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A noite belga
A noite belga
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E-book554 páginas6 horas

A noite belga

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Sobre este e-book

Não é por acaso que este livro começa falando de desaparecimentos. Primeiro de palavras, logo de pessoas. Num mundo em que a dificuldade de lidar com a diferença é a norma, em que algumas formas de afirmação da identidade impedem enxergar o humano quando ele está do outro lado da fronteira (real ou imaginária) que nos cerca, é preciso olhar de todos os ângulos que nos sejam possíveis para dar conta de uma realidade que parece definitivamente decidida a se esconder de nós e fugir da nossa compreensão.

Os textos de A noite belga partem dos temas mais variados, trazem cenas de livros ou de filmes, da vida coletiva e dos indivíduos, revisitam as sombras lançadas pela guerra – o ponto sem retorno em que a humanidade é capaz de chegar ao genocídio, ao desejo de exterminar o outro – e analisam alguns dos mecanismos que regem a política contemporânea e a vida de uma sociedade que, num só tempo, submerge no espetacular mundo do consumo (as supostas maravilhas do mundo próspero) e em obscuras zonas de miséria e violência.

Bem distante do tom acadêmico, são como os textos de um cronista, alguém que o tempo todo conversa com o leitor, e esta é uma das suas principais marcas: uma grande (e às vezes provocadora) multiplicidade de assuntos, investigações, costuras de ideias e de acontecimentos. Mesmo quando trata dos temas mais áridos, sua escrita fluente, ora aguda e até irritada, ora melancólica (ou desesperada), sabe despertar nosso interesse na exata medida em que está sempre amparada em dados e números de uma ampla pesquisa e na constante apresentação de fatos históricos.

Ao mesmo tempo em que nos faz pensar, A noite belga é um livro que se lê quase como uma obra literária, daquelas que trazem uma nova surpresa a cada página.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento5 de mai. de 2021
ISBN9786559050789
A noite belga

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    Pré-visualização do livro

    A noite belga - Halley Margon

    a-noite-belga-capa_epub.jpg

    Sumário

    • desaparecimentos (vocábulos)

    • a estrada (1)

    • unabomber (manhunter)

    • nossos países

    • 150 mil alemães

    • a modernidade

    • a curvatura da história

    • a multiplicação das ofertas...

    • valores

    • porta rotatória

    • longe do olhar (séc. xxi)

    • Karl Kraus e o Quarto Poder

    • aeroporto (mas não qualquer aeroporto)

    • indústria da guerra (preâmbulo)

    • em nome do pai

    • bandidos xerifes e criadores de gado

    • o método

    • no topo do mundo

    • Greenberg e o comissário Gordon

    • duas mulheres do Tirol

    • anotações sobre a viagem

    • invenções

    • a noite belga

    • expurgos

    • deslocamento (1)

    • narcisismo (1.3)

    • 500 milhas

    • cobertura televisiva

    • uma puta, um banqueiro...

    • movimentos que se opõem

    • eu sou a força

    • quarto 666 – dez anos depois

    • o mar... o oceano

    • entretenimento no mar

    • a escolha dos protagonistas

    • o regresso a uma cidade alemã

    • limites

    • episódio 3 de John Adams

    • mate-me suavemente

    • a reinvenção do tempo

    • à margem da Lei

    • gestos

    • pânico em Texarkana

    • o gado de Sátántangó...

    • a duração do tempo

    • distância até o inferno

    • cavalos

    • novas distâncias (1)

    • vícios (1)

    • ordens vindas de não se sabe onde

    • novas distâncias (2)

    • chegada e saída

    • equinos (variedades)

    • (rememorando)

    • desaparecimentos

    Sobre o autor

    Texto de orelha

    Vivemos num mundo onde nada está na medida do homem; há uma desproporção monstruosa entre o corpo do homem, o espírito do homem e as coisas que constituem atualmente os elementos da vida humana; tudo é desequilíbrio.

    Simone Weil em A Condição Operária e Outros Estudos Sobre a Opressão

    Essa era uma de suas especialidades: enganar as pessoas ... Muitos acreditaram que sua versão dos acontecimentos era a verdadeira, sem parar para contar com rigor o número de assassinatos, belezas sedutoras, monstros com um olho só. Até eu acreditava nisso, às vezes. Eu sabia que meu marido era astuto e mentiroso, mas não achava que ele estava me traindo ou me contando mentiras. E o que me tornei quando a versão oficial ganhou terreno? Em uma lenda edificante.

