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Atrás da pauta: Histórias da música
Atrás da pauta: Histórias da música
Atrás da pauta: Histórias da música
E-book621 páginas8 horas

Atrás da pauta: Histórias da música

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Sobre este e-book

Júlio Medaglia, com uma batuta, é covardia. Quero vê-lo é reger palavras. Pois, neste livro, Júlio extrai música de laranjas, vinhos, araras, uma válvula de transmissor e até do balanço comercial de uma empresa. O que esperar, aliás, de um sujeito que já deu conselhos a Stanley Kubrick, bebeu com Astor Piazzolla, teve uma epifania em Parintins, musicou Grande sertão: veredas e, de calças curtas, viu o elenco do Scala de Milão sentado a uma mesa de restaurante em São Paulo?
Os textos reunidos em Atrás da pauta — histórias da música soam como um concerto da inteligência. Por eles passam grandes nomes de várias disciplinas: Stravinsky, Ernesto Nazareth, Alberto Nepomuceno, Satie, Cage, Boulez, Charles Ives, Herbert Read, Ernst Lubitsch, Orlando Silva, Gene Kelly, Bernard Herrmann, Muhammad Ali, muitos mais — prova de que o século XX não foi um tempo tão mal assim para se viver.
A facilidade com que Júlio passa da "alta" à "baixa" cultura sem nos darmos conta de qual é qual é a de um maestro tão à vontade numa casaca quanto em solenes mangas de camisa.
RUY CASTRO
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento21 de jun. de 2021
ISBN9786587639437
Atrás da pauta: Histórias da música

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    Atrás da pauta - Júlio Medaglia

    Júlio Medaglia

    ATRÁS DA PAUTA

    HISTÓRIAS DA MÚSICA

    À Sabine, meine Frau , que acompanhou a criação dos artigos deste livro desde o início.

    Sumário

    Prefácio, por Leandro Karnal

    Apresentação

    Textos de intervenção

    Nem só de vitamina C vive o homem

    Uma sinfônica para a Amazônia

    Mão no bolso pela cultura

    Um novo Stravinsky?

    Século XXI. E agora?

    O público e o privado em música

    Stockhausen falou

    Estoque regulador cultural

    Deputado, cadê o meu?

    A música clássica? Vai bem, obrigado!

    Salve-se a polêmica Lei Rouanet

    Zonas de vulnerabilidade social

    Sustentabilidade cultural

    1900 – um século que acaba quando começa

    Stravinsky e o iPhone 6

    A contribuição do negro na cultura do Brasil

    Música e outras artes

    Música unindo povos no século XXI

    A semântica do som

    Johann Strauss Jr. e as trilhas sonoras de Kubrick

    Armando Belardi – um tocador de obras (-primas)

    O Bolshoi é aqui

    Sorry, Bernard Herrmann

    Grande Haroldo

    Ennio Morricone – o Puccini do celuloide passou por aqui…

    Artur da Távola, dos sonhos e da música

    Um corpo que cai e me perturba…

    Tudo é música, meu amigo… (Machado de Assis)

    O furacão cultural Sergei Diaghilev

    Mário de Andrade e a valorização da cultura espontânea

    Cyro del Nero – o mago das formas

    Welles e Hitchcock sabiam o que queriam do som para seus filmes

    Millôr Fernandes – gênio universal

    As crônicas musicais de O Judeu o levaram à fogueira em praça pública

    A poesia está mais próxima da música que da literatura

    Décio Pignatari – 1927/2012

    Três Josés e a unificação da Itália

    Ave Abu – a anarquia organizada

    O Império Austro-Húngaro invadiu a América e venceu

    Augusto de Campos 90 (ou a implosão da poesia)

    Música e mídias

    Deutsche Grammophon e o pioneirismo da gravação musical

    Irineu Garcia vive!

    Labirintos da TV no Brasil

    Walter Avancini – o feiticeiro do som

    Rádio Cultura: da Voz do Juqueri ao Palácio do Rádio e à Fundação Padre Anchieta

    O disco morreu! Viva o disco!

    Viva a pirataria?

    Todo o piano brasileiro

    Carreiras em prelúdio

    Abelardo Figueiredo (1931-2009): um Ziegfeld brasileiro

    Walter Silva, Pica-Pau e emudecido

    Rádio Gazeta de saudosa memória

    TV Cultura de São Paulo – emissora pública e útil

    Rádio Cultura FM de São Paulo

    O futuro está nas nuvens! (e a qualidade?)

    Compositores brasileiros

    Um mulato-indígena de sapatilhas em Milão

    Radamés não sabia que era Radamés

    Camargo Guarnieri e o atropelo histórico

    Do universo à vil(l)a e vice-versa

    Grazie mille, Felinto Santoro!

    Villa-Lobos × Tosltói

    Almeida Prado – versatilidade e talento

    Camargo Guarnieri: de pianeiro do cinema mudo e mestre da ourivesaria sonora

    Maracatu × dodecafonismo: Guerra Peixe

    Um bruxo sorrateiro, revolucionário e encantador: Glauco Velásquez

    Viva Chico Bororó! Ops, Francisco Mignone

    Um povo que não canta em sua língua não tem pátria

    Os 150 anos de O Guarani

    Compositores estrangeiros

    Gershwin: enfim uma música autenticamente americana nos palcos nobres

    O bruxo da Rússia pagã

    A cosmo-agonia de Arnold Schönberg

    John Cage veio para explodir e não para explicar

    Charles Ives: o grande inventor

    Satie/Boulez 80 anos

    A mosca de Seixas e a de Scriabin

    Karlheinz Stockhausen – 1928-2007

    O enfeitiçado ano de 1911

    Petrushka: um demônio no universo artístico

    Claude Debussy: uma música sem sabor de chucrute, ou o início do século XX musical

    Pierrot lunaire e a explosão de uma linguagem

    Claudio Monteverdi – o pai da ópera

    Bach jogava um bolão

    Relembrando Pierre Boulez

    Beethoven, o precursor

    Agora essa viúva é de todos…

    Charles Gounod, um francês às voltas com o convulsionado mar wagneriano

    Offenbach no inferno

    Dos campos de beterraba surgiu a música do futuro

    Maestros

    Sobre excelência e Sir Georg Solti

    Caviar sinfônico e popular

    Podium de ouro

    Bravo, maestro!

