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Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo
Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo
Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo
E-book338 páginas8 horas

Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo

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Sobre este e-book

O Rio Tietê e o Rio Pinheiros circundavam a cidade de São Paulo em movimentos lentos, por longos e sinuosos leitos repletos de meandros; formas que traduziam o longo processo de natureza geo-física de formação das planícies aluviais, identificadas também por várzeas. Sobre elas estes rios faziam e refaziam seus leitos deixando, entre uma e outra cheia, meandros abandonados formando lagoas em semi-círculos.
Na modernidade estes rios se tornaram objeto de conhecimentos científicos; foram descobertas as leis que regulam os fluxos para submetê-los por inteiro à intervenção, como atestam os estudos sobre as formas de apropriação dos rios e das várzeas do Tietê e Pinheiros em São Paulo.
A retificação do curso desses rios, a partir de certo momento, parece ter sido uma necessidade histórica em face da centralidade de São Paulo no processo geral de transformações que apareciam na materialidade propriamente urbana da cidade, desde o final do Século XIX. Foi também a demanda por saneamento das várzeas (nas proximidades da cidade), em face das epidemias que atingiam a cidade de São Paulo, principalmente os bairros pobres, que o sanitarismo, como parte do programa higienista, exigia a drenagem de pântanos.
Para transformar o potencial hidráulico da Bacia do Tietê ( que inclui o seu afluente Pinheiros) em força produtiva da sociedade foi necessário efetuar a montagem do sistema hidrelétrico de São Paulo. Processo de caráter desbravador, pois se tratou de adentrar pelo território, transpor riachos e córregos, abrir clareiras nas matas, através das explorações do terreno.
O complexo hidrelétrico, formado pelos canais de escoamento, barragens, usinas geradoras, estações rebaixadoras e linhas de transmissão, foi a forma como a natureza em estado natural, passou a constituir-se em uma força produtiva para a sociedade, integrando por seus efeitos múltiplos processos em curso. Tal metamorfose deu lugar a uma segunda natureza, agora, identificada como natureza social, constituindo uma problemática própria, genericamente inserida nas questões identificadas por sustentabilidade ambiental.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de ago. de 2021
ISBN9786559660544
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    Os meandros dos rios nos meandros do poder - Odette Carvalho de Lima Seabra

    folhaderosto

    Conselho Editorial

    Ana Paula Torres Megiani

    Andréa Sirihal Werkema

    Eunice Ostrensky

    Haroldo Ceravolo Sereza

    Joana Monteleone

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Ruy Braga

    Alameda Casa Editorial

    Rua Treze de Maio, 353 – Bela Vista

    CEP 01327-000 – São Paulo – SP

    Tel. (11) 3012-2403

    www.alamedaeditorial.com.br

    Copyright © 2021 Odette Carvalho de Lima Seabra

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de

    1990

    , que entrou em vigor no Brasil em

    2009

    .

    Edição: Joana Monteleone/Haroldo Ceravolo Sereza

    Editora assistente: Danielly de Jesus Teles

    Assistente acadêmica: Tamara Santos

    Projeto gráfico e diagramação: Gabriel Patez Silva

    Capa: Map of the first Serra Consession based upon original studies by F. S. Hyde in 1924 e Map of the second Serra Concession as constructed 1928-1944. Arquivos da The São Paulo Light and Power Co. Ltd., sob guarda da Fundação Saneamento e Energia do Estado de São Paulo

    OBRA PRODUZIDA COM O APOIO DO CNPq.

    CIP-BRA­SIL. CA­TA­LO­GA­ÇÃO-NA-FON­TE

    SIN­DI­CA­TO NA­CI­O­NAL DOS EDI­TO­RES DE LI­VROS, RJ

    ___________________________________________________________________________

    S444M

    Seabra, Odette Carvalho de Lima

    Os meandros dos rios nos meandros do poder: Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo [recurso eletrônico] :  Odette Carvalho de Lima Seabra. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2021.

    recurso digital 

    For­ma­to: ebo­ok

    Re­qui­si­tos dos sis­te­ma:

    Modo de aces­so: world wide web

    In­clui bi­bli­o­gra­fia e ín­di­ce

    ISBN 978-65-5966-054-4 (re­cur­so ele­trô­ni­co)

              1. Tietê, Rio (São Paulo, SP) - História. 2. Pinheiros, Rio (São Paulo, SP) - História. 3. São Paulo (Estado) - História. 4. Recursos naturais. 5. Rios. I. Livros eletrônicos.