    Margaret Atwood em La Versión de Penélope

    E, hoje, cá estamos, vitoriosos, esvaziados, exauridos e desapontados.

    Imre Kertész em A Língua Exilada

    Sou contra o assassinato, creio que é contraproducente.

    William Colby, ex-diretor da CIA

    • desaparecimentos (vocábulos)

    Se não nos damos conta ou quando nos damos conta não damos bola para o desaparecimento de pessoas, o que dirá para a sumidura de uma simples palavra. Porque é assim, como um corpo que se extingue de repente, e não se usa mais uma palavra. Foi exterminada. Sem que tenhamos nos apercebido ela foi progressivamente sendo deixada de lado, tão sutilmente como se por detrás desse desaparecimento não existisse uma atuação e uma vontade, uma determinação humana a provocá-lo. Simplesmente se apagou, como num passe de mágica. Não é que tenham arrancado e em seguida rasgado ou queimado a página do dicionário onde estava o vocábulo deletado. Não há necessidade disso.

    Ao invés, uma operação muito mais simples poderia passar sem ser notada: por meio de um processo químico qualquer fazer com que uma página aderisse à outra, digamos a página 1.046 à página 1.047, de modo imperceptível e, é claro, desde que não se submetesse o imenso livro a exames cuidadosos. Haveria que contar com a boa vontade ou a inércia dos leitores ou usuários. Não seria de se esperar demais. Pouco importa que para suprimir apenas um vocábulo se eliminassem umas tantas dezenas de outros. São os chamados danos colaterais. Para sermos justos, é bom lembrar que da mesma forma como se exterminam palavras, novas expressões são criadas para designar as realizações e os produtos do mundo próspero. São como os atos executados por mãos divinas ou mágicas. O fato de que os referidos danos colaterais tenham sua origem em atos de guerra não deveria nos amedrontar. São atos humanos iguais a tantos e tantos outros, planejados para alcançar determinados fins e o que importa é que o resultado esteja dentro do esperado. E você sabe, abolir o termo é como eliminar a coisa.

    novalíngua

    No horror das distopias imaginadas na primeira metade do século XX, como Admirável Mundo Novo (publicado em 1932), ou 1984 (de 1949), ou Fahrenheit 451 (1953) havia algo de ingênuo e explícito, menos aterrorizante que a realidade que agora nos cabe viver.

    o encobrimento das classes sociais

    Num texto da década de 1930, mas que poderia ter sido escrito ontem, Simone Weil dizia que as palavras opressores e oprimidos, a noção de classe, tudo isso está muito perto de perder (...) significação, de tal modo são evidentes a impotência e a angústia de todos os homens diante da máquina social, (...) uma máquina de fabricar consciência, tolice, corrupção, desfibramento e sobretudo vertigem.¹

    an american factory

    E, no entanto, há alguém fabricando com o esforço do próprio corpo cada um dos produtos que cedo ou tarde estarão expostos nas vitrines e prateleiras ou onde quer que seja, sempre ao alcance do nosso desejo. Dia após dia, hora após hora, ano a ano, sem possibilidade de interrupção. Há um sujeito. Há uma ação ou conjunto de ações minuciosamente orquestradas. Ele está ali para executá-las. São muitos. Corpos e almas. Uma brutal energia concentrada e organizada, como uma Armada submetida à mais ferrenha disciplina. Como um exército batido. É exatamente esse eles que constitui aquele alguém. É esse exército de almas que muitas vezes prefere se ver diluído (imerso) no vasto e mais ou menos indiferenciado e nebuloso universo dos consumidores – aquele no qual uma determinada senhora pode comprar ao fim de uma tarde de primavera uma bolsa de grife e pagar o preço de um automóvel novo, e uma outra senhora, talvez tão ávida de felicidade e apetites quanto a primeira, mas não tão abençoada pela fortuna, pode, após anos de esforço e renhida poupança (ou endividamento) comprar exatamente a versão mais barata daquele carro enquanto sonha, quem sabe, com a bolsa que ela, sim, sabe que existe, mas nunca vai poder adquirir. O mesmo universo onde a inelutável realidade de sua existência social se vê mascarada ou submergida na fantasia para escapar do insuportável mundo ao qual está irremediavelmente atrelado. Em algum momento, essa legião de almas foi chamada classe trabalhadora.

