhe é exterior.
Tal ordenação se faz sob a disciplina do parentesco. Em torno das relações parentais se arma uma complexa moldura jurídica. É o parentesco, por isso, a chave para entender a regulação dos papéis dentro da família. (FACHIN, 1992, p. 19-20).
No mesmo sentido, são os ensinamentos dos juristas Gilmar Mendes e André do Vale (2009), os quais, fazendo uma releitura da teoria de Peter Häberle, destacam que uma norma lida de acordo com novas experiências traz um novo sentido, visto ser a atividade hermenêutica uma atividade situada no tempo. Isso autoriza a concluir, ainda, que a jurisprudência também sofre modificações a depender do momento histórico em que se avalia determinado conflito. Embora tal estudo se refira especialmente à interpretação constitucional, não se pode ignorar que as normas de Direito de Família também estão sujeitas ao mesmo fenômeno, posto que seu texto nada valerá se não confrontado com a realidade socialmente vivenciada. Assim:
Retira-se da obra de Peter Häberle a observação segundo a qual não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). Interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz auslegen
bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen – um seiner Wirksamkeit willen). Por isso, Häberle introduz o conceito de pós-compreensão (Nachverständnis), entendido como o conjunto de fatores temporalmente condicionados com base nos quais se compreende supervenientemente
uma dada norma. A pós-compreensão nada mais seria, para Häberle, do que a pré-compreensão do futuro, isto é, o elemento dialético correspondente da idéia de pré-compreensão. (MENDES, DO VALE, 2009, p. 7)
Em seu aspecto histórico, destaca-se que o ordenamento jurídico brasileiro, fundamentalmente influenciado pelo direito romano, tem como origem um conceito de família extremamente rígido e patriarcal, pautado exclusivamente pelo casamento e com cunho fortemente patrimonial. Herdou da Idade Antiga, ainda, a presunção de paternidade, que na família romana tinha justamente a função de proteger o casamento¹, já que as mulheres e os filhos eram de domínio do homem, chefe da família. (NOGUEIRA, 2001).
Destarte, o Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) seguiu o modelo codificado francês – o Código Napoleônico² –, o qual, por sua vez, tinha como base o antigo modelo clássico romano, hierarquizado e patriarcal³. Além do mais, é impossível deixar de notar a existência de algumas influências do direito canônico, determinantes na modulação da família da Idade Média, mais notadamente quanto a criação dos impedimentos para o casamento e categorização dos filhos. (NOGUEIRA, 2001).
Como consequência do modelo de família adotado pelo Código Civil de 1916⁴ (BRASIL, 2016), a filiação era igualmente inflexível e discriminatória, de modo que somente os filhos advindos do casamento, e, portanto, legítimos, tinham direitos reconhecidos, ao passo que os ilegítimos viviam à margem do reconhecimento e da produção de direitos. Isto é, a composição da filiação exigia a existência do casamento, ainda que não correspondesse à realidade biológica (DIAS, 2016). Aliás, o próprio Código previa expressamente, em seu artigo 358: os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos
(BRASIL, 1916).
Essa realidade, por certo, acabava por ocasionar incontáveis