    Eleazar e a lâmpada queimada

    Karajan, o mago!

    Hoje vai ter peixada na casa do Bocchino

    Pierre Monteux: as rédeas do início do século XX musical em suas mãos

    Estão brincando com a interpretação artística

    A música e os demônios que a cercam

    Habemus Dirigent!

    Arturo (do celta): urso rei, forte, corajoso, nobre

    Leonard Bernstein, o mais importante músico americano do século XX

    Grande Benito Juárez

    Separados, porém juntos (viva a música!)

    As intérpretes

    Maria José dignifica Nazareth

    Segue cantando cada vez melhor

    Guiomar Novaes não era pianista (era feiticeira!)

    Grande Neyde Thomas

    Magda Tagliaferro (presque tout…)

    A voz de Magdalena Lébeis capta o sentido secreto das coisas

    Olga Praguer Coelho – uma embaixadora da alma musical brasileira

    Yara Bernette e a mulherada ao piano!

    A incansável Anna Maria Kieffer

    Os intérpretes

    As bolachas sonoras de Sergiu Celibidache

    Ciao, Capella!

    Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim – uma grande microempresa!

    A mais bela voz de tenor que ouvi…

    Ah… Questi tenori!

    Plácido Domingo, monumento da música

    Roberto Szidon só se comunicava com o mundo através da música

    Os 90 anos de Edmundo Villani-Côrtes

    Os Kleibers e o jantar de despedida

    João Carlos Martins, o indestrutível

    Músicos estrangeiros no Brasil

    Achtung! Independência ou golpe?

    Em 1904 aqui chegava Furio Franceschini

    Dankeschön, professor Koellreutter

    O Garatuja e o tufão Ernst Mahle

    Rua Maestro Ernesto Mehlich

    Köszönöm, Sándor Herzfeld (aliás, Perez Dworecki)

    E Darius Milhaud chorou na hora do adeus…

    Uma ponte São Paulo-Budapeste

    A longa aventura de Frank Smit entre a vida e a arte

    A Áustria descobriu o Brasil (musical)

    MPB, rock, jazz, outros registros populares e música erudita

    Astor Piazzolla: la música y el vino

    Enfim uma ópera brasileira: Parintins

    A dor festiva do gospel

    A flauta mágica de Altamiro Carrilho

    O piano erudito de Amilton Godoy

    Piano de saias

    As fadas não morrem

    Ernesto Nazareth em Berlim

    A revolta das cordas dedilhadas

    Rogério Duprat estava certo!

    Forrobodó na música

    … e o samba virou cultura!

    Essa refinada nova bossa

    Pixinguinha e Jobim – um diálogo quase sublime…

    Piazzolla – o kitsch na vanguarda

    Frank Zappa – o incansável garimpeiro

    Nazareth eterno na longitude do universo

    Este Garoto mudou a música do Brasil…

    Já houve vida inteligente no universo do rock

    O fino violão de Dilermando (rei dos) Reis

    Parafernália-batalha da Tropicália

    Ó abre alas que eu estou no Google!

    João Gilberto ou A cultura popular se misturando com a vanguarda artística

    Duke Ellington fazia música do negro americano

    Zuza Homem de Mello: o ouvido clínico da MPB

    Ensino e pesquisa musical

    Ensino musical no banco escolar sim!

    Flautas versus estiletes (ou Bravo, prof. Hartmann!)

    Escola Livre de Música – um exemplo

    Barroco × Bossa

    Professor Hasel aus Berlin

    José Siqueira – dos cafundós da Paraíba para o mundo

    Barroco mineiro – um caso de polícia

    Aplausos para Roseana!

    Vasco Mariz e sua prospecção em nossa cultura musical

    Música portuguesa de extrema qualidade, com certeza

    A obra de arte musical no som de antigamente

    Mário de Andrade, investigador apaixonado da alma brasileira

    ETC.

    Músicos e esportistas para o conselho da ONU

    Esculpindo o som

    Viva Viena! Abaixo Freud!

    A música e o ser humano

    Bach versus Steve Jobs (ou o eterno e o descartável)

    O emblemático ano de 1913 em Viena

    Música e futebol

    Só o humor constrói

    O emblemático ano de 1917

    … e Beethoven empossou Macron!

    A música e os mistérios da alma (ou vice-versa)

    Agradecimentos

    Sobre o autor

    Prefácio

    O som e o sentido

    A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava. Do pensamento tão íntimo que ouvindo alguém repetir as ligeiras nuances dos sons, Joana se surpreendia como se fora invadida e espalhada.

    (Clarice Lispector, Perto do coração selvagem)

    Ela tentava se descobrir em um mundo complexo. A curiosidade era acompanhada de medo. A personalidade fragmentada e atormentada de Joana/Clarice podia ser unificada pelo som. A música a desnudava como se fora invadida e espalhada. Ela se perdia no seu interior e no seu silêncio procurado. Se desse um grito – imagino já sem lucidez – minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Joana buscava mais do que a liberdade simples. A música fazia uma delicada ponte entre a consciência extrema e o mundo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.

