O lado privado de uma pandemia
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O lado privado de uma pandemia - Maria José da Silveira Núncio
Agradecimentos
Se sempre acreditei que aquilo que somos é, também, determinado pela existência dos outros, daqueles com quem nos cruzamos nos vários caminhos da vida, este livro será, porventura, a maior das confirmações desta minha convicção.
Porque esta obra é fruto da generosidade e da partilha de tantos, que aceitaram responder ao meu desafio e confiaram em mim, para partilharem as suas vivências, mesmo as mais íntimas, num tempo único das nossas vidas.
A todos, que são muitos, deixo o meu mais profundo agradecimento.
Aos muitos autores desta obra.
Apresentação
Este texto constitui um ensaio, de base empírica, acerca das vivências privadas do confinamento, determinado pela Declaração do Estado de Emergência, em Março de 2020, em Portugal, na sequência da pandemia da COVID-19.
Nele pretendeu-se traçar um retrato, em tempo real e a partir de testemunhos escritos, das vivências neste período, dos seus impactos nos quotidianos e vivências e na formação de expectativas relativamente ao futuro.
Sem assumir, desde o seu início, qualquer pretensão de representatividade face àquilo que foram as experiências dos portugueses, neste período, este trabalho resulta, na verdade, de um desafio lançado no dia 1 de Abril de 2020, através de duas redes sociais: Facebook e WhatsApp, para que me fossem enviados textos acerca destes tempos, e das vivências a eles associadas.
Naturalmente que as primeiras respostas a este desafio foram aquelas fornecidas por amigos (reais e/ou virtuais), mas, tal como também tinha sido pedido, deu-se autêntico um fenómeno de "passa-palavra e as respostas chegaram num crescendo e em
bola de neve", provindo, posteriormente, de pessoas com quem não tenho contacto, ou conhecimento, mas que, sabendo desta recolha, tiveram a generosidade de me enviar os seus textos.
Entre o dia 1 de Abril, data em que foi feito o pedido e em que se contabilizava, já, uma semana e meia de confinamento, e o dia 28 de Abril, data em que, por opção, se concluiu uma primeira fase de análise dos documentos, por se aproximar a data do levantamento do Estado de Emergência – previsto para o início de Maio – foram recebidos e tratados cento e dezoito testemunhos escritos, sob a forma de diários, reflexões, desabafos, listas
e poesia.
Depois de 28 de Abril e até dia 13 de Junho, foram recebidos mais 54 documentos, quer sob a forma de diário semanal ou mensal, quer em formato de desabafo, o que me levou a proceder a uma nova análise, por verificar que a adaptação à nova realidade do desconfinamento
colocou novas questões, desafios e expectativas interessantes e de relevo.
A análise de conteúdo permitiu identificar, de início e durante o tempo de confinamento, cinco dimensões fundamentais: 1) Receios; 2) Vivências; 3) Factores de Resiliência; 4) Expectativas para o Futuro e 5) Evolução no Confinamento. Após o levantamento do Estado de Emergência, os testemunhos recebidos permitiram adicionar uma sexta dimensão que designei por: 6) O pós-confinamento e a procura da normalidade
.
Por se ter tratado de uma recolha em tempo real, no momento em que as situações foram vividas, acredito ter cumprido o objectivo de evitar alguns dos enviesamentos, que tendem a surgir quando se procede à tentativa de reconstituição posterior de vivências, nomeadamente, aqueles vieses ligados à interferência do processo de memória, ou à influência das impressões alheias, que poderiam determinar filtragens (intencionais ou não) naquilo que é relatado.
Neste sentido, o que se segue é algo que constitui um pequeno retrato do lado privado de uma pandemia e do confinamento, em Portugal, entre os meses de Março e Junho de 2020.
I. Da pandemia ao confinamento
No final de Dezembro de 2019, as notícias começaram a relatar uma epidemia numa província chinesa (Hubei), mais concretamente, na sua cidade-capital Wuhan. Algo vagamente relacionado com a venda de animais vivos nos mercados era referido como causador da doença, uma infecção respiratória de elevada contagiosidade e letalidade.
Mas a China fica longe, quase ninguém ouvira falar de Wuhan e o mês era, ainda, Dezembro, o que significa que andávamos todos a digerir o Natal e a preparar a Passagem de Ano, ou seja, sem grande tempo, nem disponibilidade para pensar em epidemias longínquas.
Até porque- e talvez fosse este o pensamento da maioria de nós- não temos por hábito comprar animais vivos no mercado e, menos ainda, escolher morcegos, ou afins, como especialidade gastronómica.
Portanto, todas as notícias nos pareciam distantes. Tão distantes quanto a sua própria origem. Além disso, estamos habituados a ouvir falar de epidemias com origem na China, de efeitos bastante controláveis (e controlados) e, por cru que possa parecer, sabemos, também, que a escala de valores, no que à população diz respeito, é muito distinta na China, pelo que as notícias iniciais de dezenas de mortos e centenas de infectados, soavam, ao cidadão-comum do resto do mundo, como algo pouco relevante…
Entretanto, a euforia das festas foi acabando. Entrámos num novo ano e as notícias acerca da doença, e dos seus efeitos, começavam a ser mais frequentes, ao mesmo tempo que os números de infectados e mortos adquiriam proporções mais elevadas, acabando por ser revelado o encerramento da cidade de Wuhan, para evitar o alastramento do surto epidémico.
Nesta fase, e embora algumas leves campainhas de alarme
começassem a tocar, a China continuava a ficar muito longe, e o número de cidadãos estrangeiros presentes na cidade era relativamente reduzido, tendo essa questão passado a constituir-se como uma preocupação em si mesma – o que sucederia a estes cidadãos estrangeiros? Quais as suas condições de segurança? Haveria necessidade de efectuar o seu repatriamento imediato? E, em caso afirmativo, como garantir a sua quarentena e isolamento nos países de origem?
Naquilo que pareceu ser uma certa indiferença (inclusivamente por parte dos organismos internacionais), negligenciámos que estávamos, de facto, perante a primeira epidemia verdadeiramente global, no sentido em que os fluxos de deslocação de pessoas e mercadorias tinham atingido níveis de intensidade sem precedentes, o que significaria, de forma inevitável, uma circulação igualmente intensa e rápida do vírus.
Num mundo em que a globalização era, desde há já algumas décadas, um conceito fundamental, debatido, discutido e controverso, na economia, na política, nas mudanças sociais – do emprego ao pluralismo étnico-cultural, da ecologia aos perigos da desregulação capitalista, das empresas globais ao mundo à distância de um clique, do consumismo exacerbado à massificação do turismo – foi necessário um vírus para nos dar a real noção do que é, e do que também pode significar, na prática, a globalização.
Um vírus, a que de início chamaram, apenas, Coronavírus, que se expandiu à mesma exacta velocidade a que se movimentavam as pessoas que o transportavam no seu organismo, desconhecedoras de que, face ao longo tempo de incubação da doença, se tinham convertido em potenciais transmissoras, ainda que assintomáticas.
Deslocando-se à velocidade do capital e à velocidade dos nossos quotidianos, espalhando-se por feiras de negócios, encontros culturais, reuniões políticas e viagens de lazer, o vírus deixou a China, e essa longínqua cidade sitiada de Wuhan, para chegar à Europa, designadamente, a Itália.
E, aí sim, as notícias tornaram-se mais preocupantes – porque mais próximas – e cresceu a consciência da real perigosidade daquilo com que estávamos prestes a confrontar-nos.
O