    *

    ‘Classe’ ainda é a categoria... mais sistematicamente silenciada ou apagada no nosso entendimento das relações humanas.²

    como se ali não estivesse um corpo

    Lançar-se na direção do limbo e da invisibilidade ou ser empurrado para lá. Quando o outro não o vê ainda que você esteja a apenas um metro de distância. Ele o ignora e ao fazê-lo é como se não lhe concedesse o direito de estar ali e de existir. Quantos milhões de cidadãos dos Estados Unidos, por exemplo, pelo fato de serem negros, não vivenciaram a experiência desse apagamento virtual? Você não existe, não está aqui, a cor da sua pele é de tal modo repulsiva que fecham os olhos para evitá-la, sua beleza é uma impossibilidade ontológica. De nenhum modo você pode estar aqui, não há espaço para você. Você não está vendo? Ou: você não se enxerga? Apenas o homem a mulher a criança branca podem tomar esse ônibus para se dirigir ao trabalho ou à escola, caminhar livremente pelas calçadas dessa cidade onde você mesmo, do mesmo modo que eles, nasceu. No melhor dos casos te concederão uma existência subalterna e você vai poder saciar sua sede eventual no meio de uma tarde de verão num bebedouro escondido, reservado exclusivamente para aqueles que têm a mesma aparência que a sua ou são como querem que você seja: subalternos, seres da sombra e da obscuridade. Nisto consiste o truque: tornar invisível aquele a quem se pretende anular. Apagar. Fazê-lo sumir como fazem os mágicos com os pombos. É também o contrário de trazer à luz, não é? De dar vida. O oposto de parir ou gerar. Foi o que fizeram os perpetradores nazistas com mais ou menos 6 milhões de pessoas. Mas isso foi outra coisa. Outra forma de aniquilamento.

    desaparecimento (pessoas)

    Da mesma maneira como alguns vocábulos desaparecem, outros são criados. A palavra genocídio, por exemplo, não tem um século de idade. Criada pelo advogado judeu Rafael Lemkin – nascido em 1897 numa cidadezinha da Polônia chamada Zólkiew –, aparece pela primeira vez no capítulo 9 de um livro de 700 páginas concluído em novembro de 1943, cujo título é O Domínio do Eixo na Europa Ocupada. A criação de Lemkin era "uma mescla do termo grego genos (tribo ou raça) e cidio (do latim cidere, matar). A este capítulo (Lemkin) deu o título de ‘Genocídio’", conta o também advogado e escritor Philippe Sands.³ Genocídio, como sabemos todos, se refere ao ato deliberado de exterminar (fazer desaparecer), total ou parcialmente, uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso...,⁴ populações ou povos, grupos humanos inteiros.

    aritmética 1

    Foram seis os campos de extermínio construídos e colocados em operação a partir do final de 1941, início de 1942.

    *

    Kulmhof, dezembro de 1941 a setembro de 1942 e junho-julho de 1944 (150 mil mortos), Belzec, março a dezembro de 1942 (434.508 mortos), Sobibor, abril a junho de 1942 e outubro de 1942 a outubro de 1943 (mais de 500 mil mortos), Treblinka, junho de 1942 a outubro de 1943 (800 mil), Lublin, setembro de 1942 a setembro de 1943 (50 mil) e Auschwitz-Birkenau, fevereiro de 1942 a novembro de 1944 (cerca de 1 milhão).

    *

    De modo geral, funcionaram bem até quase a rendição alemã, em março de 1945. De todos eles, o que operou durante mais tempo foi Auschwitz-Birkenau: 32 meses. Neste curto período, foram tecnicamente capazes de fazer desaparecer 2.900.000 pessoas (Hilberg, A Destruição..., p. 1.536) – esse número de quase três milhões se restringe aos executados nos campos construídos especificamente com este fim, eliminar os judeus europeus, os chamados Campos de Extermínio⁶ – não inclui as vítimas abatidas, por exemplo, nos outros campos de prisioneiros ou pelos Einsatzgruppen durante a invasão da Polônia e da União Soviética.

    Bannon visita Auschwitz (e se encanta por Birkenau)

    Steve Bannon, guia espiritual da ultradireita branqueada, descreve com entusiasmo sua visita ao complexo da morte instalado no sul da Polônia.