    Perto do coração selvagem não é sobre música. Trata de uma mulher tateando no escuro. Ela não é muito diferente de nós, apenas é mais percuciente na percepção de si, talvez até mais honesta do que somos, quando contempla o espelho. O que pode salvar todas as Joanas? Eu responderia: arte.

    Em cada bom texto, em cada poesia, em cada nota pungente de uma Paixão de Bach, existe a chance de eu perceber que não estou sozinho. Minha Joana tange o alaúde do alemão, como Mário de Andrade dizia ser um tupi tocando o instrumento europeu. Minha consciência dança com o final da Nona sinfonia de Beethoven. Minha geometria interna explode com o Concerto 21 para piano, de Mozart. Olho alguém tocando o terceiro concerto para piano de Rachmaninoff e imagino que as mãos que conseguem aquilo são a ponte da minha realidade humana com o Übermensch de Nietzsche. Sou Joana, Zaratustra, sou Bach, Beethoven, Mozart e Rachmaninoff. Nada tenho da inteligência deles, apenas compartilho da humanidade aturdida que se agita nas danças macabras das pestes de todas as épocas. E, não obstante… estou vivo! Posso ouvir e sofrer epifanias com melodias, pausas e ritmos.Nada me faz sentir tão humano e vivo como a música. Sem ela, o buraco negro no centro da minha galáxia da consciência teria me deglutido há anos.Sim, somos as caveiras inexoráveis que dançam na Peste Negra, mas dançamos!

    A música desnuda, comove, vira leitmotiv existencial.Qual o andamento?Noites delarghissimo e dias de prestissimo, elegíaca, rica em contraponto e, no fundo,simples. Com o tempo, produz certaconsciência, ma non troppo.

    É preciso beber da taça do universo. O excesso afoga, a falta desidrata. A metáfora da taça é do poeta Omar Khayyan. Ele diz que meu nascimento não trouxe nenhum proveito ao universo. Minha morte não lhe diminuirá a imensidade nem a beleza. Ninguém pode explicar-me por que vim, por que me vou embora. Tudo verdade, caríssimo Omar, mas há música…

    ***

    O livro que você está começando exibe três promessas preliminares na capa. A primeira é que iremos ver atrás da pauta. Sendo a parte invisível, a que fica oculta pela simples partitura-pauta, terá segredos desvendados, revelações inacessíveis aos que não dispuserem do texto. Pauta também significa, na língua portuguesa, contrato entre pessoas. Da mesma forma, é uma lista de temas jornalísticos que serão seguidos em uma redação. Ver atrás de quaisquer acepções da palavra pauta é um privilégio restrito. A primeira promessa, o desvendar da pauta, é um convite desafio. Sigam-me para as coxias do grande teatro do mundo, sussurra o título.

    A segunda promessa é a do subtítulo: histórias da música. Plural, como pensou o pai da área, Heródoto. São narrativas, são verídicas e testemunhadas, outro sentido da palavra história/histórias. Ao ler, encontraremos fatos encadeados constituindo um rosário luminoso de memórias.

    A terceira promessa é a expectativa criada pelo nome Júlio Medaglia. É um maestro e compositor, claro. Todavia, não é nome comum. Brilhou no Brasil e no exterior. Foi referendado e aplaudido nas mais tradicionais casas e orquestras do planeta. Ele é múltiplo, polímata: rege o erudito, faz música popular, imagina trilhas, lidera programas de rádio, escreve e dirige: mais do que um maestro, uma personalidade solar e ativa. O nome do paulistano Júlio Medaglia na capa faria o leitor, minimamente informado, prever boas coisas.Três expectativas brotam em título, subtítulo e autor.

    A biografia do maestro é, como costuma acontecer com grandes nomes, uma narrativa da cultura musical em si. Lá está ele, no Festival de Campos do Jordão ou regendo a Carmina Burana para uma plateia mesmerizada na reinauguração do Pedro II em Ribeirão Preto (SP). Vemos ressurgir a glória de Carlos Gomes e do seu admirador/admirado: Verdi. O guarani eclode no Leste europeu, sob a batuta de Medaglia.Generoso, luta para resgatar do esquecimento nomes como Clemente Capella, ou a luta de Irineu Garcia. Resgatar pessoas da área criativa é seguir o cuidadode Hamlet a Polônio para que cuide bem do grupo poisos artistas são o relato e a crônica de seu tempo (they are the abstract and brief chronicles of the time. Hamlet, Ato II, cena 2).

    Aprendemos, no texto, que a música pode unir desconfianças históricas e superar dores, como o demonstra Zubin Mehta ao reger Beethoven. Memórias complexas entrelaçadas com o gênio de Bonn. Coisa de alemão?Aprendi com o mestre Medaglia que a trilha sonora pode dirigir nosso olhar para o sublime ou o ridículo do seu Quequé, nosso poligâmico brasileiro. Não entendeu? Mais um motivo para ler o livro…

    Como explicar o que a música provoca em todos nós? O autor exporá o tema na maravilhosa crônica A Música e os mistérios da alma. Sim, podemos desvendar a carga pungente ou sacra de Bach e de Beethoven. Podemos invocar Freud e Nietzsche para chegar aos segredos mais densos da psique humana diante da música. Porém, continuamos com uma pergunta densa: como explicar a ebulição emocional que podemos sentir ao ouvir um simples acorde de dó menor? Não sei a resposta para tal indagação, mas dei vários passos para entender mais ao ler a obra Atrás da pauta.