    1520510 CDD: 900

    CDU: 94(815.6) 

    ____________________________________________________________________________

    Sumário

    Prefácio

    Apresentação à guisa de Introdução

    Capítulo 1 - Os Rios e as Várzeas como Força Produtiva da Sociedade

    Capítulo 2 - A Cidade, os Rios e as Várzeas

    Capítulo 3 - Os Rios, as Várzeas e a Cidade

    Capítulo 4 - A Retificação do Rio Tietê

    Capítulo 5 - A Retificação do Rio Pinheiros e o Esbulho da Light

    Capítulo 6 - A Socialização Contraditória dos Rios e das Várzeas

    Fontes e Documentos Consultados

    Prefácio: Urbanização na reprodução ampliada do capital

    Os meandros dos rios nos meandros do poder, de Odette Seabra, é na origem uma tese de Doutorado defendida em 1987, no Programa de Geografia Humana da Universidade de São Paulo. Sua extemporânea publicação, em mais de 25 anos, felizmente colocará à disposição de mais amplo público um trabalho que, por tamanho interesse despertado desde sua defesa, era preciso contar com certa dose de sorte para encontrá-lo nas estantes da biblioteca da FFLCH/USP. Digo por experiência própria: fui testemunha da dificuldade de ter acesso à tese enquanto realizava meu Doutorado sobre a Light na cidade de São Paulo. Depois de meses de espera, mas enfim com a tese em mãos, foi possível observar como as estratégias de acumulação da empresa canadense estavam muito além de sua atuação no mercado elétrico paulista: sua trajetória durante décadas foi permeada por artifícios não econômicos, percorrendo os meandros do poder para garantir a reprodução de seu capital.

    Nesse sentido, o tema da pesquisa analisado por Odette Seabra é da maior importância para compreender o processo de urbanização da cidade de São Paulo e de como, ao longo do século XX, a cidade decidiu se relacionar com os recursos naturais que foram apropriados pelo espaço urbano. Ao compreender como as intervenções nos rios Tietê e Pinheiros esconderam conflituosas e contraditórias relações sociais de nossa cidade; ao demonstrar como o poder de uma única empresa, a canadense Light & Power, foi decisivo na definição da estrutura urbana do município; e, ao escancarar como se deu a apropriação dos espaços públicos como privados, a pesquisa de Odette esclarece como a construção do mundo urbano é um território de conquista e de valorização do capital.

    O ponto de partida do livro é o reconhecimento de que os rios e suas várzeas, na origem, são espaços naturais com diversas possibilidades de assimilações econômicas e simbólicas pelo homem. Nos rios Pinheiros e Tietê, até o início do século XX, as relações dominantes estabelecidas nas várzeas eram ainda pré-capitalistas e comunitárias: das várzeas dos caipiras, do futebol, da pesca e, quanto muito, das olarias que se valiam da expansão da cidade iniciada nas últimas décadas do oitocentos.

    A cidade de São Paulo cresceu e sua ocupação transbordou aos limites dos rios. Nas primeiras décadas do século XX, a modernização social impôs a direção da transformação do espaço público. O centro da cidade se valorizava e, com isso, expulsava a população dos cortiços. A cidade recebia transporte e iluminação, redefinindo a estrutura e o perfil de cada bairro. E os rios? Também sofriam com a modernização social, por meio do processo de transformação tecnológica, das canalizações e drenagens, transformando o espaço comunitário da várzea em propriedade privada. O discurso empreendido pelos órgãos públicos era o do saneamento da cidade, o da racionalização dos projetos urbanísticos, todavia, sua manifestação era, acima de tudo, o da especulação imobiliária mediante a privatização dos espaços públicos.

    O território da cidade de São Paulo, nesse contexto, foi reconstruído na primeira metade do século XX como resultado das intervenções da Light. Ao conceber seu sistema hidrelétrico, a companhia recebeu plenos poderes do poder público para transformar a estrutura urbana de São Paulo: tinha a empresa o direito de desapropriar áreas com fins de utilidade ou necessidade pública; a autorização para construir grandes reservatórios, como as represas Guarapiranga e Billings; a chancela da municipalidade para promover a reversão do Rio Pinheiros, captando as águas do rio Tietê que abasteceriam a Usina de Cubatão; e, como se não bastasse, a permissão para elevar as barragens de sua represa da Usina de Parnaíba, a jusante, represando as águas que gerariam as enchentes na capital paulista.