    (Então, o curador) disse: ‘Auschwitz era a escola de cavalaria polonesa quando os alemães a requisitaram. Aquilo foi o campo de prova. Birkenau, ao contrário, se fez a partir do zero.’ Desenho industrial alemão. Tudo está em perfeito estado. Caminho por ali incrédulo, é engenharia de precisão até o enésimo grau... Um complexo industrial institucionalizado para assassinatos em massa,⁷ comenta entusiasmado.

    variações no mundo próspero

    No princípio, e muito antes do desmoronamento do mundo de fantasia e terror construído pela burocracia de Moscou, veio a revolução industrial do camarada Deng na China do camarada Mao: privatizações controladas pelo Partido Comunista e a criação das ZEE-Zonas Econômicas Especiais, a partir de 1976. Grosso modo: ditadura de um partido organicamente vinculado à sociedade, sindicatos de trabalhadores ativos e eficientes a serviço dos interesses do Estado e do partido, e empresa capitalista funcionando a toque de caixa em regime semimilitarizado. Eis a sociedade sem classes do século XXI. Não há um único magnata do capitalismo ocidental que não sonhe diuturnamente com um sistema como esse.

    *

    Os capitalistas chineses, como o sr. Cao Dewang (fundador e proprietário da Fuyao Glass Industry Group Co. Ltda., personagem central do documentário American Factory da produtora do casal Obama e dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, 2019), poderiam se pavonear exibindo as majestosas taxas de acumulação e rentabilidade das suas empresas. O comunismo chinês, sócio do capitalismo do sr. Dewang, repete, ano após ano, níveis de crescimento sempre acima dos 6% (o mais baixo foi 2016, com 6,69%) desde 1999, atingindo quase 12% em 2007. Suas esposas e filhas e filhos fazem filas nas lojas das grifes mais exclusivas de Nova York, Paris, Londres, Berlim ou Barcelona, onde o capitalismo tradicional se contenta com cifras de crescimento bem mais acanhadas.

    O que faz o sr. Cao, além de se tornar bilionário na China inaugurada pelo sr. Deng (a Fuyao Glass foi fundada em 1987, nove anos, portanto, após a era iniciada pelo sr. Deng)? Assim como as esposas e filhas e filhos dos seus pares ele também vai às compras. Mas ao invés de futilidades investidas de magia o sr. Cao Dewang vai à América comprar plantas industriais paralisadas de gigantes da indústria, símbolos do capitalismo estadunidense e mundial. Em 2008, a General Motors encerrou as atividades, entre outras, de uma subsidiária em Dayton, Ohio, desempregando três mil trabalhadores. É essa a planta que o sr. Cao vai escolher para instalar uma filial da sua Fuyao Glass nos Estados Unidos e ali produzir para-brisas para automóveis – fabricados pela GM, inclusive.

    aritmética 2

    Na GM eu ganhava 29 dólares a hora. Na Fuyao eu ganho 12,84 dólares....

    aritmética 3

    Estamos trabalhando com um sistema de três turnos, o que sempre se fez. Vocês terão trinta minutos não remunerados para o almoço. E dois períodos de descanso pagos de 15 minutos cada. Muitas oportunidades, senhoras e senhores. Muitas oportunidades! – garante o feitor da Fuyao Glass America.

    Fordismo à moda de Beijing.

    • a estrada (1)