    Eu disse, no começo, que era uma tríplice promessa. Como no acorde identificado pelo maestro na Quinta sinfonia de Beethoven, a primeira nota é o dó: a pauta. A segunda é o subtítulo, um mi bemol: as histórias. A nota final é o sol com que Júlio Medaglia nos ilumina ao longo das páginas.

    Ouse ler! Melhor: leia ouvindo música! A batuta do maestro virou pena e as notas cantam no alfabeto das páginas. Ler vem da mesma fonte latina de semear: legere. Que cada nota-letra permita uma alforria na sua alma. Sim, sem música a vida seria um equívoco, dizia outro alemão. Conhecimento liberta sempre, porém, só a música pode dar sentido à liberdade.

    Leandro Karnal

    Apresentação

    Parece incrível como um primitivo desenho de apenas cinco linhas paralelas sobre as quais se respingam algumas bolinhas pretas, maneirismo esse inventado há mil anos por um padre de nome Guido, da cidade toscana de Arezzo, iria transformar e mesmo agigantar os componentes e o próprio curso da história da música ocidental. As propriedades que esse simples, mas diabólico engenho tem de armazenar alguns sinais que representam sons deixaram de ser um mero artifício gráfico auxiliar da música para representar um riquíssimo acervo de ideias e, mais que isso, de grandes emoções humanas, algumas imorredouras.Quando um angustiado músico alemão há mais de 200 anos colocou três notas curtas sol e uma longa mi numa pauta de cinco linhas para dar início à escrita de sua quinta sinfonia, ele não estava manipulando rabiscos e sim operando um inexplicável milagre. Como é possível que esse simples desenho, em verdade representando o mais primitivo tema musical da história – só duas notas e dois ritmos –, repetido à exaustão na sinfonia, ainda hoje arraste milhões e milhões de pessoas às salas de concertos ou motive a compra de uma das inúmeras gravações existentes para que ele possa ser ouvido na intimidade doméstica algumas centenas de vezes na vida ? Mais que isso. Quando um dos mais alucinados monstros da história da humanidade queria provocar seus concidadãos a embarcarem em seu projeto megalômano de dominar o mundo, ele soltava a todo vapor pelas rádios austro-alemãs o tchã-tchã-tchã tchãããããã e todos apoiavam com o maior entusiasmo seus atos que promoveram a quase total destruição do país, à época, curiosamente, capital da vanguarda cultural europeia. Como se vê, há mais mistérios atrás de uma pauta musical de cinco linhas que a vã filosofia possa explicar!

    E foram esses mistérios da natureza artística e humana ocultos atrás dessa pauta mágica que sempre me seduziram – tanto quanto o prazer de fazer música. Por essa razão procurei investigá-los e aos poucos, com eles polemizando, colocá-los em textos, alguns dos quais tenho agora a imensa satisfação de publicar neste livro.

    No início de 1996, circulando pelos corredores da Rádio Cultura após a gravação de meu programa diário – presente em sua programação ainda hoje –, encontrei Nelson Kunze, editor da recém-lançada revista Concerto, bíblia da música erudita no país. Cumprimentei-o com entusiasmo pela excelente qualidade editorial da revista, riqueza de informações, seriedade e elevado nível cultural das matérias. Na despedida, num toque de humor ao nosso bate-papo, disparei: e, se quiser acrescentar um pouco de sal e pimenta nessa salada editorial, conte comigo… Poucos dias depois, recebi um telefonema de Kunze me convidando para escrever uma crônica mensal para a Concerto. Me senti honrado com o convite e feliz de ver como tudo se desenvolveu, sobretudo na escolha dos temas a serem abordados. Trocávamos ideias todos os meses a propósito de assuntos os mais variados e provocadores de interesse dessa mágica criação humana, a música, e, tanto minhas propostas como meus textos, desde o primeiro artigo de junho de 1996, foram tratados pela direção da revista com o maior respeito – mesmo quando tivemos divergência em algum ponto.

    Nesses 25 anos de colaboração com quase 300 artigos, pudemos penetrar praticamente em todas as áreas da criação, interpretação e produção musical. Aliás, a propósito de produção musical em nosso tempo, é bom que se diga que a coisa não está para brincadeira. Apenas o montante financeiro que movimenta a produção e comercialização do petróleo é que suplanta a musical. Por isso procurei sempre, antes de chegar ao tema escolhido para análise, traçar um panorama do contexto no qual ele está inserido. Muitas vezes abordei os assuntos por um viés não convencional, a meu ver importante, nem sempre assim considerado pelo público ou teóricos em geral. Nessa diversidade de escolha de assuntos íamos de uma análise quase institucional de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, a depoimentos polêmicos de um Stockhausen; de fatos históricos memoráveis ao comportamento irreverente e momentâneo de um roqueiro como Frank Zappa; de motivos que tinham a ver com a evolução técnica e lógica da música às características às vezes volúveis do ser humano que a criou; de elogios a acontecimentos marcantes e indiscutíveis a críticas radicais e polêmicas; de biografias de grandes e reconhecidos gênios às daqueles injustamente esquecidos pela história; de assuntos especificamente mecânicos do seu artesanato composicional a suas ligações com outras artes ou fenômenos vários; de seu cultivo quase religioso em teatros nobres a sua relação com as mídias modernas; de assuntos que levaram Mário de Andrade a chamar a música clássica de erudita a outros oriundos do universo da mais ingênua música popular; de temas abordados às vezes com profundidade, radicalismo de approach, responsabilidade de opinião a outros tratados com leveza e bom humor. Tudo foi possível desde que tenha tido importância cultural geral.

