Anacrônicas e quase inventadas
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Anacrônicas e quase inventadas - Anderson Novello
Sobre rapaduras e meteoros
GANHEI UMA RAPADURA. VINDA LÁ DAS MINAS Gerais. Pequeno mimo de uma amiga que, estando em terras mineiras, lembrou-se de mim. Só esqueceu que eu não gosto de rapadura.
Não tendo conhecimento de nenhum admirador de rapadura por perto, comecei a pensar sobre o destino que daria ao suvenir... e ocorreu-me publicar nas redes sociais a foto da dita-cuja, explicando o caso e oferecendo a rapadura a algum possível interessado. Pensamento que foi logo interrompido pelo medo da polêmica que essa ação, aparentemente inocente, poderia desencadear.
Da galera fitness, eu receberia manifestações de preocupação com minha saúde, acrescidas de comentários do tipo: Depois reclama da pança. Cuidado!
Por outro lado, alguns constatariam que tem tanta gente passando fome no mundo e você desprezando uma rapadura...
e mencionariam o trabalho escravo na China.
Alguns, mais espiritualizados, me alertariam de que fazer caridade e depois publicar nas redes sociais é só para quem quer se exibir, chamar a atenção e pagar de santinho. E eu aprenderia que a caridade deve ser feita em silêncio.
Outros me chamariam de fresco, citando o Levítico e dizendo que Deus criou o homem e a mulher – e não o homem e a rapadura. Mais um pecado para minha coleção.
Outros gritariam que preferem coxinha
e receberiam respostas afiadas daqueles que preferem mortadela
– e o caos se instalaria nos comentários de minha postagem. Eu ficaria tenso tentando mediar os conflitos e explicando didaticamente que não, ninguém precisa comer a rapadura. Nem brigar.
Haveria ainda aqueles que, envergonhados de admitir publicamente suas fantasias, me chamariam no inbox e confidenciariam seus relatos mais secretos e exóticos, envolvendo a participação especial da iguaria.
Haveria, também, um ou outro comentário avulso me xingando de pobre e questionando meu paladar. Ou me mandando ir carpir um quintal, já que postar a foto de uma rapadura é total falta do que fazer (embora comentar a postagem não o seja).
Não vamos esquecer, também, aquele parente distante que, ignorando o conteúdo da postagem, comentaria: Ligue para sua tia quando puder
.
Aleatoriamente, alguns comentários surgiriam tentando convencer a todos que a culpa por toda a situação é, na verdade, da chuva, da prefeitura, do governo, dos baixos salários, da péssima distribuição de renda, do desemprego. Respondendo a esses, alguns iniciariam uma discussão sobre a legitimidade – ou não – do atual governo. E concluiriam, heroicos: só vai resolver com um meteoro!
Essa vida virtual é doce, mas não é mole.
Das dificuldades de tomar um café
– EU VOU QUERER UM CAFÉ MÉDIO COM LEITE. Para viagem.
– Seu café será um mocha, cappuccino italiano, macchiato ou com chantilly?
– Café mesmo. Desses em que a gente usa coador e água.
– O.k.! Um simples. Coado ou expresso?
– Simples.
– Descafeinado?
– Não. Com cafeína. Muita. Ou eu iria preferir um chocolate quente.
– O senhor vai preferir um chocolate quente, senhor?
– Não. Um café simples.
– O.k., senhor. Com leite?
– Isso.
– Integral, semidesnatado, desnatado, sem lactose, baixa lactose, leite de arroz, leite de coco, leite de cabra?
– De vaca. Dessas que fazem muuuu
e balançam o rabo.
– O.k.! Leite integral de vacas holandesas. Prefere o leite das vacas criadas em regime de confinamento e ordenhadas mecanicamente, ou das vacas criadas livres no campo, em fazendas de pequenos produtores, que passam o dia ouvindo Beethoven?
– As confinadas passam o dia ouvindo o quê?
– Funk.
– Tanto faz, pode ser de qualquer uma.
– Ambas comem ração transgênica, tudo bem para o senhor?
–