    Você vê? Estou te escrevendo para falar de nós, mas também porque preciso falar dessas mulheres e desses homens que jamais nos abandonam quando saímos para respirar e se reproduzem como vírus. Eu li num jornal daí, não faz muito tempo, um cientista dizendo que não é que ele, o vírus, esteja realmente tentando, porque ele não tem intenção, ele é apenas um vírus. Por isso me ocorreu usar o termo. A frase ficou grudada na minha memória. Acho que somos iguais a ele, ou muito parecidos, fazemos sempre o mesmo, a mesma matéria, a mesma máquina, não é? Eu já não suportava mais. Então, escute. Talvez isso possa te dar alguma resposta, se é que você precisa de respostas desse tipo. Você e eu, nós, nossos vizinhos, os parentes, os colegas de trabalho ou escola quando os tínhamos, nós que não paramos de fabricar – edifícios, grampos para cabelo, estradas, cidades, campos de extermínio, bombas de hidrogênio, submarinos, frotas estelares, ataúdes, escolas para os filhos, hospitais para os enfermos – se nos dão a oportunidade, se nos permitem, porque somos assim desde que viemos ao mundo, não nos resta alternativa, e mais ou menos nos contentamos, porque o que nos importa é colocar em prática o dom que Deus deu igualmente a cada um de seus filhos, o dom de criar e trabalhar e nos reproduzirmos e falar e eventualmente escutar. O que mais se pode querer? Assim vamos nos garantindo por aqui. Em cada parada desde que saí daí, lá estavam eles (nós). As cidades estão abarrotadas. A estrada está congestionada, mas, mesmo assim, funciona e o fluxo se mantém. E como não estariam? É a prova de que de uma ou outra forma estamos no bom caminho, e tudo indo mais ou menos perfeitamente bem – de mais a mais, quando isso não acontece, as espécies em geral empacam e logo se extinguem ou viram outra coisa, mutam, se degeneram. Às vezes têm a cara feia, outras são esquálidos. Alguns se mostram pacatos, outros excessivos. Os nossos semelhantes. Para mim é como se suas expressões revelassem um permanente ar de completude. Ou, ao contrário, de completo vazio – o que talvez seja uma forma de completude, você não acha? (Mas a quem interessa o que vejo ou deixo de ver? A quem poderia interessar meu juízo sobre o que encontrei ou vi na estrada desde que saí daí? Eu, a mais desequilibrada das mulheres da nossa vizinhança, como você é testemunha. De fato, a ninguém deveria importar. Enquanto você não sair por aí cuspindo na cara de quem cruza pela rua, ou emitindo impropérios na direção de desconhecidos, é assunto nosso – não é esse o acordo?) Por isso mesmo evito parar, tanto quanto seja possível. Prefiro não ver. Já não me preocupo em somar as distâncias, os intervalos de tempo entre uma e outra cidade, ou entre as tramas de acesso que mais ou menos fazem o tráfego engasgar e ameaçam o progresso dos veículos e dos que estão dentro deles. Preciso me manter concentrada, porque a verdade é que nunca vi um outono como este. E a estrada nessas condições se tornou uma ameaça permanente. A chuva se instalou na atmosfera sobre a autopista. Às quatro da tarde a claridade do dia já se foi por completo, os carros e caminhões estão de faróis acesos e os fachos de luz se entrecruzam na umidade do ar e se refletem sobre o asfalto molhado. Às quatro da tarde. Você pode imaginar? Como se fosse um cenário de um mundo ilusório exposto aos refletores de um teatro. Eu talvez devesse buscar guarida e esperar, esperar o quanto fosse necessário esperar, indefinidamente que fosse.

    *

    Mal se pode saber quando o sol se põe ou quando nasce. Em algum momento, após uma larga transição, a claridade na superfície do céu avisa sobre a passagem de uma situação para a outra. O outono, o irremediável outono. Eu não quero ouvir notícias da guerra e seus heróis – até porque já não há heróis nas guerras, nem homens existem mais, apenas mortos, vítimas, casualties, os mortos sim, esses são todos seres humanos como em todas as outras guerras, do passado e do presente. Nem quero ouvir falar da paz, essa paz fraudada, sob sursis, circunstancial ou permanente, mantida pela força das armas dos endinheirados e a serviço dos muito poderosos que jamais são vistos, daqui ou de onde quer que seja. Não ligo o rádio do carro e quando entro nas lojas da beira da estrada para comprar o que preciso para prosseguir evito olhar na direção dos jornais e revistas expostos nas prateleiras.

    *

    Por que ainda se escutam? Por que essa insistência em seguir falando uns com os outros e eventualmente até se comovendo e vez ou outra tentando denunciar a presença do mal? Por que você ainda lê todos esses livros e se deixa levar pelas histórias que diz encontrar neles como se possuíssem vida? Você está aí sentado no lugar de sempre, imagino, entregue à rotina das fantasias fabricadas que te fornecem um determinado quantum de distração (ou concentração, dá no mesmo), sua dose diária e renovável de morfina. De que serve essa beleza imaginada que contamina seu sangue e, por mais que você negue, ainda te dá esperança? O outro nome para esperança são seus compromissos. Laços que logo tomam a rédea e impedem que você se mova. Assim, quando sentir que precisa escapar ou pelo menos tentar fugir, não haverá mais como. Você está atado ao ponto de partida. Mas quem sou eu para te falar sobre suas decisões? Você sabe muito mais do que eu no que resultam as esperanças e os vínculos e os compromissos. Sempre soube, imagino. A vida social dos homens sobre a Terra é uma completa e irremediável calamidade, mas mesmo assim... Da última vez que nos vimos, você não sabia ainda que eu deixaria a cidade. Ou talvez soubesse. Você disse que, sim, que há os que insistem. E que se cada um de nós quando faz o que faz, o que quer que seja, não o faz por estrita necessidade, qualquer forma de necessidade, para comer, por exemplo, ou se abrigar, é que algum invisível motif deve haver.