    Outro dado curioso ocorrido neste garimpo nos labirintos da história da música através de meus textos foi a participação dos leitores. Os inúmeros e-mails que recebi pessoalmente ou por cartas enviadas à revista – alguns elogiosos e outros críticos – me incentivaram a continuar penetrando com mais afinco nos mistérios da movimentação dessa arte, aquela que – sem dúvida – mais se identifica com os sentimentos humanos.

    Na coleção dos artigos aqui selecionados, respeitamos o formato original de suas apresentações na revista. Mas, em alguns casos, foram feitas alterações por motivos meramente redacionais considerando-se a costura geral da natureza desta publicação.

    Júlio Medaglia

    Nem só de vitamina C vive o homem

    Por ocasião da regência de um concerto em Araraquara no interior de São Paulo, fui convidado por um de seus organizadores para um churrasco numa fazenda. Da casa principal avistavam-se inúmeras montanhas com plantações de laranja. Um dos políticos da região presentes ao almoço, transbordante de orgulho, dizia-me: Para colocar o suco desses laranjais nos mercados do mundo, esta cidade possui um porto particular em Nova York, outro em Amsterdã e um terceiro em Tóquio!. Não era difícil acreditar no conteúdo daquelas entusiásticas palavras quando se conhecia a cidade que, pela qualidade de vida aparente, poderia perfeitamente situar-se no interior de qualquer país do primeiro mundo.

    Momentos depois daquele encontro, retornava eu ao luxuoso hotel e lia, num jornal local, que, à noite, ocorreria a última seção de cinema do último cinema existente na cidade. Não. Não era o famoso filme de Bogdanovich e sim a pura realidade numa rica cidade do interior de São Paulo. Em conversas com amigos fui informado, para surpresa minha ainda maior, que a cidade estava desprovida não apenas de um único cinema, mas também de um conservatório, uma orquestra, um bom coral, uma banda de música, um teatro, já que o existente, e onde ocorrera o concerto, mais parecia um centro de convenções, e assim por diante. Em outras palavras, paisagem repleta de clubes luxuosos, edifícios modernos e carrões importados correspondia à mais pobre vida cultural – mesmo tendo nascido lá figuras lendárias como José Celso Martinez Corrêa, Ignácio de Loyola Brandão e Ruth Cardoso.

    Quando fui diretor do Festival de Campos do Jordão, resolvi espalhar suas apresentações por todo o estado. Em visita às mais diversas regiões, me dei conta de que a situação cultural lamentável em meio à opulência era comum a quase todas elas.

    Como num passe de mágica, porém, e para agradável surpresa geral, vivenciamos recentemente em Ribeirão Preto a reinauguração de um suntuoso templo cultural, depois de ter sido transformado em cervejaria, estacionamento, cinema e até mesmo um amontoado de escombros em consequência de um incêndio: o Teatro Pedro II, construção riquíssima do início do século XX, que volta aos seus dias de esplendor. Tendo tido a oportunidade de reger Carmina Burana na solenidade de encerramento das festividades de sua reinauguração, pude conviver com a magia daquela casa e a excelente qualidade da restauração. Alegro-me pelos artistas que passarão pela cidade que, de agora em diante, não mais se apresentarão em auditórios ou palcos improvisados. A alta qualidade e o sucesso dessa série de apresentações demonstraram também como a comunidade está ávida de informação cultural de alto repertório.

    Que o exemplo se espalhe pelo interior do rico estado de São Paulo e que se crie um vasto mercado artístico que coloque nosso país, também nessa área, nos padrões do primeiro mundo. Não vai custar muito para se perceber que os maviosos acordes da Filarmônica de Berlim nos fazem tão bem quanto a doçura do suco das laranjas de Araraquara…

    P.S.: A propósito do concerto de reinauguração do Teatro D. Pedro II de Ribeirão Preto, lembro-me de que a apresentação foi um sucesso de público. A praça em frente ao teatro estava abarrotada naquela noite e pessoas insistiam em assistir à apresentação. O prefeito subiu na capota de um automóvel e perguntou: Vocês querem assistir Carmina Burana? Um grito coletivo, em uníssono, respondeu: SIM! Falei com os músicos, que se propuseram a repetir a obra para um público que invadiu as dependências do Pedro II. Ou seja. A demanda cultural é imensa. É só saciá-la… Com sucos de laranja de Araraquara, boa cerveja de Ribeirão Preto e a música dos grandes mestres.

    Uma sinfônica para a Amazônia

    Semelhante ao que ocorreu em Minas no período do chamado gold rush, onde a população frequentava igrejas barrocas, rezava diante de imagens sagradas – cujo refinamento artístico em nada ficava a dever ao dos mais qualificados escultores europeus da época – e ouvia música vivaldiana composta por mulatos brasileiros, o ciclo da borracha conseguiu, em muito pouco tempo, transformar Manaus numa capital da cultura ocidental, num sofisticado centro urbano encrustado na selva. Lá, no final do século XIX, a moeda corrente era a libra esterlina, o francês a língua mais comumente ouvida, jornais em diversos idiomas eram do mais fácil acesso e os bens de consumo chegavam diretamente da Europa em embarcações que sequer tocavam outros portos brasileiros. Para se ter uma ideia do requinte social do pedaço, basta dizer que a alta roda não só adquiria seu luxuoso guarda-roupa nas principais metrópoles do Velho Mundo, como o enviava a Lisboa para lavar e engomar.