    Se valendo de um discurso técnico, a Light era praticamente um Estado dentro do Estado. A redefinição dos espaços da região do Rio Pinheiros, por exemplo, autorizada pela Lei nº 2249 de 1927, determinava a canalização, o alargamento, a retificação e o aprofundamento do rio, além da desapropriação como utilidade pública da área que atenderia a construção dos reservatórios. Todavia, utilizando o conceito de desapropriação por necessidade pública, a Light foi autorizada a expropriar os proprietários das zonas sujeitas às inundações. Estas eram as áreas consideradas pela empresa canadense como beneficiadas pelas obras de saneamento e retificação do rio, e, por isso, deviam o pagamento pela contribuição de melhoria, isto é, indenizações que praticamente inviabilizavam a permanência dos proprietários originais.

    A desapropriação, devidamente embasada pela lei e pelo direito, revelava a assimetria das relações sociais daquela sociedade. Numa canetada, o que era propriedade pública, de proprietários privados individuais, tornou-se propriedade da empresa canadense Light. Seguindo critérios supostamente técnicos, mas definidos pelas réguas da própria companhia, fundamentada na chamada área máxima da enchente – área atingida pela maior enchente ocorrida na cidade, de 1929 –, a Light estabeleceu o seu novo território, em que a ampliação da fronteira promoveria significativo processo de desapropriação nas margens do rio Pinheiros. Com a chamada zona de enchente, a Light tornou-se proprietária de 21 milhões de metros quadrados, uma região que representa atualmente um terço da cidade de Osasco.

    As desapropriações afetariam os mais diversos e conhecidos personagens da cidade. Isso valia para grandes empresas de urbanização estabelecidas na região das várzeas do Pinheiros, como a inglesa Cia. City, estabelecida no atual Alto de Pinheiros, e a empresa responsável pela instalação do Jockey Clube de São Paulo na região, a Cia. Cidade Jardim. Isso valia também para proprietários de outras grandes áreas na região, fosse como o Esporte Clube Germânia (hoje Clube Pinheiros), fosse como o grande proprietário particular Eusébio de Queiroz Mattoso. Não escapavam desse processo as propriedades de instituições públicas, como áreas pertencentes à Prefeitura de São Paulo, como também o Instituto Butantã, dona da extensa fazenda que englobava, inclusive, o que é hoje a USP.

    As desapropriações também encontraram, no entanto, uma inúmera quantidade de terrenos de pequenos proprietários. Esses eram os personagens anônimos, estabelecidos, de um lado da cidade, nas imediações da Vila Leopoldina, e de outro, nos atuais bairros do Itaim Bibi, Vila Olímpia, Vila Funchal e Santo Amaro. Eram pequenos proprietários de sítios, os tradicionais moradores ribeirinhos das várzeas e, inclusive, os habitantes que avançavam pelas bordas da área urbana da cidade. Em comum, todos esses personagens, tinham a limitada capacidade de se contrapor ao poder do polvo canadense. E, por isso, como anônimos foram tratados: com as desapropriações em bloco, os pequenos proprietários passaram por um acelerado o processo de transferência de seu patrimônio para a Light.

    A violenta onda de desapropriações empreendida pela Light materializa como os negócios da empresa canadense foram muito além da reprodução de seu capital: estava em jogo, fundamentalmente, uma acumulação primitiva de capital em pleno século XX. Tal processo de conquista territorial empreendido pela Light, sustentado legalmente pela prefeitura da cidade, nos remete os mais cruéis capítulos dos cercamentos ingleses. Naquela oportunidade, numa Inglaterra entre a revolução burguesa e a revolução industrial, a expropriação era justificativa de superar o passado feudal e permitir o melhoramento agrícola mediante a introdução da propriedade privada; no Brasil de primeiras décadas do século XX, por outro lado, a expropriação era parte da assimilação do desenvolvimento capitalista, numa universalização do ideário civilizador moderno.

    A cidade de São Paulo foi palco, portanto, daquilo que Odette Seabra chamou de um processo de atualizações tecnológicas, por meio da liderança da Light nos empreendimentos urbanos, empresa que personificava a modernidade e o progresso material. Essa transformação da natureza é o que David Harvey chamou de destruição criativa, da formação de uma natureza remodelada pela ação humana, especialmente intensa com a propagação do capitalismo. A destruição criativa ao ser comandada pelos interesses da Light, na busca incessante pela reprodução de seu capital, impôs o que o autor chamou de acumulação por espoliação, que se cristaliza pelas vitórias da empresa canadense em trincheiras extra econômicas. Nada mais emblemático deste processo vivido pelo grupo Light que, em meio à estatização de seu braço atuante na prestação de serviços elétricos, inaugurou seu empreendimento imobiliário por meio do grupo a Brascan (Brasil-Canadá Ltd.) concomitante com o fim da concessão elétrica, atuando hoje, acima de tudo, como Brookfield Incorporações.