    *

    Pequenos lapsos de razão (suponho) cortam a névoa que agasalha a estrada e é quando me dou conta de que estou semidespertando de um pesadelo para o interior do qual voltarei em seguida, sugada por um vórtice de esvaziamento contínuo. Você ainda está aí? Ela não deveria ter morrido, e disso você deve estar ciente. Alguns quilômetros atrás eu me lembrei da cena inicial daquele filme alemão que vimos juntos onde uma menina surda-muda, numa gestualização aflita e triste, se esforça inutilmente por traduzir para os que estão à sua frente a tormenta de sentimentos que lhe vão por dentro. Você se recorda dessa cena? (Ou não o vimos juntos?) Entretanto, agora me dou conta, há algo de diferente no horizonte: é que provavelmente atingimos o fundo e o ultrapassamos e o lugar onde afinal chegamos é um universo regido por uma ciência à qual jamais teremos acesso, um Buraco Negro cujas leis nos são inacessíveis e as bordas intangíveis, um pedaço do mundo (ou a negação disso) radicalmente novo e ao mesmo tempo umbilicalmente preso ao passado, um arremedo fabricado por nossas ações, mas não à nossa imagem e semelhança. Ao contrário: à imagem e semelhança dele, independente de nós, hostil à nossa natureza e ao que restou de espírito humano, à nossa humanidade, se é que ainda nos sobra alguma, se é que existe qualquer coisa como essa que nos acostumamos a chamar nossa humanidade – seja como for.

    *

    Eu não podia mais. Não conseguia. Era impossível continuar. Cada esquina, cada parede, cada cor, os ruídos daqueles com quem cruzávamos nas ruas, a vida cotidiana foi se tornando insuportável. Era intolerável para mim permanecer aí, nessa cidade, nesse lugar – me olhando no espelho apenas para ver o medo, a preguiça, o desalento e a adesão sumária dos nossos vizinhos se repetirem ad infinitum até meu integral sufocamento.

    *

    Estacionei o carro ali atrás para fazer uma fotografia de um posto de gasolina. Talvez para me certificar de que não são todos iguais. Tenho feito fotografias da estrada, da margem, de objetos, das pessoas, disso que usualmente se fotografa, tão aleatórias quanto possível. Quem sabe uma maneira de me proteger contra a repetição e o cansaço que resulta da repetição. Pode ser que por qualquer motivo me sinta aliviada, apenas isso. Suponho, suponho apenas para exercitar essa faculdade que nos é ou deveria ser própria, que poderíamos retroceder e, de novo, nos tornarmos nômades – uma hipóteses disparatada, eu sei. Voltarmos ao nomadismo, você pode imaginar como seria? Será que existem rotas que não foram ainda percorridas? Digo, fora da rede de autopistas e suas conexões e rotatórias. Poderíamos também retomar outros antigos hábitos já há muito deixados para trás pelos nossos ancestrais e esquecidos. Mas quais hábitos deixamos para trás? Quais, afinal, foram de verdade largados ou esquecidos desde que abandonamos as cavernas? A caça aos animais selvagens? Caminhar longas distâncias sem recorrer a máquinas. Será que poderia nos ser útil?

    *

    Apesar da chuva inestancável, uma fina capa de sujeira recobre permanentemente a carroceria do carro e adere à pintura na forma de uma segunda pele, tanto quanto a chuva e a umidade sobre a estrada que avança horizonte adentro como uma serpente iluminada até sumir na escuridão da noite ou do nada.

    • unabomber (manhunter)

    Diálogo com o policial (Jim Fitzgerald) que está na caçada ao Unabomber na série televisiva Manhunter: Unabomber:

    "– Seja lá o que estiver pensando, não começou com esse caso. Aconteceu bem antes do Unabomber. Só pode ser.

    "– Eu sei. Eu não sei quando comecei a me sentir tão impotente.

    "– Nós todos nos sentimos assim.

    "– Se todos nos sentimos assim, o que fazemos a respeito? Nada. Nós gostamos de nos sentirmos presos, dominados. A liberdade é muito mais apavorante que a escravidão.

    "– Mas não há nada a fazer. É a vida. Esqueça isso e viva.

    "– Isso não é a vida. Isso não é viver. Isso é sonambulismo. Assistir TV, comer porcaria, trabalhar para se tornar algo para outra pessoa. E ninguém faz nada. Ninguém tenta exceto o Ted (Kaczynski).

    "– Sim, mas ele é o Unabomber. Ele é mau.

    – Entre aqui...