    É fácil, portanto, compreender que uma sociedade com essa sofisticada opulência deveria ter hábitos igualmente exigentes no que se refere ao entretenimento e consumo de bens culturais. De fato, em reduzidos palcos ou barracões semiaparelhados apresentavam-se companhias de teatro, ópera, opereta e vaudeville. Mas, a partir do ano de 1892, os navios que saíam para o mundo levando a preciosa Hevea brasiliensis, ao voltar traziam em seus porões telhas vidradas e coloridas da Alsácia, ferragens para camarotes, frisas, balcões e móveis estilo Luís XV de Paris, mármores, lustres, espelhos de cristal, vasos de porcelana e candelabros da Itália, vigamentos de aço para paredes vindas de Glasgow e assim por diante. Em muito pouco tempo estava plantada na jungle tropical uma joia da belle époque: o Teatro Amazonas. E, para que a arquitetura e a delicadeza dos sons que ali seriam ouvidos não fossem agredidas pelo atrito das rodas das carruagens que circundavam aquele templo cultural, foi usado um material da terra: uma fina camada de borracha revestia os paralelepípedos da praça. A partir de dezembro de 1896, com a exibição da ópera La Gioconda de Ponchielli por uma companhia italiana, o teatro estava aberto ao público, e logo se transformou num dos mais importantes polos culturais do mundo. Companhias teatrais e operísticas da melhor qualidade se instalavam na cidade e chegavam a ficar meses apresentando obras de seus repertórios.

    Depois de 1910 o delírio daquele Eldorado que parecia eterno entrou em rápida decadência com o término do ciclo brasileiro da borracha. Durante os 80 anos que se seguiram aquela joia ficou abandonada e entrou em rápida decomposição, inclusive pela agressividade do clima. Suas dependências chegaram a abrigar uma quadra de futebol de salão, durante a guerra uma empresa americana obteve autorização para lá depositar material bélico e muitos de seus tesouros foram saqueados.

    No início da década de 90 aquele estado elegeu Amazonino Mendes, que, além de manter intensa vida pública (ex-líder estudantil, senador mais votado, duas vezes prefeito de Manaus), é também (coisa rara em nosso país) um feroz devorador de bens culturais. Entre outras coisas, um apaixonado por livros, cinema, música clássica e ópera em particular. Após contratar uma equipe de restauradores da melhor qualidade internacional, Amazonino recuperou o teatro nos padrões técnicos das mais exigentes casas de espetáculo do mundo.

    Reeleito para um segundo período de governo, resolveu dotar aquela joia de sonoridade própria, ou seja, criar uma orquestra sinfônica de nível internacional. Para dar cabo dessa tarefa, tive o privilégio de ser convidado. Como os melhores instrumentistas brasileiros já estavam contratados pelas melhores orquestras do país, aproveitei uma viagem artística minha pela Europa Oriental e lancei um convite para músicos que se dispusessem a vir trabalhar em nosso país. Juntamente com o professor Sérgio Cascapera da USP e Clemente Capella, spalla do Teatro Municipal de São Paulo, viajamos depois à Rússia, Bielorússia, Bulgária e República Tcheca para efetuar a seleção de músicos. Em três meses estava pronta a Amazonas Filarmônica, para a qual Hans Donner criou um lindo logotipo. Seis meses depois ela apresentou-se no sul do país colecionando os melhores prêmios e elogios, alguns dos quais a apontavam como a melhor sinfônica do país.

    O sonho de Fitzcarraldo tornava-se realidade de uma hora para outra.

    Mão no bolso pela cultura

    Há tempos visitei as instalações de uma grande empresa nos Estados Unidos. Depois de conhecer as áreas industriais, fui levado ao setor que cuidava de suas relações com a comunidade. Fiquei vivamente impressionado com a enorme quantidade de projetos culturais, educativos e esportivos que beneficiavam os habitantes da região. O que mais me chamou a atenção, porém, foi a existência de uma sinfônica semiprofissional de altíssimo nível. Soube depois que aquela qualidade fora do comum ocorria inclusive pelo fato de a fábrica se situar próxima a Chicago e Cleveland. Quando músicos das superorquestras dessas cidades se aposentavam, muitos deles prestavam serviço àquela orquestra privada. Vendo a qualidade musical do conjunto, exclamei: vocês precisam mandar essa orquestra para o Brasil!. Meu interlocutor, que era um dos herdeiros da multinacional, respondeu à queima-roupa: nossa filial brasileira que crie sua orquestra por lá. Esta aqui nós criamos para nossa comunidade….

    O invejável espírito comunitário que existe naquele país, provavelmente consequência de sua própria evolução social, típico de uma nação que nasceu de-baixo-para-cima – diferente de nosso patropi, que foi inventado por um colonizador, razão pela qual o brasileiro acha que o governo tem que resolver tudo –, é responsável pela maior parte da movimentação cultural lá existente. Só na área da música, as empresas prestigiam o funcionamento de aproximadamente 2 mil orquestras profissionais e mais ele 50 mil semiprofissionais e amadoras.

    É evidente que, num país-símbolo universal do capitalismo como aquele, onde tudo se mede e tudo é visto pela ótica do lucro, se as empresas investem pesadamente em música, isso não ocorre, certamente, em consequência da beleza das melodias mozartianas…

    Num momento em que as grandes firmas investem cada vez mais no prestígio da marca, mais do que na louvação das virtudes do produto, prestigiar um produto cultural nobre deve trazer mais benefícios que um anúncio na TV baseado no compre-que-é-bom. Esse marketing cultural tão presente na sociedade americana ainda não criou vulto em nosso país. Quando o empresário nacional investe num projeto cultural, ele tem a impressão que está fazendo um favor ao artista.