    Conforme Odette Seabra apresenta, o processo de transformação dos rios e várzeas em São Paulo deve ser analisado por meio de uma síntese contraditória: tanto da dimensão da separação dos rios como espaço de representação da vida e da sociedade, como da dimensão dos rios como espaço e força produtiva social, fazendo dos rios e das várzeas partes integrantes do progresso material, que é inerente ao processo de modernização social. Em síntese, como afirma Odette, uma dimensão da socialização contraditória do espaço da cidade.

    A trajetória da formação do espaço da cidade de São Paulo ao longo de mais de meio século, portanto, não pode ser dissociada das estratégias e dos projetos liderados pela Light. O livro de Odette Seabra é, nesse sentido, fonte decisiva para a compreensão desse tortuoso percurso pelas várzeas e pelos rios da cidade. A valorização do espaço, como instrumento de reprodução do capital, foi uma das mais evidentes dimensões da urbanização da cidade de São Paulo: como a tese categoricamente demonstra, sua análise econômica é antes um objeto político e social.

    Alexandre Macchione Saes

    São Paulo, 10 de Maio de 2015

    Apresentação à guisa de Introdução

    Este estudo, originalmente uma tese de doutoramento cuja motivação emergiu da necessidade de refletir sobre a rica dimensão histórica e social dos Rios Tietê e Pinheiros, permitiu relacionar os fenômenos objetivos dos rios com o processo de urbanização avassalador no qual estava enredada a cidade de São Paulo e seu entorno suburbano, desde as primeiras décadas do século XX. Quando foi feito, a palavra sustentável, no sentido que hoje a ela se atribui, sequer existia.

    As canalizações do Tietê e do Pinheiros, que são fruto de conhecimentos científicos e de aplicações tecnológicas, eram muitas vezes percebidas como se fossem naturais mesmo entre muitos estudantes. Fato revelador de um complexo processo de naturalização da história, assentado na falta de referências fundamentais que orientem atitudes e posturas diante da vida. Como resposta a essa constatação, foi pesquisada e discutida, em muitos dos seus aspectos, a transformação da natureza natural desses rios e o sentido dos processos instaurados. Com esse sentido, foi precioso recuperar o enfoque da ciência natural e tratar das planícies aluviais (várzeas) enquanto recurso para a sociedade, enquanto fonte de trabalho, de lazer, e como força produtiva social incorporada aos processos urbanos. Mas o ideário do progresso encobria a negatividade da forma de incorporação das várzeas, depois reveladas como lugar trágico de enchentes catastróficas. Afinal, os meandros haviam sido suprimidos, as várzeas edificadas e foram construídas muitas obras nos leitos retificados. Obras que, em muitos casos, transformaram-se em desafio e fardo do tempo histórico, com os quais a sociedade atual tem que conviver, ligados à montagem do sistema hidrelétrico de São Paulo e aos volumosos negócios com terrenos (das várzeas) que a acompanhou.

    Fazer emergir deste estudo o espaço dos rios e várzeas como um conjunto de relações historicamente constituídas, como síntese de complexos interesses e contradições, era a condição para superar a coisificação e o fetiche do espaço como cristalização de formas. Descobrir nas formas inscritas no espaço geográfico um pouco da História de São Paulo era, enfim, a forma de contribuir para alargar a dimensão do mundo no sentido de desalienação das práticas.

    Há pelo menos dois motivos para publicar este estudo concluído ao final dos anos oitenta. O principal motivo é que os rios Tietê e Pinheiros continuam na pauta dos grandes problemas de São Paulo, tanto porque as enchentes periódicas estão transformadas em flagelo social e os rios funcionam como esgoto a céu aberto, como porque as várzeas integram negativamente um complexo de forças produtivas que na escala da metrópole funciona como espaço de circulação.