    Atacado por uma espécie de síndrome de Estocolmo, o investigador Fitz parece ter lapsos da consciência do Unabomber invadindo a sua consciência. Não há como saber se essa é de fato uma dúvida que atormentava a alma do investigador ou se é apenas liberdade poética de parte dos roteiristas para tornar menos raso o personagem e a série menos boçal do que rotineiramente costumam ser essas séries americanas para TV. Aqui, ao se identificar com aquele que está caçando, o detetive mais ou menos quebra a zona de maniqueísmo que invade a investigação – e a atenção do espectador. Traz credibilidade às palavras e à existência do antagonista, a história ganha alguma densidade dramática. O estereótipo talvez se desfaça. Não, o perigoso Unabomber, o terrorista plantador de bombas que ataca cidadãos inocentes não é apenas a representação do mal, um não-ser destituído de fala e humanidade. Ao contrário, ele tem algo a dizer e o que ele tem para dizer pode ser ouvido. O alerta está feito, nem chegamos ao meio do segundo episódio de um total de oito. Não é pouca coisa para uma série de televisão produzida nos Estados Unidos no final da segunda década do século XXI.

    Os eventos a que se referem tiveram seu ápice quase exatos vinte anos atrás, em 1997, quando Ted Kaczynski, o Unabomber, após ser preso, foi levado a julgamento e condenado a quatro penas de prisão perpétua. Foram apenas duas décadas de lá até aqui, mas, consideradas as normas e os procedimentos do chamado Estado Democrático de Direito, há um abismo a separar estas datas.

    Tendo em conta os métodos atuais, é tocante, comovente mesmo, o extremo cuidado com a jurisprudência para levar a cabo a invasão do local onde vivia Kaczynsky.

    Há uma longuíssima e opressiva espera para que um juiz emita a ordem autorizando a invasão, e ela só acontece a partir do momento em que o magistrado finalmente toma sua decisão – embora haja o risco do fracasso de uma operação que, após quase duas décadas de frustradas investigações, milhões de dólares de gastos, seguidas derrotas e humilhações públicas, finalmente pode resultar na prisão do então terrorista mais procurado da América.

    unabomber 1

    No decorrer daquelas quase duas décadas Ted Kaczynsky tinha criado o seu próprio país, um território sem bordas no qual podia atuar quando e como quisesse e no qual conseguiu se fazer ouvir. Kaczynsky era um invasor dentro do país onde nasceu e contra o qual havia decidido declarar guerra, impondo os termos e as condições nos quais essa guerra se realizaria. E assim foi até o dia em que o surpreenderam, o encurralaram e, literalmente o enjaularam, arrancando seu corpo de monge franciscano de dentro da ascética cabana onde viveu quase vinte anos. De lá, continuou enviando suas cartas bomba. Mas isso foi o desfecho ou parte dele.

    Nas duas décadas que antecederam aquele dia do começo de abril de 1996, o Unabomber criou uma situação inédita dentro dos Estados Unidos ao se impor ao sistema de poder e à grande máquina policial e midiática da nação. Forçou o Estado e as grandes corporações de comunicação a tornar audível sua voz dissidente, enlouquecida, e fazê-la ser ouvida por milhões de pessoas.

    Dadas as circunstâncias da política contemporânea (nos quais tipos como D Trump, B Johnson, S Berlusconi, G Bush etc. se multiplicam como moscas), a imagem de lunático que trataram de associar ao seu nome bem que poderia ser considerada discutível. A verdade é que vez ou outra, como mínimo, seria razoável dar voz aos dementes, aos desequilibrados, que esses ao menos não se escondem atrás das máscaras institucionais ou do cinismo. E escutá-las. Como nos lembrou Domenico, o louco das termas Vignoni de Nostalghia¹⁰ antes de se autoimolar na praça do Capitólio em Roma: Vocês, os sãos, o que significa a sua saúde? Todos os olhos do mundo enxergam o precipício em que estamos caindo... os assim chamados sãos foram os que conduziram o mundo para a catástrofe.

    Kaczynsky escolheu e determinou quem lhe interessava fazer o que queria que fosse feito e que o fizessem, e quem não (queria ver seu manifesto contra a sociedade industrial publicado no The New York Times e no The Washington Post, mas não na revista Penthouse do playboy Bob Guccione – e assim foi).

    Poderia ter sido um evento isolado, uma ação desgarrada no tempo e no espaço, acting e ponto final. Ou até mais de um, dá no mesmo. Ao resistir por anos e anos como um vulto ameaçador ao qual por mais que tentassem não conseguiam eliminar, se tornou uma permanência. Ele estava lá, ocupando um espaço contínuo cujos limites podiam inclusive ser alargados, e de fato iam se alargando na medida em que não conseguiam nem o prender nem o matar. O medo o fazia crescer, o mistério e a imaginação lhe acrescentavam novas áreas a cada bomba detonada. Suas cartas explosivas podiam alcançar qualquer ponto da geografia do país, até o mais remoto – o sistema de distribuição de correspondências é extremamente eficiente, não restam dúvidas. O Unabomber tinha o poder de fazer com que os inimigos declarados cumprissem suas demandas exatamente porque tomou uma parte do território que lhes pertencia. E o mantinha sob ocupação.

    casting (quem fará o papel do torturador?)