    Há tempos estivemos, o maestro Benito Juarez, o pianista Ney Salgado e eu, com o presidente da República e propusemos a ele que trouxesse para a música de concerto e instrumental em geral os benefícios da chamada Lei do Audiovisual. Foi o presidente quem sugeriu que, em vez de se criar uma nova lei de incentivo, que duraria anos de discussão, deveriam ser trazidos para a Lei Rouanet, em forma de medida provisória, os benefícios da Lei do Audiovisual. Essa medida foi enviada ao Congresso e, em caso de não rejeição, ela faria parte automaticamente do bojo da Lei Rouanet. Segundo essa nova decisão, 100% do valor investido num projeto passa a ser descontado do imposto de renda da empresa. E isto até 4% do devido.

    Aconteceram alguns protestos, pois, segundo os inimigos da ideia, quem financia um projeto, agora, não é mais o empresário e sim o contribuinte – embora caiba ao investidor o benefício do sucesso do produto cultural. De minha parte, porém, acredito na vantagem efetiva dessa medida, pois ela vai ensinar o empresário brasileiro a pôr a mão no bolso por cultura – mesmo que os gastos que vão sair de um bolso acabem entrando pelo outro em consequência dos benefícios fiscais. E não apenas o empresário vai aprender a pôr a mão no bolso por um motivo nobre, mas também, ao fazer um levantamento dos resultados desse investimento", notará que o retorno institucional é absolutamente vantajoso. Quando isso for rotina, nada impedirá que esses benefícios astronomicamente favoráveis venham a ser extintos. Quem sabe, assim, o empresário que subestimou o gosto da população acabe percebendo, também, que a gigantesca movimentação provocada pela imprensa com a vinda da Filarmônica de Berlim ao Brasil traga mais benefícios à imagem e à veiculação de sua produção do que investir na Carla Perez dançando Na boquinha da garrafa.

    Um novo Stravinsky?

    É absolutamente irresistível para este articulista o desejo de tocar no assunto século XX, este que foi o período mais revolucionário da humanidade. Em verdade, numa centena de anos inventaram-se mais coisas do que em todo o restante da história. Se a novela das 8 nos mostra que São Paulo, no fim do século XIX, não possuía sequer energia elétrica e hoje temos acesso a um chip de computador do tamanho de uma aspirina, que tem capacidade de armazenar em sua memória todos os filmes já produzidos, pode-se imaginar em que proporções ocorreram as transformações nesse período.

    E essa velocidade de mudanças teve seu correspondente também na área cultural. Se em épocas anteriores os estilos musicais duravam até séculos, na nossa alguns deles não chegaram a sobreviver a uma década. Seria interessante, portanto, estabelecermos um paralelo entre o que foi o fim do século XIX e o do século XX.

    Segundo minha visão dos fatos, esses dois momentos têm características absolutamente opostas.

    Do ponto de vista cultural, aquela virada de século mostrava-se repleta de sugestões que mostravam um verdadeiro delta de novas ideias e tendências, em meio a uma saudável inquietação intelectual geral. O brilho do momento era tal, que era conhecido como belle époque

    Aquele fin de siècle iniciou-se com Erik Satie, chegou a Debussy e ao impressionismo, desarmando o páthos romântico, seja por retirar do discurso sonoro a catarse e os conteúdos emocionais, subjetivos, seja pela liberação dos timbres, transformando a música quase num caleidoscópio sonoro. Uma outra corrente, que se iniciou de forma virtual no Prelúdio e morte de amor da ópera Tristão e Isolda de Wagner ao sugerir uma tonalidade que nunca chegava, de alguma forma traía toda a lógica narrativa linear da linguagem tonal sedimentada com Bach. Schönberg assimila a ideia, leva ao desmoronamento do sistema tonal e, através do expressionismo, chega a um novo vocabulário e a uma nova gramática composicional, o atonalismo – que redundou no dodecafonismo. As pesquisas realizadas por Bartók, Stravinsky e outros nos diversos folclores permitiram a ruptura da quadratura rítmica simétrica, típica das culturas ocidentais. Nos Estados Unidos na virada do século XIX para o XX havia ainda um visionário que conseguiu, de forma anárquica e absolutamente genial, prever todas as revoluções que iriam ocorrer na música ocidental dos 1900: Charles Ives.

    O dado estranho do século XX, porém, foi o fato de que os estilos e tendências sobreviveram apenas até as décadas de 60/70. No período entreguerras, conhecemos ainda um momento neoclássico; no pós­-guerra, com a recuperação do dodecafonismo, provocou-se uma reação inversa que redundou na explosão do aleatório e do happening. Estes arrasaram todos os organismos, implantando-se assim uma tendência desagregadora que veio a coincidir, na área da cultura popular, com o final da rock-age criativa (Jimmy Hendrix) e no Brasil com o Tropicalismo, igualmente anárquicos e não indicadores de caminhos.

    Do final do século XX em diante os autores passaram a trabalhar isoladamente, não constituindo linguagens ou estilos unificadores. Se hoje em dia o ser humano tem as maiores facilidades para assimilar ideias e desenvolver projetos, é curioso notar que a avalanche tecnológica não o ajudou a experimentar novos caminhos ou a conhecer a cultura de outros povos. Muito ao contrário, este início de século se mostra sem perspectivas, sem inquietações estéticas, bem diferente da passagem do século XIX para o seguinte.

    Ao contrário do que ocorreu no final do século XIX, a grande excitação momentânea se dá com relação à tecnologia. Se o ser humano de hoje pudesse, compraria um fliperama por dia, trocava um computador por semana ou frequentava uma nova feira de utilidades domésticas por mês. Do ponto de vista cultural, o momento é letárgico. Só nos resta pedir para que os deuses do Olimpo nos enviem, o mais breve possível, um novo Stravinsky…

    Século XXI. E agora?