    O ideário em torno do qual se desenrolaram e justificaram tais transformações abrigara formas de apropriação privada que apareceram socializadas, como questão de todos. É próprio da modernidade que privatização e socialização ocorram ao mesmo tempo. A natureza natural foi sendo transformada em natureza social com a montagem do sistema hidrelétrico; os rios foram potencializados como força produtiva para a sociedade a ponto de que quando alguém aperta um interruptor está estabelecendo uma relação com a natureza, mas já mediatizada por ciência e técnica. E, às populações tradicionais, foi sendo interditado o contato direto e imediato com rios e várzeas: assim é a natureza social do mundo. A questão é que não há solução de continuidade no acesso aos bens gerados, porque o acesso aos produtos da ciência e da técnica ocorre pela via do mercado. Então, só a demanda solvável resolve a necessidade posta em tal grau de complexidade.

    No mais, basta considerar que segmentos da sociedade civil se organizam contra as inundações e contra a poluição dos rios e represas e até contra o aproveitamento hidrelétrico do Alto Tietê. A atualidade de tais reivindicações justificou uma retomada histórica dos processos.

    Capítulo 1. Os Rios e as Várzeas como Força Produtiva da Sociedade

    O Tietê e o Pinheiros circundavam a cidade de São Paulo em movimentos lentos, preguiçosos, por longos e sinuosos leitos repletos de meandros; essas formas traduziam o longo processo, de natureza geofísica, de formação das planícies aluviais, identificadas como várzeas ou vargem, no senso comum. Como sendo bastante vastas, sobre elas estes rios faziam e refaziam seus leitos deixando, entre uma e outra cheia, meandros abandonados formando lagoas em semi-círculos.

    A formulação do enigma implícito na relação homem-natureza ocupa o pensamento desde tempos remotos. Rio e homens coexistem em relação simbiótica; relação de trocas múltiplas. Se, num primeiro momento, os homens, em geral, o enfrentam enquanto exterioridade e como elemento de condições naturais, dele também se apropriam organicamente, como meio e condição de existência. Essa relação que é, em princípio, prática traz consigo a propriedade de enlevar o rio à categoria de um bem simbólico, porque permite representações definidoras de modos de viver, como se vê no homem ribeirinho, no barqueiro ou no pescador. Nessa diferenciação ganham graus de realidade as subjetividades que se vão constituindo.

    Na modernidade, os rios são objetos da aplicação de conhecimentos científicos. Descobrem-se sua natureza e as leis que regulam seus fluxos para submetê-los por inteiro à intervenção, como atestam os estudos sobre as formas de apropriação dos rios Tietê e Pinheiros.¹

    A retificação do Tietê e do Pinheiros, a partir de certo momento, parece ter sido uma necessidade histórica em face da centralidade de São Paulo no processo geral de modernização da área identificada por Brasil de Sudeste. Responder às demandas de tal processo implicou em decisão política para empreendê-la, em recursos financeiros e em capacidade científica e técnica.

    O sistema de canais, as represas e o moderno sistema viário, com as vias marginais expressas instaladas sobre as várzeas, ao longo do Tietê e do Pinheiros, constituem uma massa de força produtiva social essencial para processos urbano-industriais localizados na Região Metropolitana de São Paulo. Configura-se um quadro de implantações bastante diversificadas ao longo dos vinte e cinco quilômetros do canal do Pinheiros, desde a confluência com o Tietê até a represa Billings, assim como ao longo do canal do Tietê, nos dezenove quilômetros que distam da confluência do Pinheiros à Penha. São essas implantações elementos materiais de produção e consumo que bem caracterizam o desenvolvimento econômico do País, com suas ambiguidades e contradições.

    Trata-se de uma fração estratégica do atual espaço metropolitano, que durante todo século XX foi sistematicamente objeto de grandes investimentos públicos. É um lugar que se tem prestado à realização de grandes projetos de natureza bastante diversificada e para onde convergem interesses públicos e privados, devido principalmente ao conjunto de obras nele realizadas.

    As terras ocupadas pelo atual sistema viário, nesses trechos, fazem parte dos terrenos das várzeas dos dois rios e foram gradativamente incorporadas à estrutura metropolitana graças aos trabalhos de retificação, que se estenderam pelas décadas de 30, 40 e 50. Ou seja, somente nos anos 60 os canais tiveram as suas secções transversais produzidas integralmente.

    Por mais de três décadas esses trabalhos de engenharia foram redefinindo as possibilidades de uso dos terrenos das várzeas. Mas o processo que transformou o espaço dos rios e das várzeas numa força produtiva social tem uma dimensão que transcende à própria várzea e diz respeito a profundas mudanças que ocorreram e têm ocorrido na sociedade brasileira. O Brasil atingiu a condição de País industrializado, sem perder, ou mesmo tendo acentuado, sua condição de País periférico e dependente. De fato, nesse período, tem-se uma nova inserção do País no contexto de relações internacionais cuja compreensão transcende os propósitos aqui estabelecidos. Mas, como decorrência, vale assinalar que durante esse período (30-40-50) ocorreram transformações de tal ordem na cidade de São Paulo, que implicaram na metamorfose da cidade em metrópole.