    Imagine-se o peso que muitas vezes recai sobre o responsável pela escolha do elenco de um filme sem que não lhe prestemos as devidas homenagens. Quem, por exemplo, escolheu Jon Voight para interpretar o brutal Oscar ‘Manny’ Manheim em Expresso para o Inferno de Andrey Konchalovsky (1985, realizado a partir de um roteiro original de Akira Kurosawa) mereceria boa parte dos créditos pelos méritos da produção. A escolha do ator, ou dito de outra forma, da cara ou imagem daquele que deverá representar determinado personagem pode ser crucial na transmissão da mensagem. Isso todos sabem.

    As coisas podem se tornar bem complicadas quando se apresentam questões como: quem vai representar o herói e quem deverá representar o torturador? Ao menos quando se apresentarem situações nas quais o torturador, por exemplo, puder simultaneamente ser herói. Porque, sim, isso agora é permitido.

    Em A Hora Mais Escura,¹¹ quem desempenha o papel do torturador é Jason Clark, da nova safra de galãs da indústria de cinema lá pelos anos 2010. Como um dos protagonistas da ação, ao seu personagem cabe por a mão na massa no enfrentamento contra a mais maléfica das pragas que ousou atacar o coração da América e matar três mil dos seus inocentes cidadãos: a Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Essa é a versão da sra. Bigelow, que pela sua obra foi laureada com cinco estatuetas no Oscar de 2013, inclusive a de melhor filme.

    *

    Você é meu, Ammar. Você me pertence. Se não olha para mim, eu te machuco. Se pisar fora desse colchão eu te machuco. Se mentir para mim eu te machuco... No final todo mundo quebra, Ammar. É a biologia.¹²

    *

    Com a ajuda daqueles lindos olhos azuis e a serenidade de um professor em sala de aula a frase do torturador dirigida ao preso no intervalo de uma sessão de sufocamento com água tem o poder de nos convencer imediata e irremediavelmente. E, também de nos seduzir. Antes de mais nada, é de um bom senso pavoroso. Naturalmente somos arrastados para o que nos parece tão inquestionável quanto as leis da biologia ou as regras do bom senso. Você precisa ceder, Ammar. Delatar. Revelar tudo o que o Jason Clark quer que você lhe revele. Ah! Aqueles olhos azuis e aquela firmeza tranquila apelando às leis da biologia. Quem pode resistir a um tal desempenho?

    Mas é mais que isso. O mecanismo é muito mais sofisticado. Clark, assim como a analista que dá caça implacável a Bin Laden (Jessica Chastain), está seguramente nessa lista privilegiada dos mais carismáticos atores e atrizes que a Indústria rotineiramente descobre e utiliza em suas melhores produções. Por melhores quer dizer realmente melhores, destinadas a um público adulto capaz de raciocinar e se deleitar com uma narrativa que tenha pelo menos uma mínima estrutura mental. São atrizes e atores que enchem nossos olhos, como o próprio Clark – ou Joel Edgerton, Michael Shannon, Robert Pattison etc., alguns deles chegam a cativar diretores não hollywoodianos. Michael Shannon, por exemplo, trabalhou com Werner Herzog em My Son, My Son What Have ye Done (de 2009, com Willem Dafoe e Chloe Sevgny), e com Park Chan-Wook na série A Garota do Tambor, Pattison com David Cronenberg etc.

    *

    Clark, sem nunca alterar a voz, calmo, íntimo, o rosto a pouco mais de vinte centímetros do rosto do prisioneiro, o tom é quase o de uma confidência:

    "– Quando você mente para mim eu te machuco... Voltamos à água (ao sufocamento por água)? Ou você prefere outra coisa? À água?

    "– Não, por favor!

    "– Basta que você me dê um nome.

    "– Eu não sei. Eu não sei.

    – Você vê como funciona a coisa? (...) Isso é uma coleira para cães. (Coloca a coleira no pescoço do homem.) Você decide como te trato. (Puxa-o pela coleira que se arrasta pelo chão.) Você é o meu cão. Vou te levar para passear.

    *

    Aqui ninguém brinca em serviço.

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