    Inventado por Portugal, o Brasil iria assimilar, em seu desenvolvimento, os valores culturais europeus, semelhantemente ao que ocorreu na América do Norte com os Estados Unidos. Se índio não tinha alma", como dizia o colonizador, imagine­-se a cultura a ser considerada. Apesar da implantação dos códigos culturais europeus em nossos centros urbanos, as forças da expressão espontânea – aquela música que nasce desordenada nos mais longínquos rincões deste país-continente – acabariam emergindo, ganhando status cultural e servindo de matéria-prima para a sofisticação das salas de concertos. Mas custou. Se ainda na virada do século XIX para o XX colocar um violão num palco nobre era considerado uma heresia, que dirá compor uma sinfonia misturando Stradivarius com berimbaus ou oboés com roncadores.

    Mas, como este é o país da miscigenação por excelência, em pouco tempo os componentes das tradições europeias e os de nossa cultura espontânea interagiram e motivaram um novo e rico arsenal de ideias musicais. Se os geniais crioulos do nosso barroco, por exemplo, produziam refinadas obras, equiparadas – em sua qualidade técnica e artística – às dos grandes mestres europeus, isso não significava que, após os compromissos profissionais, eles não se encontrassem com seus parceiros de etnia em algum barraco para um bom batuque… Este é o motivo, também, que explica o fato de as tradições afro nunca terem sido destruídas em nosso país, ao contrário do que ocorreu na América do Norte.

    Nos primeiros 500 anos de história, nossa música de concerto conheceu vários caminhos. Inicialmente, reproduzimos aqui a linguagem dos mestres europeus. No século XX criamos coragem e fomos dialogar com nossa expressão popular e conseguimos transportar a fonética tupiniquim para o elaborado universo da música clássica. E não resta a menor dúvida de que desse nacionalismo musical resultaram verdadeiras obras-primas.

    Mas, aí pelo segundo pós-guerra, com a recuperação dos atonalismos na Europa e nos Estados Unidos, eles se tornaram sinônimos de vanguarda. Escrever música sincopada virou quase um sinal de provincianismo ou desinformação. Era a globalização cultural se antecipando à tecnológica e financeira. Nesse momento, não havia um único músico em nosso país que não fosse ter umas aulas com Koellreutter, representante máximo dessas tendências no Brasil.

    Os anos 60, anárquicos por natureza, questionaram valores, demoliram estruturas organizadas e acabaram com os estilos, não havendo mais parâmetros balizadores – aliás, em todos os países. Aí, os nacionalismos se mesclaram com as linguagens modernas e com os novos meios de produção sonora. Criar música, a partir de então, passou a ser um ato subjetivo – da matéria-prima aos recursos composicionais usados, à forma.

    O drama do autor musical brasileiro neste milênio resume-se, a meu ver, não mais na questão estilística, mas sim na sua postura (e coragem!) diante dos novos conceitos de informação cultural, nesse universo tão ágil de comunicação massacrado pela indústria cultural. Ficar enclausurado, desenvolvendo ideias à maneira de um compositor romântico à espera de ser compreendido, ou então ficar trancafiado num laboratório, com postura acadêmica como um pesquisador universitário, não levará a mais nada.

    A poluição sonora universal é grande e forte e não é possível ficar envolto em abstrações oníricas enquanto, a partir do momento em que a criança tem discernimento para ligar um botão de rádio ou TV, ela passa a ser violentada por tratores sonoros que, hoje, nada mais fazem que dessensibilizar o comum dos mortais.

    Quem quiser produzir caviar sonoro com algum sentido, terá que saber criá-lo em meio ao turbilhão e, sobretudo, saber vendê-lo.

    O público e o privado em música

    Mais uma vez, gostaria de utilizar este espaço que me é reservado na revista Concerto para levantar o debate sobre a questão da administração cultural, sobretudo musical. Quanto mais o tempo passa, ao invés de vermos o assunto esgotado e esclarecido, mais ele se encontra envolvido em polêmicas e equívocos.

    Quem administra a atividade musical, quem produz cultura e o público em geral preferem o esquema privado. Já o operário da música vê nessa solução um fator de instabilidade. Conversando recentemente com um candidato da ala esquerda à prefeitura de São Paulo, notei que em seu partido havia, também, forte resistência à ideia, por exemplo, da chamada privatização do Teatro Municipal, mesmo porque trafega na Câmara dos vereadores um projeto de transformá-lo em uma fundação de direito privado. Só esse fato tem levado inúmeros músicos do teatro a solicitarem às pressas suas aposentadorias. Todos nós sabemos que, em nenhum país do mundo, a atividade da chamada música erudita sobrevive apenas da bilheteria, por mais caros que sejam os ingressos e lotadas suas plateias. Ainda há pouco, conversando com elementos da Sinfônica de Chicago, tive a oportunidade de saber que suas apresentações possuem um índice de audiência de 98% (ingressos pagos), a preços nada baratos, e, no entanto, no programa dos concertos identifica-se uma legião de patrocinadores e apoiadores que permitem a existência daquela afiada máquina cultural. Estamos cansados de saber que, nos Estados Unidos, pela força do espírito comunitário que lhe é comum, o empresário e o público se cotizam com facilidade para viabilizar organismos de prestação de serviços à coletividade. Lá existem, para se ter uma ideia, mais de 2 mil sinfônicas financiadas pela iniciativa privada. No Brasil, um país inventado de cima para baixo, o habitante tem a sensação de que qualquer assunto de interesse coletivo deve ser administrado pelo poder público. Como o empresário brasileiro ainda não se habituou a colocar a mão no bolso pela cultura, pois ignora o poder do retorno institucional do ato, a maior parte de nossas casas de espetáculos, os técnicos que as administram e os artistas que nela atuam vão continuar sendo financiados, por algum tempo ainda, por verbas públicas. Daí a

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