    Gradativamente foi sendo transformado o modo de vida provinciano que caracteriza, sob certas circunstâncias, as cidades pequenas e médias, onde pode ainda persistir determinadas relações de proximidade como vizinhança ou compadrio, para se viver o cosmopolitismo das metrópoles com a grandeza e a miséria que lhes são próprias. Em consequência do desenvolvimento de uma economia urbano-industrial, impôs-se o domínio de relações abstratas as quais têm no dinheiro a sua forma mais mediata, imediata e concreta. O processo contínuo de concentração e de modernização da atividade produtiva, tendo a cidade de São Paulo como seu locus principal, tem induzido como corolário à terceirização das formas de trabalho, firmando-se as funções de gestão de negócios, enquanto um número sempre crescente de indústrias se mobiliza em direção aos limites metropolitanos.

    Configurou-se nesse período a Região Metropolitana de São Paulo, pela integração de vários municípios vizinhos ao Município da Capital. Consequentemente, cresceram também os movimentos diários da população (domicílio-trabalho) de um extremo a outro da metrópole. A concentração industrial foi sendo acompanhada de extraordinário crescimento demográfico em toda a Região e São Paulo ficou no centro da divisão territorial do trabalho no Brasil.

    A segregação socioespacial, que está na essência da conformação da cidade capitalista, atinge na Metrópole uma forma exacerbada. Tanto que, em São Paulo, enquanto as elites armavam incessantemente estratégias de auto segregação no espaço da cidade, dos subterrâneos da ordem estabelecida vinha a luta para ocupar os interstícios desse mesmo espaço. Foi quando começaram a surgir as favelas como forma de resolução da necessidade de morar, da necessidade de ter um abrigo. A cidade crescera englobando áreas de povoamento antigo através de infindáveis loteamentos clandestinos e legais. Alguns loteamentos, internos à cidade, foram ricamente planejados como são os bairros-jardins e, outros periféricos destinados à prática da produção doméstica de habitação, como são muitos dos loteamentos da Zona Leste e da Zona Norte de São Paulo. Essa expansão ultrapassava os limites municipais. Resulta que a riqueza e a pobreza da Metrópole, já nos anos 50 se revelavam mutuamente na materialidade urbana.

    Mas o essencial das intervenções diz respeito à montagem do sistema hidrelétrico de São Paulo, que implicou no conjunto das obras realizadas nos rios e nas várzeas, compreendendo a canalização dos rios Tietê e Pinheiros, com supressão dos meandros e drenagem das várzeas, além da consequente liberação de vastas superfícies para circulação intraurbana.

    Os trabalhos de engenharia aplicados na retificação dos dois rios redefiniram as possibilidades de uso dos terrenos das várzeas e induziram a uma sobre-valorização das propriedades ribeirinhas. Mas as retificações são apenas etapas do processo geral de transformação das várzeas. A montagem do sistema viário teria produzido um efeito análogo tanto no que se refere a criação de novas possibilidades de uso dos terrenos marginais aos canais dos rios retificados, como também em relação à elevação das rendas fundiárias.

    Há uma dimensão social nesse processo de intervenção e produção das condições materiais do urbano que transcende em muito os objetivos específicos ou que foram especificados em quaisquer das ações concertadas. Porque a realidade urbana, em síntese, é um fenômeno de alta complexidade, com múltiplas implicações e processos.

    Veja-se, a transformação dos rios e várzeas de São Paulo está visceralmente comprometida com a montagem do sistema elétrico, não obstante ter estado, toda a discussão de retificação do Tietê imersa nos projetos e propostas urbanísticas e higienistas. Equivale a dizer que no urbano em formação, atos e processos se implicam mutuamente (uma coisa está implicada na outra). O higienismo fez a vez de uma filosofia do urbano, pois se tratava de domesticar o território urbano para receber em levas sempre crescentes os homens rústicos do campo. Logo, civilizar era um propósito higienista que perpassou a sociedade de alto a baixo propondo a drenagem de pântanos, edificações rigorosamente concebidas segundo as teorias dos miasmas e dos princípios de insolação; ações dirigidas para a escola pública e à saúde pública até o ponto no qual a socialização das condições do viver urbano tornasse inócuos seus propósitos e

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